Inscrições de Tempo em Um Romance Não Escrito de Virgina Woolf.

 

 O presente trabalho deseja mostrar um ponto de intercessão entre a filosofia e a literatura, ou seja, textos literários memorialísticos. Assim, é pertinente mostrar aqui a relação entre ambas. A primeira questão a se resolver é: qual é a distância entre a filosofia e a literatura? Sabemos que a literatura não precisa da filosofia para expor suas idéias, assim como a filosofia não precisa da literatura para pesquisar o mundo. No entanto, (e aqui eu cito Franklin Leopoldo e Silva, em Bergson e Proust, tensões de tempo), “quando se convive um pouco com ambas, percebe-se que a distância que separa é a mesma que aproxima[1]. Isso, porque a filosofia tem um objetivo claro (refletir sobre a realidade de todos nós, de modo a tentar transmitir uma compreensão da mesma), enquanto a literatura possui um objetivo menos claro, ainda que sejamos tentados a dizer que a finalidade desta é a própria beleza, pura estética.

            É justamente esse sentir estético que nos aproxima da obra de arte. Ao constatarmos que uma determinada obra é bela, implicamos à mesma o nosso caráter participativo, pois ao nos aproximarmos dela nos identificamos. Assim, ao aceitar a proposta da obra, temos no inesperado e insuspeitado, algo de verdadeiro que, por ter esse caráter tão significativo, não podemos deixar de perceber e de com ele concordar. Tal fenômeno ocorre de tal maneira que Franklin Leopoldo e Silva, ao se referir à função da escrita literária, afirma “percebemos por que o que moveu [o escritor] é também aquilo que agora nos move, não porque sejamos capazes de repetir o que ele fez, mas simplesmente porque o que ele nos mostrou, por ser real e verdadeiro, incorporou-se àquilo que de mais profundo sabemos sobre as coisas e sobre nós[2]. E por possuir esse caráter de nos proporcionar talalargamento’ da nossa percepção sobre o mundo e sobre nós mesmos, é que a obra de arte carrega tamanho saber, sendo, portanto, próxima à filosofia.

            A partir de tal pensamento, Bergson afirma ser a obra de arte tanto uma realidade insofismável quanto um enigma absoluto. Uma realidade insofismável ao ponto em que não se pode negar a sua existência, e um enigma absoluto uma vez que não se sabe por que meios o artista concebe tal obra, como se faz de uma obra de arte, arte. Para a filosofia, essa dicotomia da obra de arte é de extrema importância, pois transporta o ser humano para outro nível longe de sua percepção habitual, “aquela que recorta o mundo segundo nossas necessidades e nossas expectativas de agir sobre eleisto é, de maneira eminentemente pragmática[3]. 

            Bergson concorda com a constatação de que a percepção não se estrutura de modo a nos apresentar toda a realidade, velando o que seria o verdadeiro real. Para Bergson, a percepção está interessada em servir somente à prática. O existir da pesquisa e de todas as ciências especulativas o comprovam, pois se a nossa percepção possuísse uma abrangência universal, não haveria espaço para tais especulações.

            Tais premissas se fazem importantes quando pensamos a memória, pois nos levam a constatar como a nossa percepção temporal é limitada. Percebemos as diferenças provocadas pelo tempo interpretando o passado e observando o presente, mas não percebemos o processo que se dá entre esses dois pontos, e para Bergson, essa é a característica mais profunda da realidade.

            A obra de arte, no entanto, é capaz de ‘alargar’ a nossa percepção, pois a originalidade do artista e aquele caráter insuspeitado e inesperado da arte provêem da singular percepção do artista. O real está latejando constantemente à nossa frente, mas nossa percepção seleciona apenas aqueles aspectos que se articulam de maneira prática às nossas expectativas de ação. Silva diz que esse fenômeno se figura como uma tensão e um esforço continuamente desenvolvido para que o homem se mantenha na condição de senhor das coisas e de usuário da natureza [4]. Toda a reação que o nosso espírito poderia ter diante da realidade é obscurecido por essa tensão pragmática. A função da arte é relaxar essa tensão, e dessa maneira nos aproxima da realidade mais intensamente, aquela realidade que não é deturpada pelas nossas expectativas ou pré-concepções. 

            Para entender os mecanismos mais profundos da memória, Ecléa Bosi em Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos, retoma as idéias de Bergson em seu livro Matière et mémoire. Aqui, o filósofo traça paralelos entre o par percepção-lembrança, que tem origem em um presente corporal linear e o fenômeno da lembrança. Esses fenômenos são considerados pelo filósofo como antagônicos, de maneira que a percepção representa todo o momento que se constrói no presente, enquanto a lembrança reside no campo do pretérito. A memória seria justamente a ponte entre ambos.

