Inscrições de Tempo em Um Romance Não
Escrito de Virgina Woolf.
O presente trabalho deseja mostrar um ponto de intercessão entre
a filosofia e a literatura,
ou seja, textos
literários memorialísticos. Assim, é pertinente
mostrar aqui
a relação entre
ambas. A primeira questão
a se resolver é: qual
é a distância entre
a filosofia e a literatura?
Sabemos que a literatura
não precisa
da filosofia para
expor suas idéias, assim como a filosofia
não precisa
da literatura para pesquisar o mundo. No
entanto, (e aqui
eu cito Franklin Leopoldo e Silva, em Bergson e Proust, tensões
de tempo), “quando se convive um
pouco com
ambas, percebe-se que a distância que
separa é a mesma que
aproxima” .
Isso, porque
a filosofia tem um
objetivo claro
(refletir sobre
a realidade de todos
nós, de modo
a tentar transmitir uma compreensão da mesma),
enquanto a literatura
possui um objetivo
menos claro,
ainda que
sejamos tentados a dizer que
a finalidade desta é a própria beleza, pura estética.
É justamente esse
sentir estético
que nos
aproxima da obra de arte.
Ao constatarmos que uma determinada obra
é bela, implicamos à mesma o nosso caráter participativo, pois
ao nos aproximarmos dela nos identificamos. Assim,
ao aceitar a proposta
da obra, temos no inesperado
e insuspeitado, algo de verdadeiro que,
por ter esse caráter tão significativo, não podemos deixar de perceber e de com ele concordar. Tal fenômeno ocorre de tal maneira que Franklin Leopoldo e Silva, ao se referir
à função da escrita
literária, afirma “percebemos por que o que moveu
[o escritor] é também aquilo
que agora
nos move, não
porque sejamos capazes
de repetir o que
ele fez, mas
simplesmente porque
o que ele
nos mostrou, por
ser real e verdadeiro, incorporou-se àquilo
que de mais
profundo sabemos sobre as coisas
e sobre nós”
. E
por possuir esse caráter de
nos proporcionar
tal ‘alargamento’
da nossa percepção
sobre o mundo
e sobre nós
mesmos, é que
a obra de arte
carrega tamanho saber, sendo, portanto, próxima
à filosofia.
A partir de tal pensamento, Bergson afirma ser
a obra de arte
tanto uma realidade
insofismável quanto
um enigma
absoluto. Uma realidade
insofismável ao ponto
em que
não se pode negar
a sua existência,
e um enigma
absoluto uma vez
que não
se sabe por que
meios o artista
concebe tal obra,
como
se faz de uma obra de arte,
arte. Para a filosofia,
essa dicotomia da obra
de arte é de extrema
importância, pois
transporta o ser humano
para outro nível longe de sua percepção habitual, “aquela
que recorta o mundo
segundo nossas necessidades
e nossas expectativas de agir
sobre ele
– isto é, de maneira
eminentemente pragmática”
.
Bergson
concorda com a constatação
de que a percepção
não se estrutura
de modo a nos
apresentar toda
a realidade, velando o que
seria o verdadeiro real. Para Bergson, a percepção está interessada em
servir somente à prática. O existir da pesquisa e de todas as ciências
especulativas o comprovam, pois se a nossa percepção
possuísse uma abrangência universal, não haveria espaço
para tais especulações.
Tais premissas
se fazem importantes quando pensamos a memória,
pois nos
levam a constatar como
a nossa percepção
temporal é limitada. Percebemos as diferenças provocadas pelo tempo interpretando o passado
e observando o presente, mas
não percebemos o processo que
se dá entre
esses dois pontos, e para Bergson,
essa é a característica mais
profunda da realidade.
A obra de arte, no entanto, é capaz
de ‘alargar’ a nossa
percepção, pois
a originalidade do artista
e aquele caráter
insuspeitado e inesperado da arte provêem da singular
percepção do artista.
