Memória de outros cárceres:André do rap - análise da memória

como vontade e (des) representaçâo.

 

Introdução

 

 

                        Isso funciona por toda parte, umas vezes sem parar, outras continuamente.

                                       Isso respira. Isso aquece.Isso come. O que há por toda parte são maquinas.

                                       Máquinas de máquinas, com suas ligações e conexões. O seio é uma  máquina de

                                       Produzir leite e a boca é uma máquina que se liga a ela(...). É assim que somos todos

                                       Bricoleurs, cada um com suas máquinas, sempre fluxos e cortes. Uma maquina órgão

                                       Para uma máquina energia. E podem ter certeza que isso funciona.(...)Só funcionam

                                       Avariadas, avariandos-se constantemente.[1]   

 

 

 

Consoante a teoria deleuziana, somos todos máquinas desejantes, em que o desejo não se configura como a falta lacaniana, mas como força de atuação. Nesse bricoleur que é o ser humano, pode-se pensar na memória como uma máquina que atua por “fluxos e cortes”, ou seja, lembrança e esquecimento.  O que se lembra não é o que se viveu, é o que se refaz; a “memória máquina”, a partir dessa óptica deleuziana, não é um tabernáculo de verdades uma vez que funciona “avariando-se constantemente”. Essas avarias, que também poderiam ser chamadas de esquecimento, fazem dos textos memorialísticos um “entre-lugar” entre a verdade e a ficção. 

O presente trabalho, dentro dessa perspectiva, se propõe num primeiro momento a analisar a escritura memorialística, mais especificamente o relato do sobrevivente do Carandiru, André do Rap, tendo em vista o seu caráter representacional. O conceito de “representação” fica aqui  delimitado enquanto construção, encenação .

Assim, o texto será visto como uma encenação, a partir dessas “avarias” sofridas no ato recordado. Analisar-se-á como “eu” do recordador, a linguagem e o tempo da recordação concorrem por tornar o texto uma representação.

 Se num primeiro momento será focalizada a representação da memória, na segunda parte abordar-se-á  “des-representação”dos detentos, a tentativa  de descaracterizá-los através da violencia sofrida pelos mesmos e, consequentemente, torná-los números, estatísticas, máquinas.

Além disso, retomando a perspectiva deleuziana, o trabalho abordará essa “força desejante”, esse poder de atuação que faz o sujeito recordar para mudar a orientação, para revelar e destraumatizar, ou seja, as funções catárticas, sociais e reveladoras da memória.

  Antes de iniciarmos nossa empreitada, todavia, seria oportuno fazer um breve panorama sobre as investigações a respeito da memória e da relação memória/literatura e violência.

 Literatura, Memória e Violência

 

         Ainda que o tema da violência nunca tenha sido esquecido na sociedade brasileira, ele aparece com grande destaque a partir dos anos oitenta com o processo de redemocratização nacional. A mídia, por sua vez, vem, desde então, explorando tal assunto, ao mesmo tempo, informando e banalizando tudo que se relacione a violência de forma que, esta se torna mercadoria que vale o quanto for impactante e sensacionalista.

            O medo da violência é acompanhado por explicações que ora culpam a pobreza, a falta de investimentos educacionais, o crescimento das cidades ora, a dissolução da família, e os novos padrões comportamentais. Todavia, para se compreender a violência há de se atentar a uma gama complexa de fatores ao longo da história. No dizer de Alba Zaluar (1999:63),  “é difícil compreender  a violência e lidar com ela, pois ela está em toda parte, não tem atores sociais permanentemente reconhecíveis, nem causas facilmente delimitáveis.”

Talvez a melhor maneira para se compreender e explicar a violência seja fala sobre ela, sobre seus múltiplos fatores.  Vale lembrar que “explicar”, etimologicamente, ex-plier significa retirar as dobras, os vincos. A Literatura, reflexo da realidade, nunca se afastou desse tema, sempre tentou descrevê-la, explicá-la, retirar seus “vincos”. Da Ilíada, com a ira de Aquíles, dos diários da segunda guerra sobre o horror dos campos de concentração, da Terra Devastada de Eliot, com seus homens fragmentados, até as memórias de Graciliano Ramos, podemos perceber como se tratou desse tema.

Atualmente, relatos como Sobrevivente André do Rap, Estação Carandiru, Pavilhão 9, nos fazem repensar a violência, o sistema penitenciário, numa tendência Pós-Moderna de dar voz  aos vencidos, aos “ex-cêntricos”, aqueles que estão fora do centro. Em todas essas “memórias”, Literatura e Violência se unem e se Scherazard consegue salvar vidas contando histórias, quem sabe, através de tantos relatos não se possa conscientizar e evitar que tantas tragédias se repitam.

 

 

História e memória

 

 O pensamento filosófico do final do século XIX e começo do século XX esteve, em grande parte, centrado nas tendências positivistas e cientificistas. Somente os dados passíveis de mensuração e situados numa cadeia de causa e efeito deveriam ser considerados. Mesmo os fenômenos psíquicos eram observados sob a égide do objetivismo. Pierre Paul Broca (1824-1880), cirurgião francês, anunciara a descoberta, no cérebro, da linguagem articulada. O materialismo parecia ignorar as questões cartesianas como a relação corpo e mente.

