V – UMA QUESTÃO DE UNIDADE: FILOSOFIA E SOCIEDADE NOS CAMINHOS DO PENSAR POETICO

 

O que se pode fazer, enquanto filosofia e poesia estão separadas, está feito, perfeito e acabado. Portanto é tempo de unificar as duas. (SCHLEGEL, 1997:158)

 

O filosofar ainda continua presente como obra de arte, mesmo quando não pode ser demonstrado como construção filosófica. (NIETZSCHE, 2004:20)

 

Talvez se possa falar da poesia poeticamente, o que, todavia, não quer dizer em versos e rimas. Por conseguinte, falar de poesia não tem de ser forçosamente um ocioso falar “em torno de” e “sobre” poemas. Mais difícil e suspeito é, porém, outra coisa: que, agora, a Filosofia se lance sobre uma obra poética. (HEIDEGGER, 2004:13)

 

 

5.1 - Poética e Filosofia

 

Poesia, como poiesis, e Filosofia possuem, de alguma forma, um entre-lugar que reside no debate sobre o conceito da verdade e que se prolonga na história desde os antigos pensadores como Heráclito, em Platão e Aristóteles e em toda tradição moderna de estudo da obra de arte. Uma tradição moderna que poderia ser focada a partir de Fichte, Kant, Baungartem, Schopenhauer, Schlegel, Novalis, Goethe, Wagner, Nietzsche, Auerbach, Heidegger, Sartre, Thomas Mann, Bachelard e outros nomes, não de menor significação.

 

Entretanto destacamos Schopenhauer e Heidegger por serem  pensadores cujas obras, por vias diferentes, apresentam a conexão entre arte e filosofia. Enfatizar tais pensadores não se justifica somente por admiração, mas pela dedicação ao estudo da obra de arte e a significação que tais reflexões possuem.

 

O que significa, pois, uma filosofia posta em vigor numa consonância com a dimensão da poesia? Como pensar, de forma contemporânea, uma unidade entre filosofia e poesia, se os desdobramentos históricos da tradição identificaram a filosofia como discurso da totalidade e a poesia como discurso do eu-manifestante, o nomeado eu-lírico pelas escolas críticas?

 

Além disso, até que ponto essas nomenclaturas e conceituações fragmentam o sentido de reunião que o pensamento teórico solicita?

 

É importante dizer que, na contemporaneidade, é inviável pensar numa trajetória de reflexão teórica, no século que agora vivenciamos, sem a experiência da negação da culpa ou do pecado.

 

O viver sem culpa, enquanto manifestação do ser, concretiza a experiência do rompimento ontológico com a tradição metafísico-cristã e inaugura o homem poético como ponte e não como ponto. Somente a vivência livre de culpas pode respirar os ares de uma liberdade necessária a presença da obra de arte. Nesse caminho, parece-nos clara a invocação libertaria tanto da matriz schopenhauriana como da matriz heideggeriana de pensamento.

O pensar, de acordo com tais referencias, torna-se aberto à invocação poética de uma escuta. Essa escuta indica a busca de uma correspondência entre pensar e poetar que, ainda segundo a leitura de Martin Heidegger (1973), permite a formação de uma semântica vasta da noção de linguagem:

 

Mas pelo fato de a poesia, em comparação com o pensamento, estar de modo bem diverso e privilegiado a serviço da linguagem, nosso encontro que medita sobre a filosofia e necessariamente levado a discutir a relação entre pensar e poetar. (p.21)

 

 

Seria pertinente, também, afirmar que a passagem de uma filosofia sistemática para um filosofar de apreensão poética do mundo é um acontecer da liberdade. As possibilidades alternativas que obra de arte possui, enquanto universo hermenêutico, reflete o cosmos do mito grego daquele que resguarda os enigmas dos caminhos.

 

Ora, os grandes sistemas filosóficos da era moderna, como vemos a título de exemplificação em Descartes, Fichte ou Kant, sem reduzi-los em importância, são, em sua maioria, sistemas construídos sob a influência da razão moderna, além de se estabelecerem, sistematicamente, em composições corretivas que visam retificar o que um outro estudioso já havia dito, procurando, pois, estabelecer um “novo” eixo de entendimento do mundo por meio da aplicabilidade de princípios modelares.

