V – UMA QUESTÃO DE UNIDADE: FILOSOFIA E SOCIEDADE NOS
CAMINHOS DO PENSAR POETICO
O que se pode fazer, enquanto filosofia e poesia estão
separadas, está feito, perfeito e acabado. Portanto é tempo de unificar as
duas. (SCHLEGEL, 1997:158)
O filosofar ainda continua presente como obra de arte,
mesmo quando não pode ser demonstrado como construção filosófica. (NIETZSCHE, 2004:20)
Talvez se possa falar da poesia poeticamente, o que,
todavia, não quer dizer em versos e rimas. Por conseguinte, falar de poesia não
tem de ser forçosamente um ocioso falar “em torno de” e “sobre” poemas. Mais
difícil e suspeito é, porém, outra coisa: que, agora, a Filosofia se lance
sobre uma obra poética. (HEIDEGGER,
2004:13)
5.1 - Poética e Filosofia
Poesia, como poiesis, e Filosofia possuem, de
alguma forma, um entre-lugar que reside no debate sobre o conceito da verdade e
que se prolonga na história desde os antigos pensadores como Heráclito, em Platão
e Aristóteles e em toda tradição moderna de estudo da obra de arte. Uma tradição
moderna que poderia ser focada a partir de Fichte, Kant, Baungartem,
Schopenhauer, Schlegel, Novalis, Goethe, Wagner, Nietzsche, Auerbach,
Heidegger, Sartre, Thomas Mann, Bachelard e outros nomes, não de menor
significação.
Entretanto destacamos Schopenhauer e Heidegger por
serem pensadores cujas obras, por vias
diferentes, apresentam a conexão entre arte e filosofia. Enfatizar tais
pensadores não se justifica somente por admiração, mas pela dedicação ao estudo
da obra de arte e a significação que tais reflexões possuem.
O que significa, pois, uma filosofia posta em vigor numa
consonância com a dimensão da poesia? Como pensar, de forma contemporânea, uma
unidade entre filosofia e poesia, se os desdobramentos históricos da tradição
identificaram a filosofia como discurso da totalidade e a poesia como discurso
do eu-manifestante, o nomeado eu-lírico pelas escolas críticas?
Além disso, até que ponto essas nomenclaturas e
conceituações fragmentam o sentido de reunião que o pensamento teórico
solicita?
É importante dizer que, na contemporaneidade, é inviável
pensar numa trajetória de reflexão teórica, no século que agora vivenciamos,
sem a experiência da negação da culpa ou do pecado.
O viver sem culpa, enquanto manifestação do ser,
concretiza a experiência do rompimento ontológico com a tradição
metafísico-cristã e inaugura o homem poético como ponte e não como ponto.
Somente a vivência livre de culpas pode respirar os ares de uma liberdade
necessária a presença da obra de arte. Nesse caminho, parece-nos clara a
invocação libertaria tanto da matriz schopenhauriana como da matriz
heideggeriana de pensamento.
O pensar, de acordo com tais referencias, torna-se aberto
à invocação poética de uma escuta. Essa escuta indica a busca de uma
correspondência entre pensar e poetar que, ainda segundo a leitura de Martin
Heidegger (1973), permite a formação de uma semântica vasta da noção de
linguagem:
Mas pelo fato de a poesia, em comparação com o
pensamento, estar de modo bem diverso e privilegiado a serviço da linguagem,
nosso encontro que medita sobre a filosofia e necessariamente levado a discutir
a relação entre pensar e poetar. (p.21)
Seria pertinente, também, afirmar que a passagem de uma
filosofia sistemática para um filosofar de apreensão poética do mundo é um
acontecer da liberdade. As possibilidades alternativas que obra de arte possui,
enquanto universo hermenêutico, reflete o cosmos do mito grego daquele que
resguarda os enigmas dos caminhos.