Henri Bérgson, em seu clássico Matéria e Memória, rompe com esse paradigma cientificista ao relatar que a memória não pode ser explicada apenas pelo cérebro, o eu-superficial, mas também pelo espírito, o eu-profundo. Segundo o crítico francês, é justamente dessa interação que nasce a memória.

 

O que percebo de mim quando vejo as imagens do presente ou evoco as do passado? Suponhamos     que o corpo é um centro de ação somente, e vejamos que conseqüências não decorrem daí para a percepção, para a memória e para a relação do corpo com o espírito. [2]

 

 

O corpo, na perspectiva bergsoniana, se comporta apenas como um centro de ação, através do qual o indivíduo percebe o mundo. Esse sentimento de corporeidade é a percepção do lugar no espaço em que se está inserido, um reconhecimento de que se está situado no presente. Não se pode, dessa forma, descartar a relação do corpo com o espírito.   A partir dessa interação do eu-profundo com o eu-superficial, o indivíduo irá construindo as suas “memórias”.

 É interessante notar que pessoas que conviveram num mesmo tempo ou espaço retirarão deles diferentes perspectivas, haja vista que, segundo a noção bergsoniana, a “matéria” é subjetiva, depende do olhar de quem a percebe, da relação corpo e mente, não só do cérebro mas da afetividade.

A memória, além desse caráter subjetivo, se apresenta, segundo essa intervenção, de forma ativa, latente uma vez que ao percebemos o mundo que nos cerca  as lembranças nos fazem avançar ou retroceder .

Bérgson denomina duas espécies de memória: a memória-hábito, adquirida pela repetição de gestos ou palavras, memória dos mecanismos motores, dos esquemas comportamentais habituais; e a imagem-lembrança, constituídas por rememorações  isoladas, evocativas. Essa seria para Bérgson, por ser inconsciente e individualizada, a verdadeira memória.  O passado estaria aí, vivo para souvenir, vir à tona. O papel da consciência seria trazer, do inconsciente, objetos em estado latente para serem atualizados. 

          Conforme Ecléa Bosi[3], segundo a tese de tal pensador francês, o passado se conserva inteiro no espírito, seja em forma inconsciente ou evocado pelo presente através das lembranças. A memória é, pois, sob a óptica bergsoniana, a conservação integral  do passado recordado de forma linear e integral.

 

A memória Social

       

        Se Bérgson lança a pedra fundamental para a compreensão da memória à luz da percepção individual, outros teóricos mais tarde abordariam a memória, enquanto um fenômeno social. Muito mais do que uma antítese da teoria bergsoniana, essa nova abordagem a respeito da memória pode ser vista como uma complementação ou uma revitalização da primeira.

            Maurice Halbwachs, por exemplo, relaciona o fenômeno da memória à história pública e a fatos sociais. A memória dos indivíduos dependerá, nesse sentido, da interação desses com a classe social, com os grupos de convívio do sujeito, com os aparelhos ideológicos althusserianos.

            A memória perde, assim, o status de sonho ou inconsciente bergsoniano e torna-se trabalho, releitura. A rememoração não é logo, a reconstrução de uma imagem, tal como essa ocorreu, mas uma modificação segundo normas vividas na atualidade, uma atualização, com imagens de hoje, das experiências do passado.

            Halbwachs, a partir dessa visão social, relaciona a memória individual à memória coletiva. Se o vocábulo “tradição”, etimologicamente, significa aquilo que se procede através da dicção, poderíamos dizer que a memória coletiva é produzida assim, por meio de convenções verbais. Mesmo em sonho, as aparentes criações individuais são, para Halbwachs, representações sugeridas pelas situações vividas em grupo pelo sonhador.[4]  

Charles Bartellet, por sua vez, pesquisador da psicologia social, ao trabalhar com a memória, utiliza o conceito de convencionalização que vai de certa forma ao encontro dos postulados defendidos por Halbwachs. De acordo com o teórico, a matéria prima da recordação não aflora em estado puro na linguagem do falante que rememora, mas é “estilizado pelo ponto de vista cultural e ideológico do grupo em que o sujeito está situado”.[5]

Desse modo, podemos argumentar assim que, no ato de lembrar, modelamos o passado, desvendamos e ocultamos na medida em que valores ideológicos vão conduzindo o pensamento. Faz-se oportuno lembrar a teoria lacaniana que atesta trabalhar a linguagem humana com a idéia de “falta”, de forma que alguns objetos só terão significado em virtude da ausência ou da exclusão de outros. Assim “qualquer tentativa de transmitir um significado total, imaculado, na fala ou na escrita, é uma ilusão pré- freudiana”. [6]

Podemos depreender de tudo isso que a memória apresenta, nesse sentido, pela incapacidade de ser resgatada de forma pura, um caráter representacional, encenado. Toda escritura memorialista se comporta, logo, como um “entre-caminho”, uma fronteira.  Ao mesmo tempo, por meio da memória coletiva, esse “entre-lugar” se amplia, o que faz com que ao ouvir histórias alheias, nos conheçamos melhor, nos sintamos parte de uma mesma existência.   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Representação da Memória 

 

                                                       Nessas tão minhas memórias, eu mesmo me esqueci

                                                                                               Guimarães Rosa

 

A primeira impressão do senso comum levaria a pensar que os textos memorialísticos seriam mais “reais” que os outros textos ficcionais. Todavia, é ingênua a idéia de que esse gênero é um retorno ao passado, uma busca por capturar o vivido e trazê-lo de volta ao presente de forma intacta.

