ARTE, CONSUMO E
CONSUMAÇÃO.
Diego Braga
Arte,
hoje, como tudo, é um produto. Arte vende, e circula na medida em que vende. Os
artistas são grandes artistas e suas obras são primas na proporção quase exata
de seu sucesso comercial. Arte é, deste modo, para
poucos. Os poucos que podem adquiri-la a seus preços exorbitantes. É o que os
especialistas em arte e profissionais do belo dizem. O mercado de arte cresce,
produz-se mais, vende-se mais para assim produzir-se ainda mais. O capital
artístico cresce, apesar das teorias apocalípticas. De que adianta teorizar e
escrever textos de reflexão em torno do fenômeno da arte hodierna, se estes
textos não vendem e, assim, não circulam, não são lidos?
Há, juntamente com a arte, o kitch.
Reproduções que trazem o eco de valores da elite de outrora (eterno desejo
da pequena burguesia de ascender à aristocracia), a preços acessíveis à classe
média, mas que são de fato coisas retrógradas e simplórias na perspectiva da
estética de vanguarda – como a arquitetura colonial ou quadros “impressionistas”,
por exemplo. Então, vem a avalancha de Taiwan, para as
classes baixas. Isso é o mesmo para literatura, fonografia,
cinematografia e demais reprodutíveis. O que não é “alta arte” – arte da elite
econômica e intelectual – é melhor rotulado de “produto
cultural” ou, nas camadas mais baixas, simplesmente de produto, bugiganga,
bibelô e lembrancinha mesmo. Enfim, não importa a
origem e o meio onde circula, tudo que vige e tem
espaço na contemporaneidade é, seja o que for, um produto.
Produtos. Vivemos, desejamos, pensamos, adquirimos,
doamos e nos desfazemos de produtos. Existimos em meio à farta produção de
nossa civilização industrial que cada vez produz mais e mais barato nos
soterrando com uma quantidade de produtos cada vez maior e sempre mais e mais
acessível. Será vã nossa crítica à sociedade de consumo capitalista se enxergamos
o homem apenas como um ser produtor e reprodutor. Isso porque nosso agir é
muito mais do que um produzir, no sentido de gerar realizações. Nosso agir não
se determina pela finalidade, pelo produto. Uma ação não se julga pelos seus
resultados. Pensando um homo productor, não
estamos longe do que hoje parecer ser a essência cultural do capitalismo: a
paridade entre coisa e produto. Qualquer coisa é um produto. Produto cultural,
produto alimentício, produto intelectual, produto interno bruto... Quanto mais
produz, mais rica é uma sociedade.
Atualmente também se fala de produção de conhecimento. A
pesquisa, em grande parte, está voltada para a descoberta de novas técnicas e
materiais de produção. A indústria, nova quimera e Eldorado, – que gera a hiperprodução – é identificada com a fonte de
riqueza (acúmulo de produtos) do homem e, desta feita, também de seu bem estar.
O esforço é, hoje, quase que totalmente voltado para um aumento da produção, a
que corresponde um aumento do consumo e, assim se pensa, faz surgir a justiça social. Contudo, não é preciso nem um olhar muito
atento para perceber que o tiro está saindo pela culatra há uns duzentos anos.
As desigualdades aumentam. Enquanto uns se comunicam via Internet, usam
computadores que cabem no bolso de um paletó, viajam ao espaço, fazem clonagem
de seres vivos e conversam com carros inteligentes, outros juntam lenha e acendem fogo com pederneira, isso quando têm o que cozinhar
- porque é da sua penúria que se tira a abastança e a “evolução” dos demais -
isso dentro do mesmo Brasil. Na Idade Média européia, por exemplo, a cozinha na
casa de um camponês não era tão diferente da de seu senhor feudal, que como ele
geralmente não sabia ler e dominava uma tecnologia muito semelhante. Aumentam
as diferenças porque uma superação constante pressupõe um superado crescente.
Este texto não quer ser um produto. Em todo caso, isso de
nada adianta, porque aqui fala uma idéia, uma posição. Nada disso pode escapar
à transformação de tudo em produto, já que nem mesmo a arte escapou, ela, que
não vige como produto. Há muitos produtos, hoje vendidos como arte, que não
passam de bens de consumo, que nada consumam. Do mesmo modo, há muita arte hoje
vendida como produto, como bem de consumo que, todavia, não se consome, mas
consuma. A arte não pode virar um produto, e isso não é prescrição moral. Ela
não é passível de consumo, só isso. Arte é cornucópia, uma refeição que nunca
se esgota, o milagre da multiplicação dos pães. O Ramayana
é tão atual quando Anish Kapoor.
Não há uma evolução, uma superação, um desgaste, que são processos pelos quais
se articula o consumo.