 

Nesse sentido, Kant é marcante, uma vez que, enquanto sistematizador filosófico, é de uma competência que talvez jamais possa ser superada.

 

Quando isso não ocorre, ou seja, a formação prática de sistemas, outro fator entre em cena, de forma intencional ou não, e que possui uma carga negativa tanto quanto os sistemas corretivos: a “explicação”. Numa tradução esclarecedora, a questão de Friedrich Schlegel (1997), descrita abaixo, põe em xeque a atitude de uma filosofia sistemática calcada nas explicações:

 

 

Todo grande filósofo ainda tem explicado, muitas vezes sem intenção, seus predecessores de tal modo que parece que, antes dele, ninguém os entendeu. (p.61)

 

 

A construção de uma filosofia para além dos sistemas nos parece ainda um abismo. O desafio de superação dos sistemas explicativos e corretivos, exposta por Schlegel, pode se mostrar em clara harmonia com o que Heidegger detecta em A questão da técnica quando pensa Platão (2001): O pensador apenas respondeu ao apelo que chegou e que o atingiu. (p.21)

 

De fato, o que um pensador produz lhe é fruto daquilo que lhe chega como escuta e o convoca a pensar. Porém, o que um sistema filosófico, na contemporaneidade, pode suscitar, depois de muitas verificações e reconstruções, enquanto paixão?

 

Uma poética do reencontro, em que filosofia e obra de arte se estabeleçam como ponte de teorização, pode ser a faísca de todo uma experiência de pensamento que, durante várias estações, permaneça como uma questão de vigor e cuidado. Que, de fato, preserve as origens do filosofar enquanto potencialidade da pergunta e não como confecção de respostas acabadas.

 

Uma questão de vigor é uma questão que o tempo insiste, de feitio cuidadoso, em semear. É uma questão que permanece a promover, mesmo depois de uma resposta, uma nova questão. Entendemos que, trilhando os caminhos da poética, a filosofia contemporânea continuará despertando paixões futuras. Continuará a tecer os mistérios do futuro a partir do tecido enigmático da memória.

 

Em uma poética de apreensão e apego ao sentido, essa faísca da temporalidade permanente de uma questão imprime uma forma de educação do olhar. Educação que se dedica à palavra proferida pelos grandes poetas. Uma educação em favor de uma compreensão mais vasta de linguagem, pensamento e liberdade.

 

A palavra assim pensada pode ser apreendida em seu esplendor poético numa travessia que re-unifica poesia e filosofia como integração do pensar originário dos pensadores pré-conceituais sem negar, entretanto, a potencialidade humana para formular conceitos e sistemas.

 

Na poesia, a filosofia adquire concretude e poeticamente reencontra a harmonia de uma era outrora celebrada:

 

...O poeta funda a permanência antes mesmo que a filosofia possa tomá-la por tema preferencial. Antes que a filosofia pudesse ter perseverado na obstinada procura do que é permanente. A filosofia se inicia como o saber do canto do bardo e depois se perde desse recanto. Ao perder-se do instante poético do canto fica perdida do que, no dizer de Nietzsche, é o que é grande no homem que é “ser uma ponte e não um ponto final (JARDIM, 2004:07)

 

A inversão das separações ou fragmentações toma como guia a lógica da reunião. Palavra esta que, na modernidade fragmentada pela robotização da técnica, pode muito incomodar as retóricas da engrenagem reprodutiva do poder. Pensar poeticamente o real integra as experiências do mundo a vastidão do saber. A saga dá linguagem, enquanto pensar poético, se direciona para esse saber em que tudo reunir é o sentido do conhecimento.

 

Condiz com o pensar poético a superação concreta do estruturalismo conceitual, dos paradigmas cartesianos e metafísicos e das tendências do cientificismo que enrijece a percepção contemporânea promovida também pelo principio da fragmentação da ciência.

 

Tal pensamento re-unificador, como se manifesta em Schopenhauer, pelo viés da proximidade entre musicalidade, tragicidade e filosofia, e principalmente em Heidegger, pelo viés da filosofia e da poesia, significa uma nova condição do pensar oposta ao perfil fragmentário da realidade e da academia.  Logo, é evidente que a política contemporânea das fragmentações é posta em questão, uma vez que toda a estrutura cultural e societária redunda em fragmentos espaçados sem interligação.   