Wolfgang Iser, em seus Atos de fingir, nos lembra que ainda que muita realidade de ordem emocional e sentimental possa ser identificada nos textos literários, mesmo não  isentos de realidade, estes são de natureza ficcional. [7]

 Dentro dessa perspectiva, gostaríamos de inserir o gênero memorialístico, enquanto uma representação, um ato ficcional. Serão analisados, nesse sentido, três elementos, dentro os quais, o “eu” do recordador, o tempo da recordação, e o instrumento que concretiza esse processo, a língua, uma vez que eles conferem aos textos o caráter representacional e encenado.

As lições de Lúcia Castelo Branco, ao estudar os discursos femininos, apontam que o eu do narrador, ainda que freqüentemente seja confundido com o eu do autor, é apenas um efeito discursivo.  Consoante a autora,

 

                               Por mais que os signos busquem a plenitude da bio,

                                     eles a capturam somente nos restos da grafia:        

                                      sujeito e passado reduzidos a um trapo.  [8]

 

Por tudo isso, o “eu” do texto não é um sujeito pleno, mas um trapo, um resto de grafia, um sujeito gramatical, virtual, que se aproxima mais de um “ele” do que de um “eu” propriamente dito.

No relato do sobrevivente do massacre do Carandiru, André do rap, o “eu do recordador”, ao refazer esse trabalho da memória, dez anos depois, reorganiza seu discurso de forma que o seu “eu” seja alguém que se olha em outro momento, com outras perspectivas uma vez que a percepção do fato mudou.

 

Eu olhei pra trás e ouvi gritos de horror, gemido. Tropeçava em cadáveres, levantava (...).

Eu corri no meio do corredor polonês (...), eles atirando, eu com medo de tomar tiro.

De tomar pancada (...).Eu estava em estado de choque. [9]

           

 

Quando André se intitulaeu”, sujeito gramatical, ele é não mais do que um personagem, que provavelmente, no meio das confusões daquele dia, já não pode precisar o momento em que, olha para atrás, tropeça ou se levanta.Todavia, é necessário descrever os eventos dessa forma para que haja ordenação no seu discurso. Além disso, a constatação de que esse “eu estava em estado de choque”, talvez seja também, um pensamento que se obteve  a posteriori, haja vista que, naquele  momento de tumulto, não  fosse possível  sequer ter clareza do que estava acontecendo. Quiçá a consciência do medo viesse mais tarde,  durante o processo de rememoração, já com a adrenalina normalizada. 

O que vale ressaltar de tudo isso é que esse je se torna, nas palavras de Hutcheon[10]

um jeux, jogo ou o I, do inglês, se comporta  como um eye, um olho, uma perspectiva.  Nesse jogo do “eu” gramatical, o relato de André do rap pode ser visto como  uma versão, um olhar, um ponto de vista do acidente, o que de certa forma reitera o caráter representacional da obra  memorialista.

Se afirmamos que  o eu do recordador é, em verdade, um “ele”que  observa os fatos  à guisa de outras perspectivas, o sujeito-narrador pode ainda se comportar como um sujeito coletivo já que, para se “evocar o próprio passado , se tem necessidade de fazer apelo às lembranças dos outros.”[11] Essa óptica levantada por Halbawach, considera que mesmo  que se trate de acontecimentos em que só o recordador  esteve envolvido, as lembranças permanecem  coletivas. Isso nos leva a pensar a importância que a interação, entre os sujeitos, apresenta para os texto memorialísticos.

O detento, no início da  confusão, relata que,

           

            Todo mundo procurou ficar próximo - cadê fulano? Cadê beltrano?.

Todo mundo se procurando. Um preocupado com a segurança do outro.

Se acontece alguma coisa a gente  tá todo mundo junto.[12]

 

O recordador rememora a preocupação dos detentos com aqueles com quem conviviam, se algo acontecesse, segundo ele, era melhor que todos estivessem juntos.. Se, na escritura memorialística, é praxe dizer que fica o que significa, então, permanece na lembrança do recordador esse momento de interação, essa memória coletiva que aciona o souvenir bergsoniano ou o próprio ato recordador.

O André-personagem, mais tarde afirma “ficamos traumatizados, não gostamos nem de lembrar”[13]. Dessa forma, podemos afirmar que, ao socializar o seu trauma, o narrador passa a ser um eu-coletivo, não se trata do relato de um só detento, mas de todos aqueles que morreram ou estiveram envolvidos no massacre.

O tempo da recordação, por sua vez, tal qual o “eu” do recordador, concorre por reforçar a idéia de que a escritura memorialista é encenada.

