Ângela Beatriz Faria *
Cadáveres fecundos dão o alarme do ritmo
que
digere a noite
(Morfismos, Fiamma Hasse Pais
Brandão)
Procuro um rosto ausente. Um homem que
partiu, que se ausentou. Não digas nada,
que
sabes tu das coisas. Da ausência, da morte
eu sei. Do amor eu sei, é um salto no
escuro
(Paisagem
com mulher e mar ao fundo,
Teolinda Gersão)
Após a Revolução de 25 de
Abril de 1974, ocorrida em Portugal, e denominada “Revolução dos Cravos”, uma
série de obras literárias, suscitadas pela memória individual e coletiva, se
consolidam em torno do questionamento das normas de representação e da relação
entre arte, vida e política ditatorial.
Entre outras vozes femininas, representantes da ficção portuguesa
contemporânea, surge a de Teolinda
Gersão, manifesta através do romance Paisagem
com mulher e mar ao fundo ( publicado em 1982) e que aponta,na ultrapassagem dos
sentidos, propiciada pela memória, a presença de corpos ativos e solidários na
História.
O romance em questão, segundo Isabel
Allegro de Magalhães, em O tempo das
mulheres, encena uma viagem na dor ou, se preferirem, a história de alguém
que fala de si como de um nome voltado para a morte. Assim nos deparamos com Hortense, a narradora
principal da obra que, ao empreender uma queda no abismo dos espelhos,
inerentes à memória, constata que “perdeu, de repente, a sua vida” e “não
reconhece o seu rosto refletido na vidraça” (PMM,11). Isso deve-se à vivência de uma situação-limite e de uma
melancolia extrema, decorrentes de um
trauma provocado pela cena política ditatorial – a perda do marido, arquiteto
demitido pelo salazarismo e do filho, também arquiteto, morto na guerra colonial
africana. No entanto, a percepção sensorial do mundo, inerente à essa
personagem feminina, torna-se passível de apreender os ritmos da Natureza e da
História[1] e,
por isso, “marés cheias” e “marés vazias” alternam-se nas cenas social e
existencial. “Diz-nos o texto que é duma
situação de opressão, paralisada e vazia – a maré vaza dum povo - , que se
parte para uma transformação”. 1
Como levar a cabo o trabalho de luto
pressupõe, sobretudo, a capacidade de contar uma história sobre o passado , resta a essa personagem feminina recuperar,
através da memória, a sua configuração identitária e a dos entes queridos
entrelaçada à história-pátria. Assim, Horácio (o marido) e Pedro (o filho) –
ambos mortos em decorrência do regime político - tornam-se “cadáveres fecundos”
que “dão o alarme do ritmo que digere a noite” fascista. Assim, veremos “um
povo de afogados” (PMM, 109), “um
povo embarcado, sem força nem vontade, no barco da loucura”, “um povo perdido
pela noite” (PMM,113) transformar “a
terra da opressão” (PMM, 114) em “a
terra dos homens em festa” (PMM,124),
após um movimento de sublevação que remete, alegoricamente, à Revolução de
Abril e à queda do regime salazarista. As personagens, náufragas de um mar imaginário, emergem para
a vida.
O tema da morte – aludido nas epígrafes
e presente em Paisagem com mulher e mar
ao fundo - nos leva, portanto, à
história trágico-política de sujeitos à beira-mar sitiados por instituições,
agentes e monumentos representantes do
fascismo[2]2 (aqui emblematizado pela sigla O.
S. =
Oliveira Salazar e pelo “Senhor
do Mar” – representação de um santo e/ou deus padroeiro de uma aldeia
interiorana, imagem profanada e
derrubada de seu andor, durante a procissão, e
destituída de seu poder e
onipotência). Diz-nos o texto, ao articular uma utopia revolucionária,
que “o mundo”, portanto, “se faz com as
mãos ou a vida” (PMM,56).
No romance de Teolinda Gersão, o
corpo metafórico da linguagem se confunde com o corpo do sujeito textual,
enredado na trama narrativa e inscreve a utopia citada, uma vez que “há toda
uma transformação subterrânea que sem se dar conta se opera e de súbito há
outro horizonte possível” (PMM,56).
Após a catarse coletiva da queda do regime salazarista, observa-se o retorno à
terra natal dos emigrados: “Um povo perdido pelo mundo reunindo os pedaços
dispersos do seu corpo e voltando. Pisando outra vez a terra abandonada e agora
sua, finalmente sua, se a luta das suas mãos não afrouxar.” (PMM, 169). Atente-se para o emprego do
gerúndio ao registrar os movimentos de deslocação ou êxod , para o advérbio
“agora” capaz de contextualizar o momento histórico, para a incidência do
pronome possessivo “sua” assinalando o pertencimento, assim como para o emprego
do condicional “se” que referencia a indeterminação histórica de uma pátria em
suspensão, marcada pela euforia momentânea.
