Os dois calibres de uma prosa – O anticonvencionalismo metódico de Cidade de Deus.

 

Wellington Augusto da Silva

Mestrando em Teoria Literária - UFRJ

1.

Que Cidade de Deus , romance de Paulo Lins, vem a público sob o signo da polêmica não é segredo para ninguém. Muito menos que no livro pode ser acompanhada a evolução do crime na localidade. O leitor deste romance torna-se, assim, íntimo de uma variedade enorme de violência, exposta muitas vezes de maneira direta e cruel: homicídios, assaltos, estupros, perseguições, trocas de tiros, acertos de contas; enfim, mortes de toda ordem. O leitor sabe também que a mutação da criminalidade operada pela introdução do tráfico de drogas teve e tem conseqüências catastróficas, que o une ao mundo narrado, de modo quase direto.

Por se tratar de uma composição literária e em que pese seu discurso parecer abandonar as mediações, a configuração da matéria se dá pela recriação das cenas de guerra em larga escala sugerindo, inclusive, a impressão de um roteiro de filme norte-americano [1]. Para isso, a narrativa é constituída por uma movimentação intensa encarnada em uma população inteira de personagens cuja semelhança com o compasso urbano moderno chega a impressionar. O enredo, deste modo, sustenta a exigência da matéria, veiculada numa prosa tão original quanto complicada. Formado de ciclos de variados graus de intensidade, o ritmo narrativo internaliza a velocidade característica da experiência social contemporânea. O assunto e o modo narrativo, juntamente com o narrador, armam uma estrutura decisiva para conduzir a um dos efeitos encobertos pela técnica empregada, desvelando um tipo de padrão interno da prosa que dita as seqüências das cenas e as suas motivações. Assim, tentaremos descrever a eficiência atingida pela combinação daqueles dois elementos, assunto e modo narrativo.

A fim de especificar o anunciado, tomemos como exemplo as mortes de quatro personagens: Salgueirinho, Detetive Cabeção, pertencentes à primeira parte do livro e os outros dois, Birão e o menino Othon, ao segundo e terceiro terço, respectivamente. Com isso, queremos sugerir como a narrativa objetiva impasses da seguinte ordem: pela atenção aos diferentes momentos históricos que orientam as três partes do enredo, é possível perceber a linha de força que sustenta aquilo que chamamos de continuidade pelo descontínuo.

2.

Na experiência moderna, a lida do ser humano com a morte é repleta de pavor mas conserva ainda o caráter ritual de épocas pretéritas. Velar e enterrar os mortos são atividades que perpassam os tempos e chegam-nos com grande carga simbólica. Com os assassinatos cruéis e desnecessários que marcam a época atual, experiência da morte assume um novo caráter para as camadas pobres, quando associada à guerra do tráfico. Policiais invadem as áreas dominadas por este comércio, bandidos defendendo seus estabelecimentos morrem levando consigo outras vidas. No meio destes tiros, surge uma guerra particular, e os trabalhadores habituam-se às multidões de cadáveres, com freqüência cada vez maior. Assim, não seria exagero pensar que a proximidade com a morte, e a intimidade com o horror produzido por ela, em certa medida, constitui mais um traço definidor na estrutura social. Uma série de momentos dramáticos pode ser colhida ao longo da narrativa, cuja função é intensificar a brutalidade das novas relações sociais. São as mortes daqueles inocentes, que tiveram o azar de estarem no local e na hora errada ou de se portarem indevidamente nas ações da bandidagem. Via de regra, os mortos indevidamente são trabalhadores alvejados ao voltarem para suas casas. Como exemplo, a morte de Birão durante a investida sobre a área dominada pelo traficante Ari do Rafa, do morro do São Carlos, por Zé Pequeno e seus quadrilheiros. Durante a caminhada que os levariam ao alto do morro, as luzes fracas dos becos não permitiam distinção entre inocentes e bandidos. A descrição da cena é direta tal qual a perseguição de Zé Pequeno:

 