As ideologias dividiam as pessoas do mundo no empenho de
suas ações. Recentemente, principalmente depois da queda do regime Socialista
na extinta URSS e da abertura da economia chinesa, há, grosso modo, apenas uma
“ideologia” dominante. Assim, ela já não é tanto uma ideologia, mas um contexto
hegemônico. Vivemos no contexto hegemônico da técnica. Técnica é um modo de se
fazer qualquer coisa, ou um modo pelo qual algo vem a ser. Tudo que se faz ou
vem a ser, faz-se ou vem a ser de algum modo, e a isso chamamos técnica. Todos
os povos desenvolveram uma técnica, mas apenas a técnica moderna, européia, tem
traçada desde sua origem a hegemonia como destino. A
técnica moderna surge quando o meio se torna um fim. Os meios técnicos atendem,
hoje, primeiramente, à sua própria evolução e à ampliação de seus âmbitos de
domínio. Isso porque a técnica moderna européia se instaura como tapume do
“vazio” da ética deixado pela poética. A técnica hoje se confunde com a ética
de uma tal maneira que vivemos hoje sob a ética da
ultrapassagem em que, muito naturalmente, tudo se passa e ultrapassa de maneira
cada vez mais veloz. É, portanto, uma decorrência do percurso hegemônico da
técnica que vivamos hoje no que se chama de “sociedade de consumo”. A técnica
moderna instaura, no âmbito sócio-econômico, uma dinâmica de consumo que lhe é
muito própria. O consumo é a economia se realizando de acordo com a ética da
técnica.
A
ética não se nos mostra pendente na poética porque a técnica - o como do agir -
anda sobreposto ao próprio agir. A ética pode, assim, ser até mesmo anti-ética, isto é, pode transformar
o agir em mera realização e agitação, tanto que hoje é comum opormos o que
entendemos por ética à frase: os fins justificam os meios. A ética, em nosso
entender, se dá quando os fins não justificam os meios. Ética é, para nós, uma
dialética de fins e meios, de modos e objetivos. Ética diz se o que se faz é
feito de modo correto ou não. Enfim, a ética confundiu-se com a moral. A ética
é a realização, enquanto a moral, o realizado. Então vivemos num tempo em que
só se admite, por ética, a realização do realizado. Quando pendente da poética,
a ética é a ação e a moral e o atual, o ato em vigor. A ética e a moral poética
acontecem simplesmente, e isto quer dizer: sem fins e meios, porque ética e
moral são, poeticamente, “já” e “ainda”.
Chegou-se a um consenso de uma medida de tempo e, então,
confundimos hoje tempo com horas, minutos, semanas, assim como o quilograma e a
libra se confundiram com o peso, e o metro e o hectare com o espaço, os
decibéis com o som, os graus com a temperatura. Pouca coisa restou fora do
âmbito de nosso cálculo, que se tornou um decodificador da experiência, assim
já convertida em experimento – uma função da técnica moderna. Mas a experiência
tem um sabor que não se resume no conhecimento oriundo do experimento. Ainda
bem que não criamos ainda uma unidade de medida para os sabores e cheiros –
muito embora calculemos os fatos nutricionais. Obtemos um bom exemplo à mesa. Há
uma diferença entre um alimento e uma refeição. O alimento é necessário e nos
mantém vivos. Todos os seres vivos necessitam de alimento. As refeições não são
necessárias. Diante de uma refeição, não apenas nos alimentamos, comemos. O
fato de comer, do latim cum+essere,
significar “estar junto”, “estar reunido”, e apenas muito conotativamente
ligar-se à ação de deglutir, aponta para o sentido essencial que uma refeição
traz: nela se articula um mundo. Pessoas reunidas, conversando, a linguagem
acontecendo, contam-se estórias, fala-se sobre as coisas, a terra nos alimentos
está reunida ao sabor, ao sentido de ser humano. Numa refeição acontece o
sagrado. Há na refeição uma arte culinária que nos liberta das determinações da
mera necessidade de alimento e, assim, nos lança na abertura do sentido de ser,
pelo qual somos humanos. Uma arte culinária produz um alimento, mas não somente
isso: está presente também a plenitude do sabor, da história, da identidade
cultural, da diferença criativa.
Portanto,
de nada adianta escrever coisas como estas. Elas são um grão de areia – dos
menores – dentro de uma deserto inteiro que cresce sem
parar. É apenas mais um dado, mais informação a ser consumida e veiculada,
quando muito. Textos como esse não nos libertam da prisão em que nos metemos,
porque estes textos, uma vez lidos (se lidos), não merecem ser relidos. Eles
informam. Cumprem seu papel. Pronto. Nova informação. Quando lemos e escrevemos
textos que não adiantam de nada, contudo, sentimos alívio da prisão de fazer
tudo pelo efeito, como comer para se alimentar. Mas ainda não temos uma
refeição. Somente diante da arte o tempo não passa em vão – nem é aproveitado -
lá ele acontece, apenas.