Ora, os grandes sistemas filosóficos da era moderna, como
vemos a título de exemplificação em Descartes, Fichte ou Kant, sem reduzi-los
em importância, são, em sua maioria, sistemas construídos sob a influência da
razão moderna, além de se estabelecerem, sistematicamente, em composições
corretivas que visam retificar o que um outro estudioso já havia dito,
procurando, pois, estabelecer um “novo” eixo de entendimento do mundo por meio
da aplicabilidade de princípios modelares.
Nesse sentido, Kant é marcante, uma vez que, enquanto
sistematizador filosófico, é de uma competência que talvez jamais possa ser
superada.
Quando isso não ocorre, ou seja, a formação prática de
sistemas, outro fator entre em cena, de forma intencional ou não, e que possui
uma carga negativa tanto quanto os sistemas corretivos: a “explicação”. Numa
tradução esclarecedora, a questão de Friedrich Schlegel (1997), descrita
abaixo, põe em xeque a atitude de uma filosofia sistemática calcada nas
explicações:
Todo grande filósofo ainda tem explicado, muitas vezes
sem intenção, seus predecessores de tal modo que parece que, antes dele,
ninguém os entendeu. (p.61)
A construção de uma filosofia para além dos sistemas nos
parece ainda um abismo. O desafio de superação dos sistemas explicativos e
corretivos, exposta por Schlegel, pode se mostrar em clara harmonia com o que
Heidegger detecta em A questão da técnica quando pensa Platão (2001):
O pensador apenas respondeu ao apelo que chegou e que o atingiu. (p.21)
De fato, o que um pensador produz lhe é fruto
daquilo que lhe chega como escuta e o convoca a pensar. Porém, o que um sistema
filosófico, na contemporaneidade, pode suscitar, depois de muitas verificações
e reconstruções, enquanto paixão?
Uma poética do reencontro, em que filosofia e obra de
arte se estabeleçam como ponte de teorização, pode ser a faísca de todo uma
experiência de pensamento que, durante várias estações, permaneça como uma
questão de vigor e cuidado. Que, de fato, preserve as origens do filosofar
enquanto potencialidade da pergunta e não como confecção de respostas acabadas.
Uma questão de vigor é uma questão que o tempo insiste,
de feitio cuidadoso, em semear. É uma questão que permanece a promover, mesmo
depois de uma resposta, uma nova questão. Entendemos que, trilhando os caminhos
da poética, a filosofia contemporânea continuará despertando paixões futuras.
Continuará a tecer os mistérios do futuro a partir do tecido enigmático da
memória.
Em uma poética de apreensão e apego ao sentido, essa
faísca da temporalidade permanente de uma questão imprime uma forma de educação
do olhar. Educação que se dedica à palavra proferida pelos grandes poetas. Uma
educação em favor de uma compreensão mais vasta de linguagem, pensamento e
liberdade.
A palavra assim pensada pode ser apreendida em seu
esplendor poético numa travessia que re-unifica poesia e filosofia como
integração do pensar originário dos pensadores pré-conceituais sem negar,
entretanto, a potencialidade humana para formular conceitos e sistemas.
Na poesia, a filosofia adquire concretude e poeticamente
reencontra a harmonia de uma era outrora celebrada:
...O poeta funda a permanência antes mesmo que a
filosofia possa tomá-la por tema preferencial. Antes que a filosofia pudesse
ter perseverado na obstinada procura do que é permanente. A filosofia se inicia
como o saber do canto do bardo e depois se perde desse recanto. Ao perder-se do
instante poético do canto fica perdida do que, no dizer de Nietzsche, é o que é
grande no homem que é “ser uma ponte e não um ponto final (JARDIM, 2004:07)
A inversão das separações ou fragmentações toma como guia
a lógica da reunião. Palavra esta que, na modernidade fragmentada pela
robotização da técnica, pode muito incomodar as retóricas da engrenagem
reprodutiva do poder. Pensar poeticamente o real integra as experiências do
mundo a vastidão do saber. A saga dá linguagem, enquanto pensar poético, se
direciona para esse saber em que tudo reunir é o sentido do conhecimento.