 O teórico Henry Bérgson, em Matéria e Memória, fundamenta a concepção de tempo enquanto um continuum, um tempo indivisível, denominado por ele como durée, em que se resgata o passado de forma intacta.  Segundo Castelo Branco, a partir da dialetização do conceito de durée de Bérgson,  Bachelard, em Dialética da Duração,  desenvolverá a idéia de que o tecido do tempo é, fundamentalmente, lacunar e a continuidade temporal, apenas uma construção do sujeito.[14] O sobrevivente do Carandiru, a todo momento, exemplifica essa descontinuidade do tempo, uma vez que a rememoração avança e recua.

 

No dia 2 de outubro, meu aniversário, abriu a  tranca como de rotina. Às cinco e meia da manhã, o funcionário veio e abriu, os faxineiros pagaram o café da manhã.Os funcionários soltaram os faxina, eles pagaram o café da manhã, abriram a tranca.[15]

 

Por meio desse exemplo, o processo narrativo “vai e volta” constantemente, a repetição de “pagaram o café” e “abriram a tranca”, reitera essa idéia da não linearidade do tempo proposta por Bachelard. Além disso, o narrador parece estar chamando atenção para o ato de abrir a tranca, três vezes mencionado no texto, o que não só faz com que o processo narrativo avance e recue  mas enfatiza  o fato de que, para aqueles que se encontram trancafiados, o “abrir a tranca”, ainda que de forma ilusória, representa o desejo maior de cada presidiário: a liberdade.

O trecho a seguir, reforça, de forma ainda mais clara, o caráter lacunar e descontinuo do tempo na obra memorialista.

 

Teve um momento que eu apaguei ali no chão, embaixo dos cadáveres.  Foi um milagre o que aconteceu. Tinham vários companheiros mortos e eu fiquei ali embaixo dos corpos. Eu, encolhido numa cela, escutando tiro para tudo quanto era lado.  Eu vi quatro ou cinco companheiros caírem ao meu lado e me joguei também.

 

 

O narrador começa a descrição a partir do momento em que desmaia, diz ter se encolhido numa cela e, depois disso, relembra, rompendo os rigores do consecutio  temporum, que ao “ver os companheiros se jogou no chão”. Vale lembrar que todas as ações são descritas após o desmaio, o que mostra, mais uma vez como a descrição do tempo  não segue uma ordem coerente, linear.

Ruth Leys, analisando a genealogia dos traumas, principalmente no que tange as vítimas do holocausto, afirma que

 

 Devido ao terror e a surpresa causados por certos eventos, os mecanismos de consciência e cognição são destruídos.  Como resultado, a vitima é incapaz de lembrar e integrar a experiência traumática em termos conscientes.  Ao invés disso, ela é assombrada pela memória traumática, que sendo intrusiva, fixa ou congelada no tempo, se recusa a ser representada como passado, e acaba sendo vivida num doloroso trauma presente.  [16]

 

 

Talvez, a partir daí, possa-se tenta explicar como, no relato do sobrevivente do Carandiru, a vítima se torna incapaz de “integrar a experiência traumática em termos conscientes”, o que faz do seu relato uma descrição não-linear, pontuada de rupturas, repetições,  flashbacks,  numa perspectiva quase onírica . 

Além dessa descontinuidade do tempo, característica das obras memorialísticas, devido ao terror sofrido, segundo Leys, acaba-se presentificando o vivido.  Se a análise do tempo, nos textos memorialisticos, demonstra como esses se tornam representacionais, através dessa óptica temporal, ocorre, também, o processo de “re-presentação”, ou seja, de reviver o passado como um trauma presente.  No relato do sobrevivente do massacre do Carandiru, André do rap, o “eu que “recorda-a-dor”, ao refazer esse trabalho da memória, dez anos depois, reorganiza seu discurso com a óptica do presente, os fatos são revistos no que Freud denominou apres- coup ou posterioridade. 
 
 
“Eu olhei pra trás e ouvi gritos de horror, gemido, eles atirando, eu com medo de tomar tiro.De tomar pancada (...).Eu estava em estado de choque”. 
 
 
A constatação apres coup freudiana de que esse “eu estava em estado de choque”,é uma reorganização  de novos nexos,tentativa de rearticular   as inscrições do vivido,  que ficaram  indefinidas, à espera de um acontecimento que só depois adquire sentido. Esse recordador é assombrado pela memória traumática, que sendo intrusiva,fixa ou congelada no tempo, se recusa a ser representada como passado,  e acaba sendo vivida num doloroso trauma presente. 
Ao relatar o trauma presentificando-o ,  rompe-se com a noção  do tempo como  algo seqüencial,  categoria ordenadora que organiza os acontecimentos vividos numa direção com passado,

presente e futuro.

O narrador, cujo relato se concretiza dez anos depois dos fatos ocorridos, afirma:

 

                            Às vezes, me vejo naquele dia, lembro de como começou,

                           um amigo de cela falando:Ô, André, hoje é o seu aniversário, mano.

                           Vou mandar um presente pra você aí, de lá de fora.[17] 

           

A lembrança do seu aniversário se procede como se fosse um fato vivido “aqui e agora”. O recordador parece se recusar a viver o seu trauma como passado, apesar de tanto tempo decorrido.

Além da ilusão do resgate real do “eu”, da descontinuidade e da “re-presentação” do tempo, a escritura memorialista se depara com outra instância que a torna encenação: a linguagem.