 

Respaldados por essas questões, procuraremos refletir sobre algumas dimensões poéticas a fim de pensar concretamente o entre-lugar entre poesia e filosofia.

 

5.2 - Schopenhauer e Machado de Assis

 

Não há como indicar com convicção em que medida Machado de Assis tenha sido leitor da obra de Schopenhauer. Mas é concreta a proximidade entre as esferas de pensamento constituídas por suas obras.

 

Machado (2000) é consagrado como prosador da vitalidade trágica e irônica da vida, que a rigor a crítica pouco comenta como obra poética. Entretanto, o amor e o egoísmo a que o poema de Machado, a seguir se refere, nos lançam no abismo de uma estranha aporia que, sem hesitações, nos remetem ao pensamento de Schopenhauer:

 

Sei de uma criatura antiga e formidável,

Que a si mesma devora os membros e as entanhas

Com a sofreguidão da fome insaciável.

 

Habita juntamente os vales e as montanhas;

E no mar, que se rasga, à maneira de abismo

Espreguiça-se toda em convulsões estranhas

 

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo

Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,

Parece uma expansão de amor e de egoísmo (p318)

 

Quando nos referimos à obra poética de Machado também nos referimos ao eixo de tematização da prosa poética de seus romances em que o amar se de-sencanta para que o egoísmo e o jogo de interesses ocupe a cena da ironia.

 

Nesses romances se resguarda o sobrevôo de um sarcasmo quanto aos caminhos do homem, apontando a vida como dilema que busca encaminhar a percepção do leitor para a resolução da morte como saída para a liberdade. Morte nesse sentido constrói um caminho para o liberta-se, uma vez que a dimensão da liberdade, promulgada pelo humanismo exacerbado em defesa do discurso da vida, tornou-se opaco e apropriado aos interesses de poder.   Tal como se constitui o pensamento de Schopenhauer, a vida ganha uma significação inovadora por meio da questão da morte. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas tal observação parece-nos ampla:

 

...Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz a consciência; e o melhor da obrigação é quando, a força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vicio hediondo. Mas na morte, que diferença! que desabafo!que liberdade! Como a gente sacudir fora a capa, deitar o fosso as lantejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser.. (ASSIS, 1982: 54)

 

Também nesse caminho, o poema a seguir constitui uma noção de morte, como apreendemos em Schopenhauer, entrelaçada a vida corrosiva dos homens, quando no poema a escuta do sentido se mantém livre de uma compreensão da morte como negatividade:

 

Friamente contempla o desespero e o gozo,

Gosta do colibri, como gosta do verme,

E cinge ao coração o belo e o monstruoso

 

Para ela o chacal é, como a rola, inerme;

E caminha na terra imperturbável, como

Pelo vasto areal um vasto paquiderme

 

Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo

Vem a folha que lento e lento se desdobra,

Depois a flor, depois o suspira do pomo.

Pois essa criatura está em toda a obra:

Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto

E é nesse destruir que as suas forças dobra.

 

Ama de igual amor o poluto e o impoluto;

Começa e recomeça uma perpétua lida,

E sorrindo obedece ao divino estatuto.

Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a vida. (ASSIS, 2000:319)

 

 

O poema instiga a lenta reflexão. Tece um abrigo para a certeza da finitude cuja significação passa do plano do que é terrificante, para o plano da vitalidade, em um movimento que indica uma nova percepção da finitude A possibilidade da vida ganha um novo sentido, uma vez que a condição mortal nos ensina o que é o valor de uma vida lúcida para a brevidade da existência.

O fim, como renovação da terra ou como vigência da vida preservada pelo vigor da temporalidade da morte, educa-nos para o amanhecer. O tempo de vida passa a ser visto como acontecimento, como tempo da presença e de uma leitura autônoma em relação aos séculos de monopólio da visão metafísica do mundo. Inclusive, uma visão que Schopenhauer apontara como um consolo, como indicamos na passagem dedicada ao pensador.