            Segundo Bosi, encontramos em Bergson, uma representação para definir o que é o presente: a percepção pura. Pois toda a nossa consciência do que é o presente se baseia sobre as nossas percepções lineares das ações que se constroem à nossa frente. No entanto, temos a existência do fenômeno da memória, que é capaz de “manchar” a percepção pura, uma vez que todos os atos presentes são, de alguma forma, regidos, ou permeados, por lembranças.

            Bergson sugere que a memória é conservação dos estados psíquicos vividos e trabalha limitando uma indeterminação (do pensamento e da ação), levando o sujeito a reproduzir formas de comportamento que deram certo [5]. É assim que se dá a percepção concreta, aquela que é permeada pela memória.

            Sabendo a distinção entre percepção pura (presente) e memória, e a relação estabelecida entre ambas é possível estabelecer uma análise interna, diferencial da memória. Segundo Bosi, “o passado conserva-se e, além de conservar-se, atua no presente, mas não de forma homogênea”. É por esse motivo que Bosi, através das idéias de Bergson, estabelece a dicotomia: memória-hábito e lembranças.

            A memória-hábito se constitui como aquela que se forma através da repetição de ações e/ou pelo esforço da atenção, tendo assim, um caráter mecânico. Essa memória é necessária para o convívio social, pois “adestra” culturalmente o homem de maneira que se encontre condizente com os padrões de seu sistema cultural. Essa é a memória responsável pelo nosso conhecimento de regras em geral, como equações matemáticas, línguas estrangeiras, dirigir um automóvel, ler, etc.

            Do outro lado temos a lembrança, aquele fenômeno quevida aos momentos acontecidos em outro ponto no tempo, possuindo um caráter evocativo, não-mecânico. Bergson chama a lembrança em seu estado atuante de imagem-lembrança [6]. Essa é sempre exata, pois se ligará a apenas um momento na vida, a uma imagem individualizada, ao passo que a memória-hábito não pode ser definida temporalmente.

            Ainda assim, a preocupação maior de Bergson é entender as relações entre a memória, conservação do passado, e a sua articulação com o presente, ou seja, entender a confluência entre memória e percepção.  Para tal, Bergson utiliza o desenho de um conjunto de semicírculos contrapostos que representam, simetricamente, os níveis em que a memória se expande e os níveis de profundidade espacial e temporal. Através desse desenho, o filósofo francês pretende demonstrar como os níveis de memória se alargam e crescem, na mesma medida que fazem crescer os níveis da percepção, impregnando-a. É dessa maneira que a memória é capaz de atribuir um caráter totalmente renovado sobre um determinado objeto.

Na literatura, memória e ficção não se delimitam. No conto relacionado de Virginia Woolf, essa tensão entre acontecido e rememoração condiz todas as ações das personagens, que podem ser resumidas para uma melhor compreensão do enredo. Um Romance Não Escrito se passa entre o final do século XIX ou início do século XX, sendo contemporâneo à época de sua escritora, no entanto não segue uma linearidade no tempo, oscilando entre presente e pretérito de maneira quase osmótica, sendo difícil a percepção dos contornos entre ambos. Esse fenômeno se dá por vias do fluxo de consciência, que impregna o texto com a percepção pura de seu narrador. Ainda que o narrador se apresente em primeira pessoa, não é dito em momento nenhum seu nome ou sexo, de maneira que se torna apenas um canal entre o leitor e a dimensão ficcional da narrativa. Essa dimensão é constituída no interior de um trem de passageiros que está percorrendo a Inglaterra. Dentro do vagão em que se encontra o narrador estão vários passageiros que aos poucos vão se retirando até que fiquem apenas narrador e uma mulher, que mais tarde, nos é apresentada sob o nome de Minnie Marsh, sendo a protagonista. A relação narrador-Minnie Marsh é dada de maneira peculiar, pois o narrador, ao abordar Minnie, logo no início do conto, para uma conversa se envolve com suas memórias de modo que a um certo ponto da trama chega a confundir as lembranças de Minnie com as suas próprias, sendo absorvido completamente pelo fluxo de consciência da protagonista. Há uma passagem em que para realçar o traço da personalidade responsável e preocupada de Minnie o narrador diz “nunca completamente inconsciente da barateza dos ovos” e mais adiante, em meio ao fluxo de consciência iniciado pelo narrador sobre uma paisagem memorialista de Minnie diz “quem estava dizendo que os ovos eram mais baratos? Eu ou você?”.  

É nesse momento que se apresenta a teoria de Lacan que diz ser o nome próprio o ponto que une todos os tempos presentes na narrativa, ou nas palavras de Lúcia Castello Branco, “é pois, pela marca do nome próprio, signo do moi encenado no texto que a narrativa memorialista procura garantir sua especificidade”. Ora, no conto de Woolf, essa teoria se faz presente a partir do momento em que narrador e protagonista são distinguidos apenas por seu nome próprio, uma vez que compartilham lembranças de maneira tão íntima a se confundirem.