            André é Testemunha que tenta,  desvelar oculto,   relatar o traço,  a  ausência,compreender a experiência traumática , que para Freud,  não pode ser totalmente assimilada enquanto ocorre. O narrador , tal Qual Clarice Linspector,  por destino vai buscar e por destino volta com as mãos vazias- vazias mas acompanhado  do indizível- que só  lhe será dado  através do fracasso  de sua linguagem. É através dela que a memória se presentifica; que ordena, por meio de convenções arbitrárias, esse caótico processo de esquecimento e lembrança, fluxo e avaria.
É nessa linguagem: esforço humano, tentativa cercar,  dar limites àquilo que não foi submetido a uma forma no ato da sua recepção,  que ocorrem segundo Freud, repetições constantes, alucinações,falhas na recordação. Até por que,  a história do trauma não é só a história de um choque violento, mas  a do  desencontro com o real. Assim , percebemos como  os trabalhos da memória são   refeitos , mais do que revividos, representacionais  mais do que fidedignos

 Iser adverte que é, através da ficção e das convenções que caracterizam a linguagem, que se consegue manter, no texto ficcional, uma variedade de pontos de vistas que seriam contraditórios em qualquer outro discurso.  Fazendo referência a Bentham, o teórico afirma que “se é pela linguagem que a ficção adquire aparência de realidade, é apenas à língua que as entidades fictícias devem sua existência.”[18]

A narrativa do presidiário, permeada por coloquialismos, algumas vezes, apresenta instâncias da literalização da linguagem, o que estreita a relação linguagem/ ficção proposta pelo crítico da Teoria da Recepção:

 

             Vai ladrão, vocês vão ver o que é cão, relembra o narrador, teve um companheiro  que o cão mordeu o testículo dele e saiu arrancando. Cena horrorizante. Maior cena horrorizante.[19]

 

.  O termo “cão”, por exemplo, nas palavras do policial, se torna ambíguo, não se refere apenas ao animal, mas metaforicamente, ao diabo. Diferente da forma horrível que abarca a noção passiva do horror, o termo “horrorizante” centrado no particípio presente latino, denota que o horror foi vivenciado muito mais que observado.

A literalização dos termos descritos aponta para esse caráter não meramente designativo, mas figurativo da linguagem, o que reitera os pressupostos de Iser a respeito da  dupla função da linguagem : a de conferir realidade ao texto literário, ao mesmo tempo em que, o faz ficcional.

Poderíamos retomar ainda, a idéia de “convencionalização” de Bartellet, que aponta que a linguagem do recordador será sempre estilizada e nunca escapa dos padrões ideológicos. Se lembrar é modelar o passado, ao mesmo tempo em que se desvenda, muito se oculta. Novamente, percebemos como a linguagem faz do discurso uma ficção.

Ao lembrar o momento em que foi levado à Delegacia para prestar depoimento, o narrador relata:

 

 O delegado disse que eu era suspeito por ter discutido com a vitima recentemente. Falei que não tinha nada a ver. O delegado quis me corromper. Falou que eu tinha que dar dinheiro pra ele pra eu sair em liberdade.[20]

 

Poderíamos interpretar as constatações do presidiário a partir da relação memória ficção/verdade/ideologia. Pautado no senso comum, em que as instituições brasileiras são corrompíveis, André, através da ficção de seu discurso, se inocenta, ao mesmo tempo em que apresenta outras instâncias da violência. Verdade, ficção e ideologia se confundem; não se sabe até que ponto a tentativa de suborno é verdade, é uma questão ideológica, ou se o detento é, realmente, inocente.   

Por conta de tudo isso, o discurso memorialista, em que o “eu” se faz “ele” ou mesmo um “nós”, em que o tempo e a linguagem se transformam em encenação, pode deixar se ver como um entre-lugar, situado na margem entre a história e a ficção, entre o literário e o vivido. Nas palavras de Castelo Branco, os trabalhos da memória são como a cartografia ou o mapeamento, a paisagem será sempre diferente.

Retomamos assim, a epígrafe de Guimarães Rosa, em “Lá, nas campinas” de Tutaméia, uma vez  que em nossas memórias o eu do recordador já não é mais o eu da recordação, o tempo também é outro, e a linguagem faz  do texto uma ficção. Por isso, em nossas memórias, nós mesmos nos esquecemos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A “des-representação” do eu

 

 

 

                                                                                             Quantos éramos? Convenci-me de éramos nove-

                                                                                             centos homens num curral de arame. Pensei nos   

                                                                                             arrepios de Tamanduá – bichos, vivíamos como bi-

                                                                                             chos. (...) Acabaria acostumando com a vida no for-

                                                                                            migueiro. (...) Que nome tinham as plantas esquias

                                                                                            do monte próximo? ...Piteiras. Estávamos ali nove-

                                                                                             centas pessoas e as arvores finas se chamavam 

                                                                                             piteiras.[21]

 

Se analisamos, na primeira parte, o texto memorialístico como uma representação, num segundo momento, tentaremos  focalizar a “des-representaçao”  do sujeito, ou seja a tentativa de desumanizar, descaracterizar  o “eu” e torná-lo  animal, número, corpo.