Ao entrarem pelo sexto beco, um homem correu. Poderia ser quem fosse: na lógica de Pequeno teria de morrer, pois se correu é porque estava comprometido com alguma coisa. (p.290)

 

E mais adiante o desfecho cruel da cena:

 

O fugitivo não correu mais do que cinqüenta metros. O tiro de Pequeno espatifou-lhe a nuca, o de misericórdia entrou em seu olho esquerdo. Pequeno deu uma geral no corpo, encontrou apenas dois cigarros soltos no maço, um prospecto da Igreja Assembléia de Deus, dois saquinhos de refresco em pó e uma receita médica.(p.291)

 

Embora esta rotina se repita brutalmente, e as vítimas aumentem em grande escala, a proximidade desta população com horror ainda lhe causa revolta. A indignação é capaz de brotar mesmo da vida embrutecida: com a falta de motivos claros para as mortes e com a insegurança até dentro de casa. No entanto, tal fato ainda nos revela um resquício de humanidade e aversão à barbárie, ainda que a camada esteja acuada, já que o biscateiro Birão, com o “seu medo gerou sua morte, sua morte gerou pânico em sua esposa, e revolta nos amigos que não sabiam o motivo de seu assassinato” (p.291).

Interessante notar que neste caso, premido pela expansão da faixa comercial de Pequeno, o narrador não gasta mais do que um parágrafo para Birão e dilui sua contribuição à dignidade do morto ao longo do lamento de seus vizinhos e amigos: “o morto era biscateiro, morador antigo do morro, amigo de todos, casado há pouco tempo e pai de dois filhos pequenos” (p.291). A pressão exercida pela necessidade de narração da ofensiva de Zé Pequeno é maior do que a contemplação da morte de um trabalhador inocente.

Como contraste, em outros momentos, a clara intervenção do narrador problematiza a morte com a barbaridade que a produziu. Para isso, lança mão por exemplo da reconstituição do histórico do morto, dos relatos de sua infância ou o que em sua vida o empurrou para o crime, se for bandido. Este tipo de interferência do narrador confere humanidade àquela vida que se perdeu. No entanto, há diferenças muito fortes no tocante às mortes de personagens díspares entre si, trabalhadores e bandidos. A recorrência a elas, neste ponto, não é gratuita e o elemento que redimensiona o assunto é a comoção da comunidade com mais duas mortes.

O “bom-ladrão” Salgueirinho, namorador, amigo de todos, defensor das escolas de samba do coração, é bandido respeitado capaz de ditar regras para o bom funcionamento dos assaltos. Usando das artimanhas aprendidas na vida marginal, é capaz de convencer os demais parceiros pelas lições que profere. É a partir da necessidade de sobrevivência que Salgueirinho se torna o bandido mais respeitado, do Estácio a Cidade de Deus. Se encaramos esta figura como símbolo degradado da antiga malandragem, aquela que rascunharia um possível caminho para a superação da ordem social, pela sua flexibilidade à ferrenha ética do Trabalho alienado, o falecimento do bandido tem muito de amarga ironia. Revestida de muita emoção, a morte do malandro é lamentada por todos os seus amigos, de áreas rivais inclusive, por várias namoradas presentes ao velório, por blocos carnavalescos concorrentes. O falecimento de Salguerinho é explicado por duas razões: atropelado por um motorista imprudente ao engatar a marcha à ré; e pela mandinga da noite anterior, feita por uma de suas namoradas traída. Se descartarmos o ciúme, ganhamos uma interpretação profunda: a malandragem, encarnada na personagem, é vitimada pela modernização girando em falso, pela marcha a ré do automóvel. A ironia da cena tem dimensão superlativa visto que tão grande quanto a conseqüência do progresso retardatário da periferia é o velório do bom malandro com 2000 pessoas.