Se antes havia “corpos arruinados pela história-documento, agora há
corpos transformados pela linguagem-acontecimento”: os corpos doente e mutilado
de Horácio e Pedro, respectivamente, que sonhavam construir uma outra ordem
social tornam- se fecundos; o corpo “cindido” e “dividido” de Hortense,
circunscrito ao desejo de morte anunciada, torna-se íntegro e solidário no
feminino, ao salvar Clara do suicídio
pretendido. Alguns fragmentos textuais revelam uma síntese da sexualidade e da
linguagem como práticas libertárias do corpo (PMM, 34-35). Assim, lemos: “... marca-me bem fundo, no corpo, na
memória, para que nenhum tempo nem distância te possam apagar” (PMM, 135).
Convém lembrar que essa postura já se evidenciava no grupo Poesia 61, como atesta, de forma lúcida e inteligente, Jorge
Fernandes da Silveira, ao apontar a existência “do erotismo do corpo e do
prazer da linguagem contra a frieza das coisas mortas”.
A dimensão da escrita auto-reflexiva
e inovadora, ao assinalar que o conceito de identidade não existe fora da
linguagem e dos poderes que a estruturam,
aponta a transição das “palavras que eram casas vazias” (PMM, 20) para as “palavras que renasciam em labaredas” (PMM, 111). Insinua-se, no espaço
textual, a utopia da escrita, através da referência às “palavras que podem ter
mais força do que as armas” (PMM,
101). Entre as estratégias de
representação, ressalta-se a epígrafe do romance citado, que desvela a
incorporação de fragmentos textuais da autoria de Le Corbusier e Raul Brandão (pistas
falsas ou verdadeiras?) e atribui a autoria do texto a vozes alheias
reveladoras de revolta, sonho e utopia.
A intencionalidade da autora, portanto, é convocar o outro, proceder a
um reconhecimento identitário e solidário, pois “é da força do amor que nasce o
mundo” a ser construído, politicamente, por mãos coletivas. Por vezes, no espaço textual, as vozes se
confundem, se superpõem e se
entrelaçam, estratégia discursiva
proposital e contra-ideológica que se opõe à voz do Senhor do Mar,
inconfundível, onipotente e onipresente. A narrativa estilhaça-se em três
partes, que incorporam paisagens com mulheres e mar ao fundo. Implícita a ela
observa-se a interpenetração do tempo presente com o tempo captado pela memória
– lugar em que se enreda a espessura de cada ser e o equilíbrio, prestes a
romper-se, de cada uma das instâncias discursivas.
No romance de Teolinda Gersão, há
uma paisagem externa transfigurada pela sensibilidade do sujeito e vista pelos
olhos de duas mulheres marcadas pela morte prematura do outro com quem
convivem. Referimo-nos à Hortense e Clara, respectivamente, sogra e nora, mãe e
mulher de Pedro, aquele que foi tragado pela absurda e arbitrária guerra
colonial em África. Ambas reatualizam, através de suas reminiscências, “um
corpo fantasmado, de ausência” (PMM, 61). Nessas personagens femininas,
desejo de morte e melancolia se confundem, pois, (e faço minhas as palavras de
Eduardo Lourenço, em Mitologia da saudade):
“ No fundo, toda a melancolia é já espelho, lugar em que se quebram as núpcias reais
entre o “eu” e a vida, em que o presente se
interrompe, suavemente repelido
pelo sentimento de fragilidade ontológica no teatro do mundo.” 3
Essas mulheres vivenciam “a angústia
que leva o ser à beira da própria negação, a consciência de sua própria
finitude, na acepção heideggeriana de “seres-fadados-para-a-morte” – a morte
imaginada e vivida como absoluta falta de escolha”.4
No entanto, a narrativa de Teolinda Gersão,
na contramão da maioria dos autores de seu tempo, não se instaura como uma narrativa de trevas (como poderia
parecer à primeira vista) e sim como uma narrativa solar. Clara e Hortense
ultrapassam a queda irreversível no abismo do espelho da melancolia e saltam da
morte para a vida. O desejo de suicídio
de Clara, grávida de um filho de Pedro, não se concretiza, uma vez que ela é
salva por Hortense, cujas atitudes e palavras são fundamentais: “– mas só tu
podes vencer a tua morte, digo, porque nenhuma experiência, nenhuma verdade se
transmite” (PMM,195).