Segundo Bruno Zeni, os relatos jornalísticos sobre o massacre do Carandiru se referiam às vítimas quase sempre de forma quantitativa: “os 111, sem rosto, sem história.” O número 111, com seu poder de ícone, segundo ele,  cristalizava a condição anônima do extermínio. “Não bastava que aqueles que a sociedade havia marginalizado tivessem sido massacrados. Era necessário que fossem esquecidos.” [22]

            Uma das primeiras lembranças do André do Rap era a contagem realizada diariamente. O fato de serem encarados como números poderia ser entendido como a primeira tentativa de desumanização.  Além de números, muitas vezes, os detentos não eram, nem mesmo, tratados por seus nomes próprios, o que mais uma vez reiterava essa “des-representação” dos indivíduos.  O narrador recorda o tratamento dos policias para com eles: “Vai, ladrão! Vai, Zé! Corre. Não chamavam a gente por nome, era só Zé e ladrão.”[23]

            O nome próprio, símbolo primeiro da individualidade, é o elemento através do qual se interage com o mundo e nele se é inserido. Não nomear alguém é reduzi-lo a qualidade de bando ou animal.   Retomamos assim, ao clássico de Graciliano Ramos, em que o narrador se vê, num curral de arame, com novecentos homens.  Eles haviam sido reduzidos a números, ao passo que as árvores se chamavam piteiras, ou seja conservavam a individualidade simbolizada pelo nome próprio da espécie .

            Todavia, uma das instâncias mais cruéis da desumanização foi, segundo o relato do sobrevivente do Massacre, a violência sofrida na cadeia. Sem nome, reduzidos a números, agora eram abatidos como animais.

 

     

 Começaram a atirar e não paravam mais. Os policiais, a maioria de capuz, entraram metralhando, dando tiro (...). Formaram um corredor polonês, deram chute, bica, cacetada, tiro. Como alguns prisioneiros se jogaram no meio dos corpos, os PM pegaram resto de colchão e puseram fogo. A espuma derretia, e eles vinham pingando aquele líquido (...) fervendo em cima dos corpos.[24]

 

 

           

O relato do André, em muito nos lembra o que Michel Foucault classificou como “Poder Régio”, o pensamento jurídico  que desde a Idade Média, detinha o direito de vida e morte sobre os desvalidos.  Através desse poder soberano, que apresentava como lema “fazer morrer e deixar viver”, as penas incidiam sobre os corpos dos criminosos por meio da guilhotina e  do esquartejamento.  O pensador francês, entretanto, apontou que essa “velha potência de morte” fora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida, abrindo-se assim a era de um “Bio-Poder.”[25] Ainda que o encarceramento seja uma forma de suplício, consoante Foucault,  houve  uma mudança de foco  numa tecnologia não mais centrada no corpo mais na vida.

Parece oportuna aqui, a constatação de Roberto Schwarz, em seu estudo sobre a obra machadiana, qual seja a que, devido à disparidade entre a sociedade brasileira e a européia, ocorre, frequentemente, um “desconcerto de idéias, uma sensação de que no Brasil as idéias estariam fora de centro em relação ao uso europeu.”[26]

Nesse sentido, ainda que as idéias foucaultianas sejam relevantes para a compreensão dos problemas relativos ao sistema penitenciário, terão que ser repensadas no que tange a problemática brasileira.  No Brasil, poderíamos dizer que o estado continua exercendo o “direito régio”, uma vez que, nas cadeias, as penas, ainda, incidem  sobre o corpo dos prisioneiros, não mais por meio de guilhotina mas, através de outras formas de tortura. O sobrevivente André do Rap, por exemplo, lembra da espuma derretida usada para descobrir quem estava, realmente, morto.  Em terras brasileiras, pelo menos no sistema penitenciário, Bio-Poder e Poder Régio interagem, o que novamente reitera a desumanizaçao dos detentos.

Por conta disso, no dizer de Alba Zaluar, a policia brasileira, caracterizada pelo autoritarismo e pela violência para com os excluídos, acaba gerando o questionamento das instituições encarregadas de velar pela lei, ao mesmo tempo em que, através da violação dos direitos humanos, mina a construção da cidadania.[27]

Dentro do sistema penitenciário poderíamos argumentar que essa construção de cidadania viria através do trabalho realizado pelos detentos. Uma ocupação útil, talvez tivesse a função de não “des-representar” os sujeitos mas torná-los produtivos.

F.H. Cardoso, ao analisar o trabalho escravo que, em muito, se assemelha ao realizado nas penitenciárias brasileiras, comenta que além de não existir especialização do mesmo, ele era realizado num máximo de tempo, afim de encher e disciplinar o dia do escravo. [28]

O trabalho, dentro dessa perspectiva, longe de recuperar os detentos, mais uma vez, os desumaniza, os torna “máquinas repetitivas”, no dizer deleuziano, ou “operários dóceis”, segundo a óptica foucaultiana.