Condiz com o pensar poético a superação concreta do
estruturalismo conceitual, dos paradigmas cartesianos e metafísicos e das
tendências do cientificismo que enrijece a percepção contemporânea promovida
também pelo principio da fragmentação da ciência.
Tal pensamento re-unificador, como se
manifesta em Schopenhauer, pelo viés da proximidade entre musicalidade,
tragicidade e filosofia, e principalmente em Heidegger, pelo viés da filosofia
e da poesia, significa uma nova condição do pensar oposta ao perfil
fragmentário da realidade e da academia.
Logo, é evidente que a política contemporânea das fragmentações é posta
em questão, uma vez que toda a estrutura cultural e societária redunda em
fragmentos espaçados sem interligação.
Respaldados por essas questões, procuraremos refletir
sobre algumas dimensões poéticas a fim de pensar concretamente o entre-lugar
entre poesia e filosofia.
5.2 - Schopenhauer e Machado de Assis
Não
há como indicar com convicção em que medida Machado de Assis tenha sido leitor
da obra de Schopenhauer. Mas é concreta a proximidade entre as esferas de
pensamento constituídas por suas obras.
Machado
(2000) é consagrado como prosador da vitalidade trágica e irônica da vida, que
a rigor a crítica pouco comenta como obra poética. Entretanto, o amor e o
egoísmo a que o poema de Machado, a seguir se refere, nos lançam no abismo de
uma estranha aporia que, sem hesitações, nos remetem ao pensamento de
Schopenhauer:
Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entanhas
Com a sofreguidão da fome insaciável.
Habita juntamente os vales e as montanhas;
E no mar, que se rasga, à maneira de abismo
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas
Traz impresso na fronte o obscuro despotismo
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e de egoísmo (p318)
Quando nos referimos à obra poética de Machado também nos
referimos ao eixo de tematização da prosa poética de seus romances em que o
amar se de-sencanta para que o egoísmo e o jogo de interesses ocupe a cena da
ironia.
Nesses romances se resguarda o sobrevôo de um sarcasmo
quanto aos caminhos do homem, apontando a vida como dilema que busca encaminhar
a percepção do leitor para a resolução da morte como saída para a liberdade.
Morte nesse sentido constrói um caminho para o liberta-se, uma vez que a
dimensão da liberdade, promulgada pelo humanismo exacerbado em defesa do
discurso da vida, tornou-se opaco e apropriado aos interesses de poder. Tal como se constitui o pensamento de
Schopenhauer, a vida ganha uma significação inovadora por meio da questão da
morte. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas tal observação parece-nos
ampla:
...Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos
interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a
disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que
faz a consciência; e o melhor da obrigação é quando, a força de embaçar os
outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame,
que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vicio hediondo. Mas na
morte, que diferença! que desabafo!que liberdade! Como a gente sacudir fora a
capa, deitar o fosso as lantejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se,
confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser.. (ASSIS, 1982: 54)
Também nesse caminho, o poema a seguir constitui uma
noção de morte, como apreendemos em Schopenhauer, entrelaçada a vida corrosiva
dos homens, quando no poema a escuta do sentido se mantém livre de uma
compreensão da morte como negatividade:
Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri, como gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso
Para ela o chacal é, como a rola, inerme;
E caminha na terra imperturbável, como
Pelo vasto areal um vasto paquiderme
Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
Vem a folha que lento e lento se desdobra,
Depois a flor, depois o suspira do pomo.
Pois essa criatura está em toda a obra:
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto
E é nesse destruir que as suas forças dobra.
Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida,
E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a vida. (ASSIS,
2000:319)
O
poema instiga a lenta reflexão. Tece um abrigo para a certeza da finitude cuja
significação passa do plano do que é terrificante, para o plano da vitalidade,
em um movimento que indica uma nova percepção da finitude A possibilidade da
vida ganha um novo sentido, uma vez que a condição mortal nos ensina o que é o
valor de uma vida lúcida para a brevidade da existência.