Antes de tratar da cena da morte do detetive Cabeção, rival e caçador do bandido Cabeleira, é importante comentar a seqüência narrativa imediatamente anterior. Trata-se de uma cena simples, uma ronda melancólica pelas esquinas à procura de Cabeleira e volta para casa, cujo conteúdo é o resumo da vida do policial. A descrição da personagem é feita por meio de uma técnica que explora recursos interessantes: durante a volta para a sua casa, o detetive rememora toda a sua vida, expondo-a pela cifra da violência. A organização das frases é interessante também: a cada período com conteúdo interno, manifestação do pensamento do PM, segue uma frase de ação, cujo conteúdo, por sua vez, é externo. Este movimento dá o tom deste fragmento: o balanço da vida do policial acompanha seus passos, o efeito de coincidência entre pensamento e ação é assim garantido. De maneira mais ou menos declarada, esta a passagem pode ser lida como justificativa do próprio detetive para a sua má conduta atual: imigrante nordestino, maltratado pelo padrasto quando criança, viu o filho morrer de tuberculose, tenta ganhar a vida no Rio de Janeiro, passa fome e cata comida nas lixeiras, entra no aparato policial devido a uma indicação de um tenente na PM, passa a ser torturador, forma-se detetive de má conduta e cobrador de propina.

A morte do detetive é pré-anunciada pelos seus pesadelos. O detetive, abandonado pela esposa, morre de tristeza, em sua casa e sozinho, depois de atravessar as vielas de Cidade de Deus. Um tiro de misericórdia ainda é dado por um morador local como vingança pela rajada de metralhadora com a qual Cabeção rasgou o corpo de uma criança, em perseguição a Cabeleira.

Lê-se a partir daí o funesto ritual criado em torno do cadáver de Cabeção, motivo para os moradores comemorarem a paz momentânea na favela. O corpo sem vida, colocado numa carroça que caminha sem rumo pelas ruas, é alvo de escarros, tiros e também a fonte de sangue que faz rastro por onde passa:

 

Alguns bandidos atiraram no defunto, o sangue jorrou forte, fazendo cair mais rápido e tornando mais rubro o crepúsculo de outubro. A mãe de um maconheiro assassinado por Cabeção aproveitou para cuspir em seu corpo. Foi ovacionada. A carroça entrou na rua do braço direito do rio. A multidão cresceu. (...) A festa tomou nova proporção. Atiraram pedras, despejaram latas de lixo, deram pauladas. (p.175)

 

Evidentemente é percebida a repulsa da comunidade pelo detetive. A diferença de repercussão é bem clara contrastada com a morte de Salgueirinho. O último assassinato é o do menino Othon, de nove anos, envolvido a guerra entre as quadrilhas de Mané Galinha e Zé Pequeno. A cena é a seguinte: Mané Galinha, já chefe de um exército de criminosos, nervoso após saber da morte do um dos seus soldados, o teleguiado Felix, corre para a rua do assassinato, à frente de 70 comandados e inicia a troca de tiros. A conseqüência que nos interessa é:

 

A fuzilaria já durava três horas quando Galinha penetrou nos labirintos da Treze, sozinho metia o pé nas frágeis portas de madeira. O menino Othon, de nove anos, atirou com um 32 debaixo da mesa assim que a porta de sua casa foi abaixo, acertando de raspão o braço esquerdo de Galinha, que pulou para o lado e, só com uma mão, retalhou todo o corpo de Othon com tiros de escopeta, voltou para perto dos amigos e juntos bateram em retirada. (p.471)

 

Descontada a destreza heróica que Mané Galinha tem no manejo da escopeta, a violência do episódio é capaz de chocar mesmo a consciência mais embrutecida. Esta reação é, por certo, aumentada pelo destacamento do parágrafo de seu contexto. A prosa utilizada neste episódio é tão crua quanto o próprio instante e tão direta quanto o choque causado no leitor. Não há nesta passagem nenhuma comiseração quanto ao assassinato do menino, recorrência ao seu histórico de vida ou causas que o empurraram especificamente para o crime. Cria-se a impressão de que o narrador ausenta-se frente à brutalidade e um rascunho de seu comentário só será percebido no parágrafo seguinte, quando policiais em serviço naquele dia “aparecem meia hora depois, do cessar fogo, para tomar conta do corpo de Othon e de mais um recém-nascido morto na guerra” (p.471). Note-se também a forte sugestão de estatística no discurso que caracteriza a atuação policial em relação ao cadáver do menino. Ninguém chora pela morte do soldado-mirim, não há comoção, nem revolta da comunidade. O confronto entre os bandos rivais é um turbilhão que suga jovens por mais diversos motivos, provocando mais dúvidas do que soluções possíveis sobre os seus descaminhos. A composição dos exércitos é transformada com o desenvolvimento do conflito instalado em Cidade de Deus. A citação é esclarecedora e permite medir o calibre do problema:

