Imagem sob a sombra: a revelação fotográfica na poética de Ana Cristina César

Por:

Ana Renata Baltazar da Penha

(aluna do mestrado-UFRJ)

 

No tempo, pós-moderno, da simultaneidade de espaços abertos, globalizados, qual a relação que o sujeito, no seu trânsito, estabelece com as múltiplas imagens visuais, que deseja preservar? Como a visão da imagem repercute neste olhante cujo olhar está historicamente inserido no tempo e no espaço da informação, da tecnologia, do vídeo-clip, dos road-movies, do cinema, da TV, da fotografia?

 

Qual o grau de intimidade entre o sujeito pós-moderno e as imagens virtuais que com ele dialogam? Será a mesma que se estabelecia (ou ainda se estabelece) na chamada “fase do espelho”, quando, para a criança olhante, a imagem de si mesma refletida no espelho era  mais inteira e unificada do que seu próprio corpo dividido em zonas erógenas e em sentimentos conflitantes?

 

Pretendo, neste ensaio, problematizar algumas dessas questões relativas ao sujeito pós-moderno, a partir do poema intitulado “Que Desliza”,  do livro A Teus Pés, publicado em 1982, da escritora brasileira contemporânea, Ana Cristina César, nascida na metrópole do Rio de Janeiro, em 1952; tendo produzido, ao longo de sua curta e intensa vida (31 anos), trabalhos sobre mídia cinematográfica e sobre tradução, que parecem ter influenciado sua escritura poética.  

 

Primeiramente, vejamos que, de acordo com a razão humanística, a distancia crítica que fundamenta o método da ciência, baseado na suposta imparcialidade do pesquisador, estabelecia rígidas distinções entre os pólos hierárquicos, socialmente discriminados, como corpo/ intelecto, intuição/ conhecimento, verdade/ crença. Assim, a visão era entendida como o sentido mais racional, na medida em que permitia a apreensão do objeto sem que houvesse um contato corpóreo com ele, metaforizando, pois, o distanciamento científico.            

 

Já no momento pós-moderno, a imagem que pode de fato ser vista é quanto mais crítica à medida que está sob uma distância entre o olhado e o olhante a qual possibilita uma proximidade com os outros sentidos do corpo e conseqüentemente com os múltiplos significados do que se vê.

 

 Se na fase do espelho a imagem que a criança via refletida era considerada a verdade, a reação do Homem moderno para com a fotografia, nos primórdios desta, foi a de se sentir face a face com a representação fiel do real. No entanto, para o Homem pós-moderno, a verdade perde sua forma definida pois este se mistura entre vários espaços, onde até a ciência se rende à visão que está para além de olhar com os olhos.Vejamos a manifestação da experiência visual no seguinte poema:

Que desliza

Onde seus olhos estão

As lupas desistem.

O túnel corre, interminável

Pouso negro sem quebra de estações.

Os passageiros nada adivinham.

Deixam correr

Não ficam negros

Deslizam na borracha

Carinho discreto

pelo cansaço

que apenas se recosta

contra a transparente

esuridão.

 

O poema intitulado “Que Desliza” parece representar o interior de uma máquina fotográfica em funcionamento, na medida em que é constituído por um “túnel” por onde circulam “passageiros”, que tangenciam uma superfície transparente e escura, ao serem movidos pelo ponto de vista do motorista errante.

  

 Roland Barthes reconhece a fotografia como uma arte “pouco segura”, de subjetividade fácil, porque, segundo ele, esta forma de imagem se torna invisível em contraste com o referente que nela se adere continuamente, provocando uma sensação estranha de artificialidade naquele que vê sua própria foto. Mas, será que a produção fotográfica do sujeito pós-moderno se adere plenamente ao seu referente, ou esta, como resultado da foto, pode, muitas vezes, não ser nem o objeto fotografado nem o sujeito que fotografa?

 

A meu ver, o método fotográfico ficcionalizado neste poema talvez aponte para a construção de uma de imagem artística, na medida em que o que se retrata poeticamente não é o produto (a foto), mas o processo, enfatizando-se assim a importância do trabalho criativo (poiesis) do pensamento e do corpo envolvido em sua elaboração.

 

Para defender meu ponto de vista sobre o poema, conduzo-os à reflexão sobre o trabalho do fotógrafo iugoslavo cego e professor de Estética, Evgen Bavcar, para quem a perda da visão, aos doze anos de idade, não impediu que continuasse fotografando, talvez porque é possível ver com os outros sentidos do corpo e não apenas com o da visão.