 

 

5.3 -Manoel de Barros e Heidegger: o Pescar dos Desperdícios e a questão político-societaria no poético

 

Em Manoel de Barros, o filósofo e o poeta habitam uma mesma concretude que resgata a poesia de uma conotação minimalista e a conduz para o âmago da discussão societária. Para as muitas leituras de Manoel de Barros, como poeta da simplicidade, não dedicamos louvores aqui. Procuramos dissertar em outro sentido sobre alguns de seus poemas. Mas especificamente, procuraremos refletir a luz do que Heidegger (2001) referencia quanto à poética de Hölderlin:

Quando Hölderlin ousa dizer, no entanto, que o habitar dos mortais é poético, essas palavras, levemente pronunciadas, dão a impressão de que o habitar “poético é precisamente o que arranca os homens da terra. Pois o poético parece pertencer, quanto ao seu valor poético, ao reino da fantasia. O habitar poético sobrevoa fantasticamente o real. O poeta faz face a esse temor e diz, com propriedade, que o habitar poético é o habitar “esta terra”. Assim, Hölderlin não somente protege o poético contra a sua incompreensão usual corriqueira, mas, acrescentando as palavras “esta terra”, remete para o vigor essencial da poesia. A poesia não sobrevoa e nem se eleva sobre a terra a fim de abandoná-la e pairar sobre ela. É a poesia que traz o homem para a terra, para ela, e assim o traz para um habitar. (p.169)

 

De fato, em muitos poemas de Manoel de Barros, poucos elementos podem ressaltar os olhos de um leitor ávido pela diretriz romantizada da tradição da poética brasileira. Por outro lado, a obra de Manoel de Barros é um caso singular de primor poético pela experiência sensível dos “desperdícios fundamentais” como vimos em Schopenhauer no caminho de uma educação dos detalhes. A percepção das miudezas torna-se uma forma integradora de pensar o quanto se entificou e banalizou a sensibilidade humanista nos tempos da técnica e da cientificidade objetiva.

 

O texto é produzido em um processo de contemplação do que se abriga no detalhes da natureza. Concomitantemente, o eu que apresenta no poema vivencia cada mínimo detalhe na busca expressiva de uma desertificação do próprio eu:

 

Percorro todas as tardes um quarteirão de paredes nuas.

Nuas e sujas de idade e ventos.

Vejo muitos rascunhos de pernas de grilos pregados nas pedras.

As pedras, entretanto, são mais favoráveis a pernas de moscas do que de grilos.

Pequenos caracóis deixaram suas casas pregadas nestas pedras

e as suas lesmas saíram por aí à procura de outras paredes.

Asas misgalhadinhas de borboletas tingem de azul estas pedras.

Uma espécie de gosto por tais miudezas me paralisa.

Caminho todas as tardes por estes quarteirões desertos, é certo.

Mas nunca tenho certeza se estou percorrendo o quarteirão deserto

Ou algum deserto em mim  (BARROS, 2005:31)

 

Para quem pretende dedicar-se a conhecer a condição humana em seu intimo, em todos os fenômenos e adversidades, parece que a criação poética apresenta minúcias muito mais legitimas do que conseguiram os psicólogos e os sociólogos.

 

A contemplação poética eterniza as temporalidades do mundo, captadas em instantes e assim o tempo se desdobra lentamente em Manoel de Barros. O poema, na contramão do tempo acelerado da vida moderna e da política cientificista, desencadeia o caminhar do caramujo como fundamento de uma ordem paciente dos acontecimentos:

 

 

Há um comportamento de eternidade nos caramujos

Para subir os barrancos de um rio, eles percorrem um dia inteiro até chegar amanhã.

O próprio anoitecer faz parte de haver beleza nos caramujos

Eles carregam com paciência o início do mundo

No geral os caramujos tem uma voz desconformada por dentro.

Talvez porque tenham a boca trôpega.

Suas verdades podem não ser.

Desde quando a infância nos praticava na beira do rio

Nunca mais deixei de saber que esses pequenos moluscos

Ajudam as árvores a crescer.

E achei que esta história só caberia no impossível.

Mas não; ela cabe aqui também. (BARROS, 2005:319)

 

A vivência poética de Manoel de Barros, pois, delineia as afirmações múltiplas do desejo de vida em um tempo sem correrias e atropelos, estabelecendo novos sentidos aos vazios presentes nos labirintos das experiências humanas.