 

Antigamente, comentavam pasmados os moradores, somente os miseráveis, compelidos pelos seus infortúnios, se tornavam bandidos. Agora estava tudo diferente, até os mais providos da favela, os jovens estudantes de famílias estáveis [...] caíram no fascínio da guerra. Guerreavam, [...] por motivos banais: pipa, bola de gude, disputas de namoradas. (p.470)

 

São esses os motivos que levam os novos soldados a engrossarem as fileiras do confronto. A perniciosidade do avanço da guerra é medida por este metro: guerreiros cada vez mais novos, morrendo por razões banais, submetidos à lógica irracional do confronto direto. A conseqüência é o silêncio da comunidade, que já não chora pelos seus filhos perdidos, pois com eles só vão suas próprias vidas e não símbolos e tradições tal qual Salgueirinho ou Detetive Cabeção, cada um a seu modo.

Deixamos claro, de antemão, que não foram negadas as diferenças de densidade nas personagens selecionadas. Não se trata de escolha arbitrária que escamoteia as desigualdades, mas uma característica dos personagens imposta pela própria construção narrativa. Discrepantes entre si, os personagens selecionados, quando relacionados, podem evidenciar a dimensão do processo tentamos descrever.

As mortes dos dois personagens de maior envergadura, colhidos da primeira parte do romance, estão inseridas no período imediatamente anterior à degradação do conjunto habitacional. Reconstruindo esta etapa, trata-se dos antecedentes ao império de Zé Pequeno e a grande linha temática do romance está em seus primórdios: o tráfico de drogas ainda não havia se consolidado na comunidade, os crimes praticados, em sua maioria contra a comunidade externa a Cidade de Deus, são ações em trio ou duplas de assaltantes. É tempo de tiros de revólveres em oposição aos de pistolas, típicos do reinado no tráfico de Zé Pequeno. Salgueirinho foi morador do Estácio e conservava em si respeito da comunidade. Sua ausência deixa a lacuna que todos sentem pelo carinho que lhe devotavam. O falecimento do detetive é o reverso do primeiro. E, por ser detestado pelos moradores, devido às suas atitudes corruptas, seu óbito é efusivamente comemorado. Deste modo, Salgueirinho e Cabeção formam uma unidade que revela, simbolicamente, uma etapa histórica decisiva para a compreensão do romance em sua totalidade.

Neste ponto, as indicações cronológicas são fundamentais. Muito além de mera notação temporal, o pano de fundo histórico da obra é o período da ditadura militar. Se levarmos em consideração que os primórdios do conjunto habitacional remonta a 1966, o falecimento da dupla gira em torno dos anos 70, auge da repressão. Aprofundando ainda mais a observação, trata-se da fase em que o país começou a assistir à degradação da política nacional-desenvolvimentista.

Ao segundo par, reserva-se o mergulho fundo na abertura econômica e conseqüente organização do tráfico de drogas. Considerando as rotas internacionais deste comércio, torna-se mais fácil de entender porque Cidade de Deus é ponto de circulação de entorpecentes e demanda grande atividade. Na medida em que o tráfico se estrutura, arregimentando pobres, expandindo as áreas de venda em outros morros e ampliando lucros dos verdadeiros donos deste ramo, as cenas brutais aumentam e a violência na localidade também [2]. O biscateiro Birão é vítima da ação expansiva das margens comerciais de Zé Pequeno, uma espécie de estruturação produtiva do tráfico, e o menino Othon é a ponta que opera a barbárie decorrente deste processo.