O real está latejando constantemente à nossa
frente, mas
nossa percepção
seleciona apenas aqueles
aspectos que
se articulam de maneira prática
às nossas expectativas de ação.
Silva diz que esse
fenômeno se figura
como uma tensão
e um esforço
continuamente desenvolvido para que o homem se mantenha na condição
de senhor das coisas
e de usuário da natureza
. Toda a reação que o nosso espírito poderia
ter diante
da realidade é obscurecido por
essa tensão pragmática.
A função da arte
é relaxar essa tensão,
e dessa maneira nos
aproxima da realidade mais
intensamente, aquela realidade
que não
é deturpada pelas nossas expectativas ou pré-concepções.
Para entender os mecanismos mais
profundos da memória,
Ecléa Bosi em Memória e Sociedade:
Lembranças de Velhos,
retoma as idéias de Bergson em seu livro Matière et
mémoire. Aqui, o filósofo traça paralelos
entre o par
percepção-lembrança, que tem origem em um presente corporal linear e o fenômeno da lembrança.
Esses fenômenos
são considerados pelo
filósofo como antagônicos,
de maneira que
a percepção representa todo o momento que se constrói no presente,
enquanto a lembrança
reside no campo do pretérito.
A memória seria justamente
a ponte entre
ambos.
Segundo Bosi, encontramos em
Bergson, uma representação para definir o que é o presente: a percepção pura.
Pois toda a nossa consciência
do que é o presente
se baseia sobre as nossas percepções lineares
das ações que
se constroem à nossa frente. No entanto,
temos a existência do fenômeno
da memória, que
é capaz de “manchar”
a percepção pura,
uma vez que
todos os atos
presentes são,
de alguma forma, regidos, ou
permeados, por lembranças.
Bergson
sugere que a memória
é conservação
dos estados psíquicos
já vividos
e trabalha limitando uma indeterminação (do pensamento
e da ação), levando o sujeito
a reproduzir formas
de comportamento que
já deram certo
. É
assim que
se dá a percepção concreta,
aquela que é permeada pela memória.
Sabendo
a distinção entre
percepção pura
(presente) e memória,
e a relação estabelecida entre ambas é possível
estabelecer uma análise
interna, diferencial da memória. Segundo
Bosi, “o passado
conserva-se e, além de conservar-se,
atua no presente, mas
não de forma homogênea”. É por
esse motivo
que Bosi, através
das idéias de Bergson, estabelece a dicotomia: memória-hábito e lembranças.
A
memória-hábito se constitui como aquela que se forma através da repetição
de ações e/ou
pelo esforço
da atenção, tendo assim,
um caráter
mecânico. Essa memória
é necessária para
o convívio social,
pois “adestra” culturalmente o homem
de maneira que
se encontre condizente com os padrões de seu sistema cultural. Essa é a memória
responsável pelo
nosso conhecimento
de regras em
geral, como
equações matemáticas,
línguas estrangeiras, dirigir
um automóvel,
ler, etc.
Do outro lado
temos a lembrança, aquele
fenômeno que
dá vida aos momentos
acontecidos em outro
ponto no tempo,
possuindo um caráter
evocativo, não-mecânico. Bergson chama a lembrança
em seu
estado atuante
de imagem-lembrança .
Essa é sempre exata,
pois se ligará a apenas
um momento
na vida, a uma imagem
individualizada, ao passo que a memória-hábito não
pode ser definida
temporalmente.
Ainda assim, a preocupação maior
de Bergson é entender as relações
entre a memória,
conservação do passado,
e a sua articulação
com o presente,
ou seja, entender
a confluência entre
memória e percepção. Para tal, Bergson utiliza o desenho
de um conjunto
de semicírculos contrapostos que representam, simetricamente, os níveis em que a memória
se expande e os níveis de profundidade espacial
e temporal. Através
desse desenho, o filósofo francês pretende demonstrar
como os níveis
de memória se alargam e crescem, na mesma medida que fazem crescer os níveis da percepção,
impregnando-a. É dessa maneira que a memória é
capaz de atribuir
um caráter
totalmente renovado sobre
um determinado
objeto.