O fim, como renovação da terra ou como vigência da vida
preservada pelo vigor da temporalidade da morte, educa-nos para o amanhecer. O
tempo de vida passa a ser visto como acontecimento, como tempo da presença e de
uma leitura autônoma em relação aos séculos de monopólio da visão metafísica do
mundo. Inclusive, uma visão que Schopenhauer apontara como um consolo, como
indicamos na passagem dedicada ao pensador.
5.3 -Manoel de Barros e Heidegger: o Pescar dos
Desperdícios e a questão político-societaria no poético
Em Manoel de Barros, o filósofo e o poeta habitam uma
mesma concretude que resgata a poesia de uma conotação minimalista e a conduz
para o âmago da discussão societária. Para as muitas leituras de Manoel de
Barros, como poeta da simplicidade, não dedicamos louvores aqui. Procuramos
dissertar em outro sentido sobre alguns de seus poemas. Mas especificamente,
procuraremos refletir a luz do que Heidegger (2001) referencia quanto à poética
de Hölderlin:
Quando Hölderlin ousa
dizer, no entanto, que o habitar dos mortais é poético, essas palavras,
levemente pronunciadas, dão a impressão de que o habitar “poético é
precisamente o que arranca os homens da terra. Pois o poético parece pertencer,
quanto ao seu valor poético, ao reino da fantasia. O habitar poético sobrevoa
fantasticamente o real. O poeta faz face a esse temor e diz, com propriedade,
que o habitar poético é o habitar “esta terra”. Assim, Hölderlin não somente
protege o poético contra a sua incompreensão usual corriqueira, mas,
acrescentando as palavras “esta terra”, remete para o vigor essencial da
poesia. A poesia não sobrevoa e nem se eleva sobre a terra a fim de abandoná-la
e pairar sobre ela. É a poesia que traz o homem para a terra, para ela, e assim
o traz para um habitar. (p.169)
De fato, em muitos poemas de Manoel de Barros, poucos
elementos podem ressaltar os olhos de um leitor ávido pela diretriz romantizada
da tradição da poética brasileira. Por outro lado, a obra de Manoel de Barros é
um caso singular de primor poético pela experiência sensível dos “desperdícios
fundamentais” como vimos em Schopenhauer no caminho de uma educação dos
detalhes. A percepção das miudezas torna-se uma forma integradora de pensar o
quanto se entificou e banalizou a sensibilidade humanista nos tempos da técnica
e da cientificidade objetiva.
O texto é produzido em um processo de contemplação do que
se abriga no detalhes da natureza. Concomitantemente, o eu que apresenta no
poema vivencia cada mínimo detalhe na busca expressiva de uma desertificação do
próprio eu:
Percorro todas as tardes um quarteirão de paredes nuas.
Nuas e sujas de idade e ventos.
Vejo muitos rascunhos de pernas de grilos pregados nas
pedras.
As pedras, entretanto, são mais favoráveis a pernas de
moscas do que de grilos.
Pequenos caracóis deixaram suas casas pregadas nestas
pedras
e as suas lesmas saíram por aí à procura de outras
paredes.
Asas misgalhadinhas de borboletas tingem de azul estas
pedras.
Uma espécie de gosto por tais miudezas me paralisa.
Caminho todas as tardes por estes quarteirões desertos, é
certo.
Mas nunca tenho certeza se estou percorrendo o quarteirão
deserto
Ou algum deserto em mim (BARROS, 2005:31)
Para quem pretende dedicar-se a conhecer a condição
humana em seu intimo, em todos os fenômenos e adversidades, parece que a
criação poética apresenta minúcias muito mais legitimas do que conseguiram os
psicólogos e os sociólogos.
A contemplação poética eterniza as temporalidades do
mundo, captadas em instantes e assim o tempo se desdobra lentamente em Manoel
de Barros. O poema, na contramão do tempo acelerado da vida moderna e da
política cientificista, desencadeia o caminhar do caramujo como fundamento de
uma ordem paciente dos acontecimentos:
Há um comportamento de eternidade nos caramujos
Para subir os barrancos de um rio, eles percorrem um dia
inteiro até chegar amanhã.