Rearranjando os pares, surge uma nova combinação em que o movimento destrutivo desta acumulação capitalista se clarifica. Lembremos da expressão de Roberto Schwarz a este respeito. Após descrever o anticonvencionalismo metódico, um dos procedimentos-chave do romance que descreveremos a seguir, o crítico menciona a transição entre as etapas da contravenção. A ilustração é justamente a passagem do assaltante e bom malandro Salgueirinho ao projeto de bicho-solto que foi o menino Othon. As lágrimas da comunidade inteira para o primeiro, a rarefeita condolência do narrador para o segundo, o desaparecimento de uma “marginalidade menos anti-social” para uma outra muito mais brutal. Assim, a análise concreta desfaz a suposição abstrata e o assaltante assume sinal positivo ao passo que o menino, negativo.

3.

Tentou-se acima explicar, por meio das mortes de alguns personagens, uma das conseqüências do nervo estrutural de Cidade de Deus . Cabe agora descrever o procedimento que R. Schwarz chamou de anticonvencionalismo metódico , uma espécie de padrão da narrativa, sugerido pelas repetições sinistras das mortes de personagens centrais e secundários.

O romance Cidade de Deus , de Paulo Lins, segue a tendência de certa ficção contemporânea brasileira de se organizar em capítulos extensos formados por blocos menores. Tais blocos apresentam-se, em sua quase totalidade, como movimentações de personagens, sendo raros os fragmentos constituídos pela descrição, como método de composição [3]. Desde a primeira cena do livro, as conseqüências de todas as ações serão interrompidas para o desenvolvimento de outras, que a elas se juntam. A rede tecida no livro é costurada solidamente e a continuidade dos eventos é garantida por dois meios: a) pela simultaneidade ou b) pela sua sucessão temporal. No entanto, é bom enfatizar, estes eventos sempre são interrompidos no momento anterior ao clímax da ação. Esse arranjo composto de fracionamento é o que garante o suspense (porque interrompe a linearidade) e a agilidade da narrativa (pois apresenta vários ângulos e situações). Se considerarmos isto em aliança às passagens de alto teor imagético e ao foco na ação, o efeito de roteiro cinematográfico pode ser explicado, uma vez que a configuração da matéria se dá pela recriação das cenas de guerra em larga escala [4]. Poucos são os pares de páginas em que as cenas resistem ao corte para cruzarem-se com outras. Este estilo já foi apontado como uma estratégia do narrador de visão caleidoscópica que tenta registrar, na tensão dos momentos, os vários ângulos das situações em que recai seu olhar. Importante salientar que este estilo, por mais que contribua para o fracionamento da linearidade narrativa e aumente, por conseguinte, a velocidade da prosa, não deixa de estruturar processos, capazes de captar impasses também sociais [5]. A partir da descontinuidade da forma narrativa adotada, podemos tirar duas conclusões: 1) o romance demonstra, assim, com aguda vivacidade, o sistema de relações internas à favela; 2) num nível mais profundo, é uma aposta na continuidade dos conflitos da trama. Se corretos estes argumentos, o conjunto de lutas travadas no enredo instaura um movimento de movimentos: ao persistirem, dando continuidade à narrativa, a tensão aumenta e o entrecho ganha em complexidade devido à rede construída. Além da articulação derivada da circulação de personagens, a alta voltagem de Cidade de Deus é atingida também por um tipo de convenção interna da prosa. No ápice das ações, as suas conseqüências sempre são adiadas, o entrecho é travado, interrompido, para ser reencontrado páginas depois. A resolução dos conflitos capaz de reorganizá-los num outro patamar é sempre postergada pela introdução de uma problemática inesperada. De maneira geral, este procedimento sinistramente repetitivo é base de uma aposta na continuidade do próprio fazer narrativo, uma vez que a matéria se estrutura por formas destrutivas. Disso parece decorrer uma contradição entre o tema escolhido (a expansão da criminalidade) e a técnica usada (a fratura da linearidade).