Na literatura,
memória e ficção
não se delimitam. No conto relacionado de Virginia Woolf, essa tensão entre
acontecido e rememoração condiz todas as ações
das personagens, que
podem ser resumidas para
uma melhor compreensão
do enredo. Um
Romance Não
Escrito se passa
entre o final
do século XIX ou
início do século
XX, sendo contemporâneo à época
de sua escritora, no entanto não segue uma linearidade
no tempo, oscilando entre
presente e pretérito
de maneira quase
osmótica, sendo difícil a percepção dos contornos
entre ambos.
Esse fenômeno
se dá por vias
do fluxo de consciência,
que impregna o texto
com a percepção
pura de seu
narrador. Ainda que
o narrador se apresente em primeira pessoa, não é dito em momento nenhum seu nome ou sexo, de maneira
que se torna
apenas um
canal entre
o leitor e a dimensão
ficcional da narrativa. Essa dimensão é constituída no interior
de um trem
de passageiros que
está percorrendo a Inglaterra. Dentro do
vagão em
que se encontra
o narrador estão vários passageiros que
aos poucos vão
se retirando até que
fiquem apenas narrador e uma mulher, que mais tarde, nos é apresentada sob
o nome de Minnie Marsh, sendo a protagonista. A relação
narrador-Minnie Marsh é dada de maneira peculiar,
pois o narrador, ao abordar
Minnie, logo no início
do conto, para
uma conversa se envolve com
suas memórias
de modo que
a um certo
ponto da trama
chega a confundir
as lembranças de Minnie com as suas
próprias, sendo absorvido completamente pelo fluxo de consciência da protagonista.
Há uma passagem em
que para realçar o traço da personalidade responsável
e preocupada de Minnie o narrador diz “nunca completamente
inconsciente da barateza dos ovos”
e mais adiante,
em meio
ao fluxo de consciência
iniciado pelo
narrador sobre uma paisagem
memorialista de Minnie diz “quem estava dizendo que
os ovos eram mais
baratos? Eu
ou você?”.
É nesse momento
que se apresenta a teoria
de Lacan que diz ser
o nome próprio
o ponto que
une todos os tempos
presentes na narrativa,
ou nas palavras
de Lúcia Castello Branco, “é pois, pela marca do nome próprio, signo do moi encenado no texto
que a narrativa
memorialista procura
garantir sua
especificidade”. Ora, no conto de Woolf, essa teoria
se faz presente a partir
do momento em
que narrador e protagonista
são distinguidos apenas
por seu
nome próprio,
uma vez que
compartilham lembranças de maneira tão íntima a se confundirem.
Ainda assim, o
narrador é sempre um
observador do passado
de Minnie. De acordo com a paisagem que se vê pela janela de um trem em movimento, em que o visto são apenas vultos, pequenos detalhes
que escaparam de um
contexto maior
por chamar a atenção dos olhos,
assim as memórias
de Minnie são relatadas, como se o narrador fosse capaz
de fotografar uma imagem-lembrança, imagens tantas vezes
desconexas que vemos em nossa mente e tentamos encaixar
de maneira lógica.
A diferença é que
Woolf não se coloca na posição de ordenar essas imagens. Um exemplo máximo
desse fenômeno encontra-se no seguinte
trecho “ Ó, e lá está um negro – aquele
é um homem
engraçado –(...) – Não
há ninguém aqui
que pense em
Deus? – apenas
lá em
cima, depois
do píer, com
a vara – mas
não – não
há nada além
de cinza no céu,
ou se é azul,
o branco das nuvens
o cobre, e a música...”.
É nesse ponto que
Um Romance
Não Escrito
se diferencia de outras tramas
memorialísticas que tantas vezes se apresentam linearmente.