É interessante observar como as
personagens femininas livram-se de sua paralisia melancólica e triunfam sobre o
luto e o desejo de morte – redenção ratificada e replicada pelo sobrevivente
filho de Clara, “um pequeno corpo húmido, perfeito, sufocado, abrindo uma
passagem, puxado por outras mãos através de uma passagem, experimentando
bruscamente o ar e o espaço, o choque da sombra contra a luz” ((PMM, 196).
Esse último parágrafo do romance
leva-nos a considerar esse nascimento uma alegoria da vitória e de um novo
devir histórico, o “intempestivo” de Nietzsche, o “futuro aberto” e “índice de
redenção”, na acepção de Benjamin, “a porta estreita pela qual o Messias pode a
qualquer momento entrar”, uma vez que, segundo Idelber Avelar, ao refletir
sobre as alegorias da derrota, a ficção pós-ditatorial e o trabalho de luto, “a
concepção messiânica da História, oposta radicalmente à tal redenção
transcendental , prefere ver, em cada tesouro cultural do passado, os
fracassos, as derrotas, a violência, a barbárie que confere à cultura seu solo
fundante”5.
O romance de Teolinda Gersão, ao
focalizar a ultrapassagem do período de
barbárie da repressão salazarista e da sua continuidade através de Marcelo
Caetano, faz com que “o passado se inscreva como passado, como irredutivelmente
falido, convertendo-se na própria condição para que o radicalmente outro seja
imaginado”.6 Dessa forma,
o nascimento da criança inaugura
um tempo de sobrevivência e liberdade e o texto se inscreve na alegria.
A possibilidade de uma escrita pós-catástrofe tematiza a superação do luto e
suscita a epifania da outridade – um
novo devir histórico, o nascimento de um novo ser e um novo tempo, a possibilidade
de uma intervenção na polis. Só a
desolação melancólica ante a miséria passada possibilita a praxis genuína. Não é, tampouco, gratuita a analogia estabelecida,
sutilmente, ao final do texto, com a arquitetura – arte vetada pelo regime
opressivo, ao surgir como a criação do espaço do encontro e da sociedade
solidária, visando “distribuir, redistribuir por todos o sol e o espaço,
ordenar os volumes sob a luz” ((PMM,
104). O sonho humanitário do arquiteto
Horácio, morto em decorrência do regime político, não foi em vão, pois seu corpo inerte torna-se ativo e
solidário na História. As outras personagens que contracenam com ele também
surgem como agentes de transformação e de recriação do mundo através da
tecelagem (Clara) e da pintura (Hortense),
para quem “pintar era uma forma de medir a terra, uma forma de
geometria”; “as suas mãos próximas das mãos dos camponeses: encontravam-se na
terra umas e outras” ((PMM,104). A construção da utopia, a partir da metonímia
das mãos e do corpo metafórico da linguagem (cf. palavras, sonhos, atos de
revolta, subversão e transgressão
inerentes às personagens) constróem a
identidade dos sujeitos e da nação. As
mãos de O. S., “castradoras, que espalhavam o
medo e exigiam exercícios de resignação e obediência” (PMM,88-9) são reduplicadas pela instituição escolar freqüentada em criança e
adolescência por Hortense. No entanto, a
subjetividade dessa personagem feminina não pertence a nenhuma das
subjetividades hegemônicas – família, pátria e Deus – cultuadas pela ótica
salazarista e transmitidas pela professora Áurea. Em “um tempo de um corpo
amadurecido cumulado de todos os sabores da terra”, Hortense rompe os muros da
opressiva casa paterna, ultrapassa o limiar da porta para viver com Horácio em
uma “casa aberta e povoada”, “despe o corpo de mitos e revela a sua verdadeira
face”. (PMM,96). Ao optar pelo “gesto
livre do amor do desejo e do sonho”, “nega o falso universo estabelecido” (PMM, 107) e torna-se outra. Aliás, no romance em questão, várias
mulheres, pertencentes a grupos sociais diferenciados surgem como elementos de
destruição da ordem vigente, motivadas pela paisagem vista da janela que não as
deixa ser indiferentes e passivas. Hortense, Clara, Elisa (a irmã engajada na
luta política) e Casimira (a criada antiga da casa) concebem identidades: seus corpos antes
indiferenciados recuperam visibilidade.
Já outras, como Helena (a mãe de Hortense ) e a avó – sem nome e
encontrada morta à janela, ao permanecerem petrificadas e sitiadas
intramuros, espelham o sistema falocêntrico e patriarcal inerente a
uma determinada geração portuguesa.