Em outras palavras, a destrutividade apontada no desenvolvimento do romance, cujo grau máximo é o extermínio sumário de personagens, encontra o correlato técnico no fracionamento da estrutura romanesca. Um dos significados latentes do romance é um ciclo de acumulação periférica, a transição do nacional-desenvolvimentismo para o que seria depois chamado de neoliberalismo. As conseqüências para a sociedade brasileira e mudanças ocorridas no seu interior tentam ser expostas por uma ótica próxima às camadas pobres da população também sob o signo de transição. Cidade de Deus configura o assunto através das transformações internas à criminalidade: dos assaltos artesanais à organização do tráfico de drogas. O abandono de uma suposta “ética dos assaltos” pela adoção do caráter empresarial do tráfico, o fundamento que opera por trás disso é a intensa mercantilização da sociedade, do âmbito econômico ao cultural, aliado à profunda repressão política. Como desdobramento disso, o aumento da violência para as camadas pobres e médias.

Por outro lado, este recurso formal de arme e desarme das ações, concretizado em blocos narrativos curtos, pode significar uma transposição literária de estratégias usadas pela comunicação de massas. A sugestão se comprova na medida em que a atenção se volta para o contexto histórico. Alguns anos após o golpe de 64, o cunho avançado da política nacional-desenvolvimentista foi abandonado pela ditadura, visto que seu objetivo era alinhar o progresso econômico ao seu projeto de segurança nacional. Nesta etapa, assistiu-se também à importação de bens e valores da indústria cultural que iniciou o processo de apagamento das relações entre cultura e política. A isso, some-se a intensa censura que auxiliou a sedimentar este caminho. Hegemonizada pelo padrão da cultura de massas, por sua vez, veiculada pelos poderosos canais da indústria cultural, a subjetividade dos indivíduos é seriamente abalada. Assim, a sociedade brasileira participa da experiência moderna, novamente, em descompasso frente às nações centrais. Os reflexos artísticos destas mudanças sociais podem ser atestados, entre outros, na introdução de procedimentos jornalísticos, e televisivos ao texto literário. O rendimento destas técnicas deve ser avaliado caso a caso, já que as produções literárias dialogavam, ora abertamente ora de modo velado com os acontecimentos correntes.

Interessa-nos a noção de brutalismo , cunhada por Alfredo Bosi, a respeito de uma parte da literatura produzida nos anos 70. Em síntese, o brutalismo pode ser entendido como uma modalidade narrativa correspondente ao período de intensa urbanização, de modernização promovida pelos militares bem como de assimilação perversa dos padrões de consumo. Um tipo de literatura que mimetizou este processo com alguns temas e técnicas particulares, conformando traços gerais e não um movimento literário. Na sua abrangência, assiste-se à abordagem da violência urbana e correlata estilização; a figuração de personagens marginais; tematização de novos hábitos sociais, incorporados à época; estilização da cultura de massas e incorporação de técnicas próprias dela. Por este último ângulo, a atenção dispensada pelo leitor com esta ficção é semelhante à do espectador em frente ao aparelho de TV, programado ao tempo curto dos comerciais e das propagandas. Apoiada à exposição veloz das imagens, a objetividade do recurso, que veicula supostamente informações , impede a reflexão do receptor, invariavelmente, isolado. Produtor e produto, em certa medida, da indústria cultural, a leitura de um texto brutalista não pode se dissociar da influência da comunicação de massas [6].

Se pensarmos em seu aspecto mais marcante, o brutalismo se distingue pela exposição da violência urbana de modo direto e lançando mão de recursos antiliterários. Esta maneira de narrar tem razão de ser haja vista as penosas mudanças da vida urbana brasileira. O abandono das mediações estiliza o ritmo social representando, de alguma maneira, a própria violência urbana. Este último é um tópico importantíssimo para a compreensão do brutalismo, pois é sob esta cifra que a modalidade literária sedimenta a experiência social desagregadora do período. Se produtiva a chave de interpretação, o romance de Paulo Lins dialoga com o brutalismo de primeira hora e experimenta novos caminhos impostos pela atualidade. De outro modo, se entendermos esta narrativa sob a influência dos recursos e efeitos da comunicação de massas, (a velocidade da prosa, a exposição da violência crua, o suspense), a violência é explicada sob duas vertentes. Neste passo, Cidade de Deus abriga as seguintes abordagens: uma de “curta duração” cuja função é realçar ainda mais a brutalidade do texto, e outra, de “longa duração”, que insere as manifestações de violência numa perspectiva histórica.