O próprio anoitecer faz parte de haver beleza nos
caramujos
Eles carregam com paciência o início do mundo
No geral os caramujos tem uma voz desconformada por
dentro.
Talvez porque tenham a boca trôpega.
Suas verdades podem não ser.
Desde quando a infância nos praticava na beira do rio
Nunca mais deixei de saber que esses pequenos moluscos
Ajudam as árvores a crescer.
E achei que esta história só caberia no impossível.
Mas não; ela cabe aqui também. (BARROS, 2005:319)
A vivência poética de Manoel de Barros, pois, delineia as
afirmações múltiplas do desejo de vida em um tempo sem correrias e atropelos,
estabelecendo novos sentidos aos vazios presentes nos labirintos das
experiências humanas.
Antes de seu estágio escritural, o poético se revela na
construção de um olhar, de uma sensibilidade que pode re-constituir uma
dimensão mais saborosa de real à medida que a sensibilidade humana se desloca
de sua passividade pragmática. O que se entende por sabor mediante essa
perspectiva? O que haverá de convergência entre poética e sabor?
O sabor a que nos referimos se dá a partir do encontro
com a poiesis, ou seja, a partir de uma forma inaugural de leitura da
vida, de um nascimento para a essência de todo agir como obra de uma atenta e
imprescindível escuta do silêncio como nos dedicamos a pensar durante vários
momentos no transcorrer desse trabalho. Não haveria por que Manoel de Barros
não dedicar ao silêncio um poema de profunda escuta e criticidade:
Uso a palavra para compor meus silêncios
Não gosto das palavras fatigadas de informar
Dou mais respeito as que vivem de barriga no chão
Tipo água pedra sapo
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres
desimportantes
Prezo insetos mais que aviões
Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença
Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos
Tenho abundância de ser feliz por isso
Meu quintal é maior do que o mundo
Sou um apanhador de desperdícios
Amo os restos como as boas moscas
Queria que minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios (BARROS, 2003 p.39)
Escuta esta que também se opõe verticalmente à obviedade
da vida cotidiana dentro das grandes metrópoles. O que é imperceptível pode
possuir uma grandeza maior do que os exageros da técnica moderna e da já
debatida política fragmentada da cientificidade objetiva.
O tolo é tomado pela tolice quando acredita que o detalhe
é insignificante e, portanto, descartável. Assim, o tolo vagara desacautelado
pelo tempo e, mesmo que viva as glórias instantâneas, sucumbirá daqui a poucas
gerações. A significância do pormenor, como vimos em Schopenhauer, põe em
evidência a grandeza do todo. Isso é inegável: o tempo só engrandece as coisas
que manifestam o que é bom na medida dos mínimos detalhes:
Mosca dependurada na beira de um ralo
Acho mais importante do que uma jóia pendente.
Os pequenos invólucros para múmias de passarinhos que os
antigos egípcios faziam
Acho mais importante do que o sarcófago de Tutancâmon.
O homem que deixou a vida por se sentir um esgoto
Acho mais importante do que uma Usina Nuclear.
Aliás, o cu de uma formiga é também muito mais importante
do que uma Usina Nuclear.
As coisas que não têm dimensões são muito importantes.
Assim, o pássaro tu-you-you é mais importante por
seus pronomes do que por seu tamanho de crescer.
É no ínfimo que eu vejo a exuberância.
(BARROS, 200$ p.55)
Em termos contemporâneos, o estatuto conceitual de
estruturas líricas, que a crítica literária dissemina pode suscitar
prerrogativas teóricas de certa relevância[1],
mas somente a leitura pro-funda do poema pode traduzir, por vias múltiplas, a
possibilidade de teorização e formação do discurso do libertar-se. Nesse
sentido, a linguagem enaltece um caminho de reflexão mediante o perfil maquinal
da vida sistêmica. Assim nos diz o poema de Manoel de Barros (!999):
A Máquina
Trabalha com secos e molhados
É ninfômana
Agarra seus homens
Vai a chás de caridade
Ajuda os mais fracos a passarem fome
E dá as crianças o direito inalienável ao
Sofrimento na forma e de acordo com
A lei e as possibilidades de cada uma (p.45)
A passagem reproduz a indignação e a ironia que se
harmonizam como edificação crítica da palavra poética. O teor inconformista da
palavra poética, frente à densidade de uma realidade dominada pela violência da
vaidade humana, é exposto mediante um quadro de supressão social que vigora na
contemporaneidade: um tipo de praga, cuja vigência, na modernidade, o humano
perpetua e aceita de forma cada vez mais homogênea, como realização política e
cultural de um tempo corrupto em todos os seus domínios.