Como nos lembra André, em seu relato, existiam os patronatos de guarda-chuva ou de tampinhas, em que se fabricavam tampas para esmaltes e garrafas. Essas ocupações medíocres, cujo objetivo era meramente retê-los, “encher e disciplinar o dia” dos prisioneiros, concorriam para, mais uma vez, torná-los “não-sujeitos”. Tal qual Sísifus modernos, como na mitologia grega, viam, na repetição das tarefas, a inutilidade das suas ações mal recompensadas. Assim, a prisão, em vez de regenerar os indivíduos, acabava segundo Foucault, fabricando novos criminosos, afundando-os ainda mais na criminalidade.[29]

Apesar de todas essas tentativas de “des-representar” os detentos, de caracterizá-los enquanto número, animais ou máquinas repetitivas, pode se perceber, no relato do André do Rap, a descoberta da generosidade, da amizade, do “sol” que teimava em perpassar as arestas desse caos penitenciário. Ocorria, tacitamente, uma eterna luta para permanecerem homens.  André recorda o momento em que um companheiro ficou cego para salvar sua vida.

Teve um companheiro que praticamente salvou minha vida. Sou grato a ele.

 Essa baionetada que eu tomei, a primeira foi nele. Ele me encobriu e acertaram

 o olho dele (...).Ele ficou cego do outro olho.” [30]

 

 

Tudo isso, nos faz questionar a visão hobbesiana que assegura qualquer forma de Governo ser melhor que sua ausência, uma vez que esse Leviatã tem, como função, proteger e defender os homens da “luta de todos contra todos”[31]. Por outro lado, Baruch Espinoza, contemporâneo de Hobbes, em seu Tratado Teológico Político, nos lembra que o objetivo do Governo não é impor obediência ou refrear pelo medo. Conforme o pensador holandês, o Estado não deveria transformar seres racionais em bestas ou bonecos mas capacitá-los a desenvolver o corpo e a mente.[32]

Talvez fosse esse o dever do Estado: proteger os indivíduos, promover a cidadania e, principalmente, com aqueles que estão sob sua custodia, não os transformar em máquinas, bestas ou fantoches.

 

 

 

 

 

As Funções da Memória

 

                                

                                    “Começo precisamente com a impossibilidade de contar essa historia”[33]

                                                                                               Lenzmann.

 

 

 

 

 

Conscientes de que recontar, precisamente, o que se passou é impossível, ante a incapacidade de se traduzir em linguagem o vivido, já que o “eu” se torna um olhar, e o tempo da recordação não é linear; os memorialistas, que lidam com experiências traumáticas como o holocausto ou massacres sabem que o ato de relembrar é condição sine qua non para sobreviver. A memória adquire, por essa óptica, diversas funções entre elas a catártica, a reveladora e a social.

Cathy Caruth, ao analisar a relação memória e holocausto, aponta que a catástrofe  fez os sobreviventes perderem a identidade, que só poderá ser restituída através do testemunho. Segundo a autora, “é necessário contar para sobreviver, lembrar é uma tarefa de vida, o fato de não contar as histórias perpetuaria a tirania”.[34]

O ato de lembrar, base das teorias psicanalíticas, é portanto, uma ação catártica; socializar o vivido é uma tentativa de “destraumatizar”.

A propósito, relembra o sobrevivente do Carandiru:

 

Estar num sistema qualificado como o pior do mundo e sair de lá morto. É um pedaço da minha vida e tenho que estar aberto para falar disso. Deus tinha um propósito na minha vida. Acho que foi a mão de Deus que salvou a vida de muitos ali.

 

 

É necessário “estar aberto”, conforme o narrador aponta, para lembrar e vencer o trauma. Além disso, o contato com a morte, tal como pode ser visto em autores como Pedro Nava em seu Baú de Ossos, ensina lições que não podem ser esquecidas. No caso do sobrevivente do massacre, a lição é a descoberta de Deus, do propósito de sua vida. A memória, assim apresenta uma função não apenas catártica, mas reveladora.

André relata o que viveu, a sua própria experiência, as suas descobertas, talvez só desse modo consiga seguir em frente.O detento que, anos antes entrara na penitenciaria, com certeza não será o mesmo ao sair. Walter Benjamim, lembra que a narração tem sempre uma forma utilitária, um ensinamento moral, pois o narrador é alguém que retira da própria experiência o que conta.[35] Memória adquire, nesse sentido também, uma função utilitária, é a força “desejante”, que em Deleuze significa atuação, uma necessidade de falar e transformar.

O detento, consciente da sua responsabilidade em rememorar o vivido, sabe que a sua função é “alertar a sociedade do que aconteceu e o que pode acontecer de novo. Um novo massacre. E as muitas histórias que ainda continuam acontecendo, de injustiças, de preconceito. É um apelo que faço.”[36] Vale lembrar que, juridicamente, o termo “representação”, diversas vezes mencionado nesse trabalho, é o direito de todo cidadão de se dirigir aos órgão públicos e reclamar contras os abusos sofridos. Por conta disso, o relato de André também se comporta, nesse sentido, como uma representação. 