A primeira vertente caracteriza as cenas mais brutais da narrativa. Nestas seqüências, os assassinatos são relatados com, no máximo, dois cortes; a tensão da seqüência permanece assim, pouco tempo em suspensão. Os fragmentos são geralmente descrições, as personagens são tratadas com frieza e nestes momentos brutos sugere-se a tal objetividade da imagem que embota a percepção crítica. A título de exemplo, citemos a passagem:

 

Lá na favela, uma mulher verificava a temperatura da água que botara para ferver, depois de ir à birosca duas vezes para chamar o marido que se embriagava com os amigos. Durante o dia, bem que ela pensou em desistir do plano, mas ao vê-lo embriagando-se resolveu dar continuidade ao seu plano de ser feliz para sempre. Já tinha feito o marido associar-se a um seguro de vida na semana anterior e agora o mataria sem piedade. (p.295).

 

Após voltar para sua casa embriagado do bar, o bêbado deita-se:

 

E em poucos minutos roncava alto. A mulher arrastou-o para a cozinha e despejou água fervendo sobre sua cabeça.

Foi presa por homicídio premeditado e não recebeu a quantia que esperava do seguro. (p.300)

Atentemos à fria linguagem utilizada, percebida através do discurso indireto. Esta seqüência é descolada de qualquer problemática anterior e não se desdobra em nenhuma outra. Sua função é tentar apresentar a violência sob relato cru e, relacionando-a à fatura geral, interromper a ação, mais carregada simbolicamente, em curso. O relato da mulher assassina se desenrola entre momentos que encerram um ciclo de transição: 1. a investida de Zé Pequeno ao morro do São Carlos, muito tensa e fundadora da expansão dos domínios do traficante; 2. o assalto a um casal de classe média pela dupla atrapalhada Nego Velho e Metralha.

Arriscando uma interpretação deste recurso (a descrição crua da violência), há que se considerar sua ambigüidade; o seu uso dominante serve a interesses de ordem contrária à reflexão. No entanto, dependendo dos materiais veiculados, pode servir ao campo da crítica, cabendo descobrir esta vocação na especificidade de cada manifestação artística. Neste âmbito, o romance é um campo conflituoso de tensões contrárias. Há passagens, como a que vimos, em que o travamento da seqüência serve à brutalidade gratuita e sem historicidade. Em outros, a adoção desta técnica se adequa à representação da experiência moderna e é construída de modo a permitir também à sua crítica. Como se trata também de uma narrativa sobre o secular abandono dos negros e das camadas pobres da sociedade brasileira, Cidade de Deus consegue dar historicidade àquelas manifestações. Basta apontar qualquer cena em que se figurem nexos com o passado colonial. Como exemplo, o sonho de Busca-pé e Barbantinho, no sítio do casarão mal-assombrado. Após a transformação total do lugar onde estavam, os meninos deparam-se com a rotina da escravidão:

 

“Viam os negros trabalhando nos engenhos de açúcar, nas fazendas de café. O chicote repenicava no lombo. O bosque dos Eucaliptos avolumou-se, tinha agora um ar imperial”. (p.177)

 

Se consistente o raciocínio, o método do anticonvencionalismo, de travação e suspense das ações, não se liga apenas ao entretenimento ou ao fragmento descontextualizado. Há encadeamentos poderosos, ao longo do romance, capazes de repor impasses históricos no presente, colocando as manifestações de violência no campo que chamamos de “longa duração”. Importante ressaltar que o teor acumulativo deste processo se dá pela via negativa, expondo, assim, as conseqüências da modernização na periferia.