 

O fato de “não [vermos] apenas com os olhos” significa que a imagem que olhamos também nos olha, fazendo emergir nossa memória olfativa, tátil, gustativa, auditiva e visual, isto é, afetando nosso corpo. No caso de Bavcar, sua forma de ver a imagem, que já não passa pelos olhos, utiliza, pois, essas mesmas memórias corporais para reconstruir, no nível mental, as imagens que irá concretizar artisticamente.

 

Ver com o corpo muitas vezes é desmentir o que se vê superficialmente com os olhos e suas possíveis ilusões de óptica, porque o corpo revela que o que se mostra aos olhos ao mesmo tempo se oculta, podendo apresentar dimensões diferentes daquelas que se supunha ver, quando o objeto é analisado por outros sentidos, os quais podem aumentar a acuidade visual, como comprova Bavcar, que se orienta pela palavra de seus assistentes e pelo toque, cheiro e gosto dos objetos a partir dos quais formará imagens repletas de sentidos além do visível.

 

Para ele, o verbo, ao manifestar total sintonia com os sentidos, também é corpo, configurando uma pré-imagem em potência de devir, que antecede o visível materializado. Assim, considera o verbo como o elemento obscuro da imagem, na medida que é da escuridão primordial que se origina a luz, parafraseando, em seu texto teórico, São João: “no principio era o verbo, o qual torna-se imagem, a carne do visível, o visível em carne e osso, o substrato cognitivo do olhar”.

 

Em termos de tecnologia fotográfica, Bavcar relaciona a dimensão das trevas à técnica da câmera obscura, comparando esta ao esquecimento, que também é memória (lembrar e esquecer). Se o esquecimento é a lacuna que permite o preenchimento do rememorado com o teor atual do presente e das impressões daquele que expressa o acontecido pela palavra, pode-se construir imagens apagando-se instantaneamente a luz, de forma que essa ausência do elemento luminoso seja ocupada pelo emergir do novo. Dessa forma, a escuridão reflete um vislumbre para o futuro, que não é continuidade linear previsível de um passado que pretendia-se registrar na íntegra, mas criação.

 

Como na fotografia de Bavcar, no poema “Que Desliza”, as imagens também não procuram se aderir plenamente à face do filme negativo tentando reproduzir o real, “não ficam negras”, elas, ao contrário, eroticamente, “carinho discreto”, parecem criar o espaço necessário ao emergir do novo, a partir da ausência de registros rigidamente marcados na superfície, a qual constitui a lacuna permeável à criação.

 

No caso desta poesia sobre uma imagem de um processo fotográfico, a palavra poética situa o olhar do leitor tanto no corpo do texto como no interior do túnel recriado, “onde seus olhos estão”, sendo assim, o verbo, para quem a lê, como para Bavcar em seu processo de criação, é corpo, por sensibilizar a memória corporal, fazendo reconstruir mentalmente a imagem de um objeto material que não se vê com os olhos, mas sim com a palavra.

 

O significado da arte, em função de sua polissemia, permite apenas leituras possíveis, “Que Deslizam”. Assim, a partir do verso “as lupas desistem”, podemos observar que a tentativa de se desvelar em absoluto o significado relativo a cada detalhe do tecido textual e da imagem do objeto material ficcionalizado é um desejo pelo impossível, pois o real se mostra e se oculta em uma tensão dialética incessante.

 

Nesse sentido, a potência das imagens recriadas no (e como) poema também não se esgota nos pólos do “túnel”, caso os entendamos como os elementos que compõem o signo lingüístico, pois o mais importante nessa travessia não é o significante ou o significado, mas a terceira margem, o próprio caminho, por onde se escapa, “deslizando”, a toda significação última ou definitiva.

 

O contato corporal entre o sujeito e o objeto no nível do olhar, se interpretarmos estes como os elementos que representam as margens do túnel recriado em “Que Desliza”, também não se expressa por nenhum dos dois pólos, pois a visibilidade também não está no olhante ou no olhado, mas na travessia contínua, “interminável pouso negro sem quebra de estações”,  em busca da imagem que se mostra ocultando-se.

 

 As imagens recriadas no poema como passageiros parecem estar tão cansadas quanto os homens que as constroem, o que pode nos levar a entender que elas representam a condição do sujeito pós-moderno, ao desconhecerem em absoluto a própria identidade, estando explicitamente vazias de sentido e sendo conduzidas pelo olhar do motorista. Assim, esses conduzidos podem apresentar tais características desse sujeito na medida em que olham para ele e o conduzem, ao serem olhadas, a deixar as marcas da alienação deste naquilo que produz quando fotografa.