VI – Considerações Finais: do desfecho as questões
Com
base nas questões desenvolvidas em cada capítulo cabe nesse desfecho algumas
perguntas: não será o questionamento poético profícuo em termos de teorização
sobre a sociedade moderna? Não haverá na poética o despertar definitivo da
filosofia de seu sono metafísico e conceitual, transformando-a em um cuidadoso
espaço de reflexão política e societária? O que significa “o direito
inalienável ao sofrimento” ao qual se reporta o poema derradeiro de Manoel de
Barros citado no capítulo anterior?
Em
nosso debate, tornou-se clara a motivação de uma construção poética, enquanto
jornada de amadurecimento e transformação que tem como foco repensar a
importância do que não é considerado como unidade, mas que sempre permanece em
conexão.
Hoje,
a tênue limitação ou diferença entre homens e máquinas suscita um novo conceito
de metafísica que beira a epicidade: o homem da cibernética. Nesse sentido, há
no projeto da modernidade uma perpetuação de um imaginário em que a condensação
da máquina e do homem, promovida pela deusa ciência, determinam o surgimento de
um mutante, cuja “humanização” bárbara supera o excessivo altruísmo de seu
criador.
O Frankenstein
da técnica subjaz velado e ameaçador no núcleo das ideologias da ciência
objetiva. Desde de tempos juvenis, a altivez do pensamento schopenhauriano nos
inclinou a pensar a tragicidade da vontade humana, cujas proporções tomaram
conta do projeto político agora vigente no neoliberalismo. Os desenfreados
padrões de afirmação da vontade humanista condizem, amplamente, com a apoteose
nuclear, embora os discursos da paz sejam tão proferidos.
O
que significa tal realização? O que nos reserva a cibernética e a clonagem como
dizer futuro? O que de humano resistirá poeticamente no homem-máquina?
Frente
à parafernália tecnológica da civilização moderna, pensar a questão poética é
uma benesse indispensável da paixão que se mostra com o dizer do tempo num
tempo de políticas opacas. Esse caminho revela a fonte plural de toda teoria,
como nos diz Heidegger (2001), que se mantém viva no filosofar das obras de
arte como o diálogo permanente para além das rédeas sistemáticas do poder
político. Uma fonte que delineia a instauração da verdade a partir da obra de
arte.
Nesse
caminho, a Linguagem é a travessia e a poética é a ponte pela qual a linguagem
nos atravessa, nos lançando ao desafio de entrelaçamento de qualquer discussão,
seja de ordem política, cultural ou filosófica. A teoria poética permite que a
filosofia e a arte sejam cruzadas de forma que o pensar se integre ao mundo
como unidade.
Nesse
ínterim, a única medida teórica que nos solicita a pensar tais questões é,
precisamente, não esquadrinhar uma resposta e sim resguardar as questões.
Questões que para o futuro homem da cibernética estão completamente obnubiladas
pela entificação cada vez mais exacerbada do ser. Em breve, no coração das
grandes cidades, quando todos estiverem a cruzar os céus com seus poderosos
automóveis voadores, a pergunta sobre o ser estará, por fim, marcada pela
impossibilidade do homem da cibernética permitir-se um habitar/experienciar
poético, mesmo que a brevidade da vida assim permita.
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[1]
O conhecimento técnico da arte e da poesia (normas de versificação) é um
critério relevante em termos teóricos. Porém, é um saber irrelevante em termos
poéticos de apreensão da obra de arte e de seu sentido.