 

Antes de seu estágio escritural, o poético se revela na construção de um olhar, de uma sensibilidade que pode re-constituir uma dimensão mais saborosa de real à medida que a sensibilidade humana se desloca de sua passividade pragmática. O que se entende por sabor mediante essa perspectiva? O que haverá de convergência entre poética e sabor?

 

O sabor a que nos referimos se dá a partir do encontro com a poiesis, ou seja, a partir de uma forma inaugural de leitura da vida, de um nascimento para a essência de todo agir como obra de uma atenta e imprescindível escuta do silêncio como nos dedicamos a pensar durante vários momentos no transcorrer desse trabalho. Não haveria por que Manoel de Barros não dedicar ao silêncio um poema de profunda escuta e criticidade:

 

Uso a palavra para compor meus silêncios

Não gosto das palavras fatigadas de informar

Dou mais respeito as que vivem de barriga no chão

Tipo água pedra sapo

Entendo bem o sotaque das águas

Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes

Prezo insetos mais que aviões

Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis.

Tenho em mim esse atraso de nascença

Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos

Tenho abundância de ser feliz por isso

Meu quintal é maior do que o mundo

Sou um apanhador de desperdícios

Amo os restos como as boas moscas

Queria que minha voz tivesse um formato de canto.

Porque eu não sou da informática:

eu sou da invencionática.

Só uso a palavra para compor meus silêncios (BARROS, 2003 p.39)

 

 

Escuta esta que também se opõe verticalmente à obviedade da vida cotidiana dentro das grandes metrópoles. O que é imperceptível pode possuir uma grandeza maior do que os exageros da técnica moderna e da já debatida política fragmentada da cientificidade objetiva.

 

O tolo é tomado pela tolice quando acredita que o detalhe é insignificante e, portanto, descartável. Assim, o tolo vagara desacautelado pelo tempo e, mesmo que viva as glórias instantâneas, sucumbirá daqui a poucas gerações. A significância do pormenor, como vimos em Schopenhauer, põe em evidência a grandeza do todo. Isso é inegável: o tempo só engrandece as coisas que manifestam o que é bom na medida dos mínimos detalhes:

 

Mosca dependurada na beira de um ralo

Acho mais importante do que uma jóia pendente.

Os pequenos invólucros para múmias de passarinhos que os antigos egípcios faziam

Acho mais importante do que o sarcófago de Tutancâmon.

O homem que deixou a vida por se sentir um esgoto

Acho mais importante do que uma Usina Nuclear.

Aliás, o cu de uma formiga é também muito mais importante do que uma Usina Nuclear.

As coisas que não têm dimensões são muito importantes.

Assim, o pássaro tu-you-you é mais importante por seus pronomes do que por seu tamanho de crescer.

É no ínfimo que eu vejo a exuberância. (BARROS, 200$ p.55)

 

 

Em termos contemporâneos, o estatuto conceitual de estruturas líricas, que a crítica literária dissemina pode suscitar prerrogativas teóricas de certa relevância[1], mas somente a leitura pro-funda do poema pode traduzir, por vias múltiplas, a possibilidade de teorização e formação do discurso do libertar-se. Nesse sentido, a linguagem enaltece um caminho de reflexão mediante o perfil maquinal da vida sistêmica. Assim nos diz o poema de Manoel de Barros (!999):

 

A Máquina

Trabalha com secos e molhados

É ninfômana

Agarra seus homens

Vai a chás de caridade

Ajuda os mais fracos a passarem fome

E dá as crianças o direito inalienável ao

Sofrimento na forma e de acordo com

A lei e as possibilidades de cada uma (p.45)

 

A passagem reproduz a indignação e a ironia que se harmonizam como edificação crítica da palavra poética. O teor inconformista da palavra poética, frente à densidade de uma realidade dominada pela violência da vaidade humana, é exposto mediante um quadro de supressão social que vigora na contemporaneidade: um tipo de praga, cuja vigência, na modernidade, o humano perpetua e aceita de forma cada vez mais homogênea, como realização política e cultural de um tempo corrupto em todos os seus domínios.