Inicia-se uma conversa
entre narrador e protagonista,
e o primeiro percebe que
Minnie apresenta constantemente uma irritação entre as costas, que a
mantém ocupada coçando o local, que por ser de difícil acesso
a leva a um
alto grau
de contorções em seu
assento. A princípio,
o narrador se mostra irritado com essa atitude da protagonista, no entanto
a atração psicológica
que a protagonista
detém sobre o narrador é de tão alto grau que, em breve, ele vê a si mesmo ensaiando
as mesmas contorções bizarras. Outro fenômeno semelhante
ocorre quando a protagonista,
ao mesmo tempo
em que
se contorce, insiste em tirar
uma mancha negra
da janela, essa mancha,
indelével, não
some nunca. Ora,
aspecto físico
retratando aquela memória que não se
apaga, que está sempre
presente na mente
humana.
O estopim,
que inicia o fluxo
de consciência ligando narrador e Minnie
Marsh, se dá no meio de uma conversa casual, no momento em que a protagonista,
olhando pela janela
do trem, lembra-se de sua cunhada,
Hilda. A imagem-lembrança de Hilda é a alavanca
para todo um passado
misterioso de Minnie. As imagens-lembrança vão
se desdobrando entre os acontecimentos de uma tarde
em que
a protagonista chega
à casa de sua
cunhada (mulher
de seu irmão)
e então podemos perceber
que Minnie está em
posição financeiramente
inferior à sua
cunhada. Ao entrar
na casa de Hilda, a protagonista
é alojada em um
quarto no sótão,
de onde tem uma vista
panorâmica da cidade.
Aí, mais
uma vez um
novo fluxo de
consciência se dá. No entanto, nesse momento
dará conta de imagens-lembrança dentro
das imagens-lembrança. O psicológico aqui está tão latente que a narrativa está bem próxima ao raciocínio
humano em
seus desenvolvimentos
naturais. É no clímax
dessa narrativa que
inicia a chegada ao motivo
do título: um
crime. Uma morte
não resolvida e a culpa
que Minnie sente sobre
esse crime,
ainda que
tente se excusar dele. O crime, na realidade, é psicológico.
E toda a contorção e a esfregação na janela
se dão por conta
dessa culpa. Aqui
seguem algumas palavras no conto a respeito
de tal, após um fluxo de consciência sobre
visões do presidente
Kruger nos céus
da Inglaterra segue “... um cassetete, é
isso? – preto,
grosso, torneado – um
bruto rufão antigo
– o Deus da Minnie! Foi ele quem mandou
a coceira e a irritação
e a contorção? É por isso que ela reza? O que
ela esfrega
na janela é a mancha
do pecado. Ah! Ela
cometeu algum crime!”.
A partir daí segue o fluxo
de consciência sobre
o crime, na verdade
por negligência
de Minnie uma chaleira quente escaldou um
bebê. Não se
menciona mais o crime,
apenas a culpa
que a protagonista
carrega. Mais adiante
porém, temos um
novo personagem,
James Moggridge. Esse personagem possui com
a protagonista uma relação
velada que não
é explicada em nenhum
momento. Sabemos apenas
que é uma relação
negativa para
Minnie. É a partir da imagem-lembrança de Moggridge que se dá o motivo
do título “Quantos morrem em
cada romance
que é escrito
– o melhor, o mais
querido, enquanto
Moggridge vive. É culpa da vida”. Ora,
temos o título do conto
em sua
versão inversa. O “romance
não-escrito” é justamente aquele que não se atém aos detalhes
que normalmente
outros romances
se voltam, ou melhor,
o romance não
escrito é aquele
que não
se prendeu à tentativa de manter
uma linearidade temporal
artificial, como
os romances escritos
fizeram. Ao contrário, procurando sempre os detalhes
não escritos,
os detalhes psicológicos
profundos destituídos de finalidades conscientes. Este
aliás, é um
dos traços distintivos
de Virginia Woolf; o qual se procurou destacar nesta comunicação.