Ainda assim, o narrador é sempre um observador do passado de Minnie. De acordo com a paisagem que se pela janela de um trem em movimento, em que o visto são apenas vultos, pequenos detalhes que escaparam de um contexto maior por chamar a atenção dos olhos, assim as memórias de Minnie são relatadas, como se o narrador fosse capaz de fotografar uma imagem-lembrança, imagens tantas vezes desconexas que vemos em nossa mente e tentamos encaixar de maneira lógica. A diferença é que Woolf não se coloca na posição de ordenar essas imagens. Um exemplo máximo desse fenômeno encontra-se no seguinte trechoÓ, e está um negroaquele é um homem engraçado –(...) – Nãoninguém aqui que pense em Deus? – apenas em cima, depois do píer, com a varamas nãonãonada além de cinza no céu, ou se é azul, o branco das nuvens o cobre, e a música...”. É nesse ponto que Um Romance Não Escrito se diferencia de outras tramas memorialísticas que tantas vezes se apresentam linearmente.

        Inicia-se uma conversa entre narrador e protagonista, e o primeiro percebe que Minnie apresenta constantemente uma irritação entre as costas, que a mantém ocupada coçando o local, que por ser de difícil acesso a leva a um alto grau de contorções em seu assento. A princípio, o narrador se mostra irritado com essa atitude da protagonista, no entanto a atração psicológica que a protagonista detém sobre o narrador é de tão alto grau que, em breve, ele a si mesmo ensaiando as mesmas contorções bizarras. Outro fenômeno semelhante ocorre quando a protagonista, ao mesmo tempo em que se contorce, insiste em tirar uma mancha negra da janela, essa mancha, indelével, não some nunca. Ora, aspecto físico retratando aquela memória que não se apaga, que está sempre presente na mente humana.

O estopim, que inicia o fluxo de consciência ligando narrador e Minnie Marsh, se dá no meio de uma conversa casual, no momento em que a protagonista, olhando pela janela do trem, lembra-se de sua cunhada, Hilda. A imagem-lembrança de Hilda é a alavanca para todo um passado misterioso de Minnie. As imagens-lembrança vão se desdobrando entre os acontecimentos de uma tarde em que a protagonista chega à casa de sua cunhada (mulher de seu irmão) e então podemos perceber que Minnie está em posição financeiramente inferior à sua cunhada. Ao entrar na casa de Hilda, a protagonista é alojada em um quarto no sótão, de onde tem uma vista panorâmica da cidade. , mais uma vez um novo fluxo de consciência se dá. No entanto, nesse momento dará conta de imagens-lembrança dentro das imagens-lembrança. O psicológico aqui está tão latente que a narrativa está bem próxima ao raciocínio humano em seus desenvolvimentos naturais. É no clímax dessa narrativa que inicia a chegada ao motivo do título: um crime. Uma morte não resolvida e a culpa que Minnie sente sobre esse crime, ainda que tente se excusar dele. O crime, na realidade, é psicológico. E toda a contorção e a esfregação na janela se dão por conta dessa culpa. Aqui seguem algumas palavras no conto a respeito de tal, após um fluxo de consciência sobre visões do presidente Kruger nos céus da Inglaterra segue “... um cassetete, é isso? – preto, grosso, torneado – um bruto rufão antigo – o Deus da Minnie! Foi ele quem mandou a coceira e a irritação e a contorção? É por isso que ela reza? O que ela esfrega na janela é a mancha do pecado. Ah! Ela cometeu algum crime!”. A partir daí segue o fluxo de consciência sobre o crime, na verdade por negligência de Minnie uma chaleira quente escaldou um bebê. Não se menciona mais o crime, apenas a culpa que a protagonista carrega. Mais adiante porém, temos um novo personagem, James Moggridge. Esse personagem possui com a protagonista uma relação velada que não é explicada em nenhum momento. Sabemos apenas que é uma relação negativa para Minnie. É a partir da imagem-lembrança de Moggridge que se dá o motivo do títuloQuantos morrem em cada romance que é escrito – o melhor, o mais querido, enquanto Moggridge vive. É culpa da vida”. Ora, temos o título do conto em sua versão inversa. O “romance não-escrito” é justamente aquele que não se atém aos detalhes que normalmente outros romances se voltam, ou melhor, o romance não escrito é aquele que não se prendeu à tentativa de manter uma linearidade temporal artificial, como os romances escritos fizeram. Ao contrário, procurando sempre os detalhes não escritos, os detalhes psicológicos profundos destituídos de finalidades conscientes. Este aliás, é um dos traços distintivos de Virginia Woolf; o qual se procurou destacar nesta comunicação.  

             

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] SILVA. Bergson, Proust, p. 141.

[2] SILVA. Bergson, Proust, p. 142.

[3] SILVA. Bergson, Proust, p. 142.

[4] SILVA. Bergson,Proust   p. 146.

[5] BOSI. Memória e Sociedade, p. 10

[6] BOSI. Memória e Sociedade, p. 11