VI – Considerações Finais: do desfecho as questões

 

Com base nas questões desenvolvidas em cada capítulo cabe nesse desfecho algumas perguntas: não será o questionamento poético profícuo em termos de teorização sobre a sociedade moderna? Não haverá na poética o despertar definitivo da filosofia de seu sono metafísico e conceitual, transformando-a em um cuidadoso espaço de reflexão política e societária? O que significa “o direito inalienável ao sofrimento” ao qual se reporta o poema derradeiro de Manoel de Barros citado no capítulo anterior?

 

Em nosso debate, tornou-se clara a motivação de uma construção poética, enquanto jornada de amadurecimento e transformação que tem como foco repensar a importância do que não é considerado como unidade, mas que sempre permanece em conexão.

 

Hoje, a tênue limitação ou diferença entre homens e máquinas suscita um novo conceito de metafísica que beira a epicidade: o homem da cibernética. Nesse sentido, há no projeto da modernidade uma perpetuação de um imaginário em que a condensação da máquina e do homem, promovida pela deusa ciência, determinam o surgimento de um mutante, cuja “humanização” bárbara supera o excessivo altruísmo de seu criador.

 

O Frankenstein da técnica subjaz velado e ameaçador no núcleo das ideologias da ciência objetiva. Desde de tempos juvenis, a altivez do pensamento schopenhauriano nos inclinou a pensar a tragicidade da vontade humana, cujas proporções tomaram conta do projeto político agora vigente no neoliberalismo. Os desenfreados padrões de afirmação da vontade humanista condizem, amplamente, com a apoteose nuclear, embora os discursos da paz sejam tão proferidos.

 

O que significa tal realização? O que nos reserva a cibernética e a clonagem como dizer futuro? O que de humano resistirá poeticamente no homem-máquina?

 

Frente à parafernália tecnológica da civilização moderna, pensar a questão poética é uma benesse indispensável da paixão que se mostra com o dizer do tempo num tempo de políticas opacas. Esse caminho revela a fonte plural de toda teoria, como nos diz Heidegger (2001), que se mantém viva no filosofar das obras de arte como o diálogo permanente para além das rédeas sistemáticas do poder político. Uma fonte que delineia a instauração da verdade a partir da obra de arte.

 

Nesse caminho, a Linguagem é a travessia e a poética é a ponte pela qual a linguagem nos atravessa, nos lançando ao desafio de entrelaçamento de qualquer discussão, seja de ordem política, cultural ou filosófica. A teoria poética permite que a filosofia e a arte sejam cruzadas de forma que o pensar se integre ao mundo como unidade.

 

Nesse ínterim, a única medida teórica que nos solicita a pensar tais questões é, precisamente, não esquadrinhar uma resposta e sim resguardar as questões. Questões que para o futuro homem da cibernética estão completamente obnubiladas pela entificação cada vez mais exacerbada do ser. Em breve, no coração das grandes cidades, quando todos estiverem a cruzar os céus com seus poderosos automóveis voadores, a pergunta sobre o ser estará, por fim, marcada pela impossibilidade do homem da cibernética permitir-se um habitar/experienciar poético, mesmo que a brevidade da vida assim permita.

 

 

 

 

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________. Sobre o Ofício do Escritor São Paulo: Martins Fontes, 2005.

 

________.A arte de ser feliz: exposta em 50 máximas. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

 

________.A Sabedoria da Vida. São Paulo: Cultura Moderna, 1976.

 

________Da Morte, Metafísica do Amor, Do Sofrimento do Mundo. São Paulo: Martin Claret, 2001.

 

________Fragmentos para a História da Filosofia. Tradução, Apresentação e notas Maria Lúcia Cacciola. São Paulo: Iluminuras Ltda, 2003.

 

SÊNECA. Sobre a Brevidade da Vida. São Paulo: Nova Alexandria, 1993.

Textos, Compilações e Enciclopédias.

 

WEISSMANN, Karl. Vida de Schopenhauer. Belo Horizonte: Itatiaia Limitada, 1980.

 

 

Referências virtuais

 

http://www.memoriaviva.com.br/drummond/index2.htm. acesso em 10/ 10 2006

 

 

 

 

 

 

 



[1]           O conhecimento técnico da arte e da poesia (normas de versificação) é um critério relevante em termos teóricos. Porém, é um saber irrelevante em termos poéticos de apreensão da obra de arte e de seu sentido.