 

Se Benjamin, desvinculando o virtual da natureza e da arte, por um lado, entendia que a percepção visual e sinestésica do sujeito moderno estava sendo adaptada ao repetitivo ritmo do trabalho industrial ordenado,  pela fotografia (e por outras tecnologias de imagem), que possibilitava a reprodução técnica do mesmo original ao infinito, retirando, dessa forma, de cada uma das cópias as marcas individuais do trabalho artesanal transmitido de geração a geração; e que dava a ilusão de neutralidade e verdade à sua expressão tendenciosa e parcial do real, reduzindo (a não ser quando se tratava da foto de pessoas queridas e distantes, que ainda apresentava um último  vestígio da aura), portanto, a importância da reflexão sobre aquilo que se mostra ocultando-se.

 

Por outro lado, considerava que tal homem seria capaz de resgatar a reflexão e a memória por meio um trabalho de trama singular ao contemplar os objetos da natureza, como uma trilha de montanhas ou o sombreado de um galho, com o olhar em direção ao horizonte, de forma a ter acesso a mais plena  manifestação da aura, entendida  como “a aparição única de uma realidade longínqua, por mais próxima que ela esteja”.

 

Já no momento pós-moderno, em que se pretende superar as distâncias “(...) entre o fora e o dentro, entre a matéria e a idéia, entre a  emoção e o conhecimento” (COLLOT, 2004, pág 168), a relação do corpo do sujeito, afetado pelo principio da virtualização da imagem, com a tecnologia parece ser de continuidade, permitindo que se olhe para os objetos fotografados, com o olhar acoplado à maquina voltado para a linha do horizonte.              

 

Em “Que Desliza”, essa continuidade entre olho e máquina pode ser inferida a partir do verso “onde seus olhos estão”, que  situa os olhos do leitor dentro de um olho mecânico (o modelo da máquina fotográfica recriada); que, por sua vez, é o meio material em que os “passageiros” são direcionados pelo olhar do motorista; que por sua vez é guiado pelo olhar do eu-lírico; que por sua vez representa o olhar da poetisa na expressão de uma escritura por meio da qual recria um jogo de olhares em que as imagens vêem e são vistas. 

 

Desta forma, no poema, recria-se um aparato técnico que tenta representar não apenas o objeto posto em foco, mas o próprio mecanismo, descrito por Benjamin, de apreensão da aura de um elemento da natureza: a postura de se visualizar o alvo, conduzindo o olhar por uma travessia, sempre mais além, rumo ao horizonte, cuja extremidade é o ponto de contato entre a transcendência e a imanência, entre o visível e o invisível.

 

Assim, segundo Bataille, para quem a arte é um ato erótico, e o erotismo  também apresenta um teor de violência, se o olho  é um órgão do homem ou do animal cuja visão provoca um sentimento contraditório de sedução extrema que está no limite do horror, porque este é da ordem de um fascínio destrutivo pelo que causa a quebra da homogeneidade; para o sujeito pós-moderno, como no caso de “Que Desliza”, ver o interior do olho mecânico da máquina é penetrar violentamente o objeto de desejo; ao mesmo tempo que é ser violado por ele, na medida em que a máquina recriada se adere a essa parte sensível, o olho do sujeito, como uma prótese virtual por meio da qual vivenciará experiências afetivas intensas.   

 

Segundo Collot, só pode haver horizonte porque existe o ponto de vista de alguém. Nessa forma de experiência espacial, sujeito e objeto visto são inseparáveis, pois o arranjo da seqüência de lugares, a definição das formas, as linhas geográficas do relevo e da vegetação variam de acordo com a posição do corpo de quem vê. Assim, o corpo do olhante permite a este observar apenas um aspecto por vez da paisagem, pois “um  ponto de vista è também um ponto de não-visão”, na medida em que “toda perspectiva exclui outras”.(COLLOT, 1988, pág 35)

 

Portanto, a partir do horizonte, a paisagem é sentida como um prolongamento de um espaço subjetivo, que reflete a afetividade do olhante, remetendo-o a suas memórias. Nesse sentido, é todo um campo de sua existência que se oferece ao olhar do sujeito, de forma que a profundidade desse espaço sempre mais alem resgata a profundidade do tempo, em que o presente não pára de ser redimensionado pelo passado longínquo e atualizado, revelando-se assim a imagem da amplitude da vida.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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