Podemos interpretar este método de composição de mais uma maneira. Pela contextualização do assunto, é fácil perceber que a significativa influência da indústria cultural na ficção brasileira remonta à época da ditadura militar. Dentre as várias conseqüências do período, a perda da memória coletiva é uma chave para a compreensão de nossa época. A ausência da tradição desautoriza a possibilidade de transformação do real [7]. Neste cenário em complicada movimentação, cuja reordenação está fora do horizonte, o texto literário não poderia de modo algum apontar para a resolução dos conflitos. Sua produtividade frente ao impasse é insistir pesadamente no lado difícil da experiência contemporânea. Como a totalidade social já não pode figurar na representação artística, Cidade de Deus aposta na continuidade do ato de narrar apoiada no travamento das seqüências.

O fundamento concreto da técnica narrativa pode encontrar correspondências com a atual etapa da modernização periférica. Ao descartar da produção de mercadorias a força de trabalho de camadas inteiras, conjuntamente à introdução de tecnologia e ciência neste processo, o capitalismo atual faz com que sua expansão encontre cada vez menos consumidores.

Como expressão possível de um tempo de dissolução das antigas formações nacionais, o anticonvencionalismo metódico de Cidade de Deus confirma os limites objetivos do ato de narrar na contemporaneidade. No entanto, o faz de modo contraditório próprio a qualquer técnica: num passo, representa a velocidade da imagem no contexto atual (dada a forte tendência imagética da narrativa); no outro, resiste bravamente ao conformismo. E por duas razões complementares: 1) é capaz de mimetizar a pressão a qual é submetida a maioria das personagens em que a necessidade fala mais alto do que os valores morais; e 2) é a via em que se apresenta a historicidade da violência e suas manifestações.

Ainda com relação a este ponto, Cidade de Deus prova sua vocação polêmica. Caso a técnica empregada fosse impermeável à historicidade dos materiais que veicula, ou seja, caso ela mesma – a técnica – não fosse ambivalente, o romance tenderia fortemente ao conformismo e transformaria a violência em espetáculo. Na fatura geral, trata-se de um livro rebelde que não concilia inteiramente com o processo social, recusando-o, a seu modo, nos pontos mais profundos de sua forma.

 

Referências bibliográficas :

BUENO, André (org). Literatura e Sociedade . Rio de Janeiro: 7Letras, 2006;

LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Cia das Letras, 1997;

OTSUKA, Edu Teruki. Marcas da Catástrofe – Experiência urbana e Indústria Cultural em Rubem Fonseca , João Gilberto Noll e Chico Buarque . São Paulo: Nankin Editorial, 2001;

SCHWARZ, Roberto. Seqüências Brasileiras . São Paulo: Cia. das Letras, 1999.

 

1. Estas são observações de R. Schwarz a respeito do romance. In: Cidade de Deus , Seqüências Brasileiras, 1999.

2. Lembremos, de passagem, que a especialização monumental que a sociedade alcançou atualmente não permite a representação literária da totalidade. Sob pena de incorrer em falsa consciência, os druglords continuam seguros em suas luxuosas residências.

3.Tal qual Lukács entendia o romance naturalista do séc. XIX. Cf. Narrar ou Descrever, Ensaios sobre Literatura, 1968.

4. Estas são observações de R. Schwarz a respeito do romance. In: Cidade de Deus , Seqüências Brasileiras, 1999;

5. Esta é a leitura de Lívia Lemos em seu artigo Ação e narração, em cena Cidade de Deus . In: Literatura e Sociedade. André Bueno (org), 2006.

6. Estes e alguns comentários a seguir podem ser encontrados no capítulo inicial, Antecedentes e Problemas , do livro de Edu T. Otsuka, Marcas da Catástrofe. São Paulo: Nankin Editorial, 2001.

7. A afirmação relaciona-se à passagem de Schwarz sobre uma formulação de Adorno, presente em Sobre Formação da Literatura Brasileira , In: Seqüências Brasileiras, 1999.

 

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