 Se afirmamos que memória pode ter função catártica, reveladora, social, também já dissemos que os textos memorialísticos apresentam um caráter representacional, ficcional. Em síntese, se memória é ficção, num duplo viés, ela também pode ser verdade. Vale lembrar que a verdade em grego- alethéia- é formada por “a”, negação e lethes, o rio mitológico do esquecimento. Alethéia é pois, desesquecimento, desvelamento, verdade ou memória.   Se o relato do sobrevivente do Carandiru foi analisado como uma ficção, uma escritura litorânea, muito do que ele rememora pode ser questionado.Todavia, quando tudo parecia ser encenação descobrimos que memória e verdade caminham pari passu, ainda que muito se oculte, muito se desvela. É necessário, pois, lembrar para não se repetir,  para conscientizar. A André, apesar da pouca idade, como os “velhos” analisados por  Eclea Bosi,  “também foi dado abranger uma vida inteira”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

           

                                        Conclusão

 

 

 

Com base nas discussões apresentadas, pode se afirmar que os textos memorialísticos, ainda que não isentos de realidade, são de natureza ficcional uma vez que ao recordar o vivido, não se revive o mesmo, mas se reconstrói com imagens e idéias de hoje as experiências do passado.

Analisou-se, primeiramente, através do relato do sobrevivente do Carandiru, André do Rap, o “eu” do recordador, que ao falar de si se comporta quase como um ele, ao se observar num outro momento. Esse mesmo “eu”, por vezes, se configura ainda como um “nós”, uma vez que, através das memórias coletivas, se percebe a importância que a interação, entre os sujeitos, apresenta no ato recordador. Além disso, o tempo, nos trabalhos da memória, por seu caráter lacunar e descontinuo, bem como a linguagem por não ser apenas designativa, mas figurativa, e por se estabelecer por meio de convenções, acabam  por reiterar o caráter encenado de tais obras.

Por tudo isso, através da lembrança e do esquecimento, do “fluxo e da avaria” se constrói um entre-lugar entre o vivido e a ficção, uma escritura quase cartográfica em que o que se viveu é modelado a partir de outras perspectivas.

Se a memória foi descrita como uma representação, descobrimos, ainda, como através desse discurso, o sujeito é “des-representado”, descaracterizado, tornado número, estatística, “máquina repetitiva”. Apesar da não nominalização dos detentos, da violência sofrida por eles, dos trabalhos improdutivos, tentativas de desumanizá-los, pode se perceber a luta, travada pelos mesmos, para se manterem “humanos”, para não se tornarem bestas ou fantoches.  Relatar tudo isso já é um indício dessa busca por respeito e justiça.

O texto memorialístico, por tudo isso, apresenta uma função social, uma força atuante, um desejo deleuziano de mudar a orientação, de fazer falar, de conscientizar. Lembrar o contato com a morte não apresenta apenas um caráter revelador, de encontro com Deus ou consigo mesmo, mas uma condição sine qua non para sobreviver, para “destraumatizar”.

Se a memória, através do relato do André, se afigurou como representação, através da importância e da necessidade de rememorar o vivido, ela se fez desvelamento, verdade, alethéia. Assumir a escritura de sua vida, talvez tenha dado a André, não mais vacuidade do trabalho carcerário, mas a possibilidade de “abrir a tranca”,  libertar-se das amarras imantizadoras , dos estigmas contrários à reintegração de detentos.

Dessa forma, em nossas lembranças, ainda que nos esqueçamos um pouco de nós mesmos, só através delas, como no caso do André do Rap, tentamos nos encontrar, seguir em frente, conscientizar, transformar.

 

 

 

 

 

 

Referências Bibliográficas

 

 

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[1] DELEUZE, Gilles.1996: p.7

[2] BERGSON, Henry.1990: p.187

[3] BOSI, Ecléa (1987: p.14)

[4] BOSI, Ecléa (1987: p.19)

[5] Id. p.25.

[6] EAGLETON, Terry (2001:p.232)

[7] ISER, Wolfgang(1983: p 384, 385)

[8]  BRANCO,  Lucia Castelo(1994: p 100)

[9] A referência ao texto Sobrevivente André do rap será feita pela abreviação  S.A.R.(2002: p.19)

[10] HUTCHEON, Linda. (1988: p.211)

[11] HAWBUACHS, Maurice(1990: p 54)

[12] S.A.R.  p.19

[13] cf. S.A.R. p. 25.

[14] BRANCO, Lucia Castelo. 1994: p. 28.

[15]: cf. S.A.R.  p.17.

[16] LEYS, Ruth(2000: p.2)

[17]cf. S.A.R., p.26                

[18] ISER, Wolfgang.1983:p.395.

[19]  opus cit.  p.25.

[20] cf. S. A .R, pg31.

[21] RAMOS, Graciliano(1955:p.271.)

[22] ZENI, Bruno (2002: p.203)

[23] cf. S.A.R., p.22.

[24] cf. SAR. p. 23

[25] FOUCAULT, Michel(1997: p.131)

[26] SCHWARZ, Roberto. (1992: p 24)

 

[27] ZALUAR, Alba (1999:p. 82)

[28] CARDOSO, Fernando Henrique (1962: p. 189-191)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[30] FOUCAULT, Michel (1991: p.215

[30] cf. S.A.R. p.22

 

[31]HOBBES, Thomas (2002: p.19)

[32]ESPINOZA , Baruch (2000: p. 245)

[33]  LENZMANN, Claude no filme Shoah.

 

[34] CARUTH, Cathy (1999: p.47)

[35] BENJAMIM,  Walter(1993:p.200)

[36] cf. S.A.R., p. 30.