Na paisagem humana que se
descortina em Paisagem com mulher e mar
ao fundo, como vimos, homens e mulheres das décadas de 60-70 do século XX refletem o dilema sócio-político e cultural do país, que
transita da tensão opressiva e individual para a pulsação de um corpo coletivo e solidário (“o coração da cidade
pulsando, somos um só corpo solidário” –PMM,
196). Implícita a isso encontra-se a crença no amor único e recíproco, como
forma absoluta de negar a violência da morte e a inconstância dos afetos
humanos . O fragmento textual, selecionado como epígrafe, referencia um ponto de vista de uma das
personagens femininas e espelha a memória – a intimidade que nos concedem:
“Procuro um rosto ausente. Um homem que partiu, que se ausentou. Não digas
nada,que sabes tu das coisas. Da ausência, da morte, eu sei. Do amor
eu sei, é um salto no escuro”. (PMM,186)
. O romance de Teolinda Gersão transforma a
(im)previsível queda em uma
plenitude de afirmação, ao virar pelo avesso a reflexão de Baumann, no que se
refere ao “amor líquido” existente na modernidade e que se caracteriza pela
fragilidade dos laços de afeto, individuais e coletivos. Ao elidir o luto e
libertar as personagens da queda irreversível no abismo da melancolia, o
romance reafirma a ultrapassagem dos sentidos e a presença de corpos ativos e
solidários na História. Em Paisagem com
mulher e mar ao fundo, a memória subjetiva, assentada na efetividade dos
acontecimentos, propicia a intervenção na polis. Só isso bastaria para ficarmos, para sempre,
seduzidos pelo romance.
RESUMO: Paisagem com mulher
e mar ao fundo, de Teolinda Gersão, textualiza um tempo de homens
náufragos e partidos que, no limite dos sentidos, articulam reconfigurações
identitárias que espelham o dilema do país. A presença de “cadáveres
fecundos/dão o alarme do ritmo/que digere a noite” (Morfismos, Fiamma Hasse Pais Brandão) e possibilita a ultrapassagem
da melancolia no espelho, da angústia e da viagem submersa na dor empreendida
pelas personagens femininas até então fadadas para a morte. As correlações
entre o discurso literário e o histórico mostram ora corpos sitiados
intramuros, em “casas cercadas pela morte”, ora
corpos que ultrapassaram o limiar da porta e assumiram a própria
identidade, vivenciando a libertação. O sentimento de “fragilidade ontológica
no teatro do mundo” vem a ser superado pela crença no amor único e recíproco e
pela constatação de que a utopia é possível. Dessa forma, a dimensão da escrita
auto-reflexiva e inovadora, ao alternar “marés cheias e vazias” de sentidos,
privilegia a “percepção sensorial do mundo, passível de apreender os ritmos da
Natureza e da História.”
Palavras-chave: Ficção portuguesa contemporânea; Teolinda
Gersão; memória individual e coletiva; utopia; História; feminino.
ABSTRACT: Paisagem com mulher e mar ao fundo (Landscapes with
woman and sea in the background), by Teolinda Gersão, deals with a time when
shipwrecked and lost men articulate identities which, within the limits of the
senses, mirror the dilemma of the country. The presence of “fecund
cadavers/offers an alarm of the rhythm/which digests the night” (Morfismos,
Fiamma Hasse Pais Brandão) and make possible the passing of the reflected
melancholy, of the anguish and the submerse travels and pain of the feminine
characters which are doomed to die. The correlations between the literary and
historical dialog show the bodies besieged within “houses surrounded by death,”
sometimes with bodies which pass through the limits of the doors and assume an
identity and live deeply in liberty. The “fragile and ontological feelings in
the theater of the world” are overtaken by the belief in reciprocal love and by
the evidence that utopia is possible. In this manner, the dimension of the
innovative and reflexive text, when it alternates between “high and low tides”
of the feelings, offers a privileged and “sensorial perception of the world,
which makes it possible to learn the rhythms of Nature and History.”
Referências
AVELAR,Idelber. Alegorias da derrota: a ficção
pós-ditatorial e o trabalho de luto na América Latina. Trad.de Saulo Gouveia,
revisada pelo autor. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2003. (Col. Humanitas).
BAUMANN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos
laços humanos. Trad.Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2004.
GERSÃO, Teolinda. Paisagem com mulher e mar ao fundo. Romance.
4 ª ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1996.
LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da saudade seguido de Portugal como destino. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1999.
MAGALHÃES, Isabel
Allegro de. O tempo das mulheres: a
dimensão temporal na escrita feminina contemporânea. Ficção portuguesa. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda,1987.
SILVEIRA, Jorge
Fernandes da. Portugal Maio de Poesia 61. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987.