Então, a China.
_uma análise semiológica dos romances Bombons chineses e O complexo de Di_
Maria Luiza Franco Busse
A China se dá a saber pelo seu texto político. A observação de Barthes encontra sentido na literatura contemporânea compreendida no marco do movimento da nova literatura iniciada em 1919. Os romances analisados para a verificação dessa linhagem são Bombons chineses , de Mian Mian, e O complexo de Di , de Daí Sijie.
Ambos falam das transformações que estão ocorrendo hoje na China. O primeiro aborda as conseqüências advindas do choque cultural que atinge uma geração de jovens chineses que vivem o ritmo vertiginoso das mudanças no mesmo diapasão. O segundo aprofunda a reflexão entre tradição e modernidade na figura do juiz corrupto, porém conservador, que condiciona a libertação do amor de juventude do protagonista ao pagamento na forma de uma moça virgem com que quer fazer amos para obter vitalidade e energia.
Os textos desses autores chineses que escrevem sobre a China do século XXI remetem às noções de jinpai e haipai , dois tipos de literatura que nos anos 1920 e 1930 colocaram em discussão tradição e modernidade, engajamento e descompromisso, a partir de acontecimentos e informações extraídas das fontes locais e das influências externas.
Uma das características do novo wentan , mundo literário, daqueles anos, foi o aparecimento de numerosas sociedades com o objetivo de reunir os escritores em torno de uma revista. Por si só o fenômeno já é uma importante inovação visto que no passado a regra era o desprezo mútuo entre os literatos e no momento a literatura, movida pela subjetividade e pelo individualismo de inspiração ocidental, tendia a acentuar as diferenças entre as personalidades. Porém, a solidariedade não significou entendimento.Violentas polêmicas se produziram entre as diferentes correntes de pensamento literário.
A querela travada entre o jinpai e o haipai permite ver como em determinado período da história chinesa, em especial a década de 1930, a literatura viveu a geopolítica e sua complexidade no encontro entre o Ocidente e o mundo chinês. Na diferença entre o jinpai e o haipai se encontra a discussão sobre o que é literatura na sua relação com a sociedade, traço verificado nos romances de Mian Mian, que vive em Xangai, e Daí Sijie, que mora em Paris, já que ambos escrevem a China em relação com o exterior no que diz respeito ao que se passa tanto fora quanto dentro do país.
De acordo com suas origens, cada um desses escritores fornece ao leitor atento e paciente, se não a compreensão, pelo menos as pistas para entrar em uma inteligibilidade diversa à do Ocidente que exige, ao lado da sensibilidade, repertório sobre o mundo no qual as histórias se passam.
Mian Mian e Daí Sijie seguem a linhagem literária do movimento de 1919 que repercute até os dias de hoje, no sentido de que afirmam a forte tradição chinesa de textos de inclinação política. Mesmo a milenar escrita oblíqua, característica da língua chinesa praticada nos aforismos, citações, provérbios e ditos populares, encontrou forma própria de expressão e florescimento político após a fundação da República Popular da China.
Em sua Breve História do romance chinês , Lu Xun (1881-1936), considerado o pai da literatura moderna chinesa, observa que
(...) quando vemos a evolução da China nos encontramos diante de dois fatos muito peculiares. Um deles demonstra que o velho volta a aparecer muito depois de que o novo tenha saído à luz, o que em outras palavras é uma regressão. O outro fato nos mostra que o velho se perpetua por muito tempo depois que o novo apareceu, o que seria um amálgama ¹.
Tendo a China como protagonista das suas histórias, Daí Sijie e Mian Mian conservam essas peculiaridades e seus romances ,situados na dinâmica do processo de transformação que vive o país, podem ser considerados uma extensão do movimento de 4 de maio de 1919 que marcou a tensão entre tradição, modernidade, local e universal, que o país passou a conhecer, efetivamente, a partir do século XIX.
O 4 de maio de 1919, reação dos estudantes de Pequim à outorga de territórios ao Japão na partilha do espólio da Primeira Guerra Mundial referendada pelo Tratado de Versalhes , inaugura a formação de correntes políticas e literárias radicais.Do lado que se opõe à tradição estão os romances inspirados no modelo europeu, com as perspectivas de individualismo, introspecção, competitividade, liberdade, democracia, e reivindicação de uma nova moral pública. Diferente do que poderia parecer uma capitulação, a captura do Ocidente tem por objetivo romper com a moral tradicional confucionista e quebrar o modo de estar chinês que Barthes chamou de paisible em seu relato após o retorno da China, e os promotores do 4 de maio responsabilizavam como a causa da humilhação a que o país foi sucessivamente submetido pelo estrangeiro. Com a finalidade de formar um novo homem, o movimento de 1919 tinha entre suas propostas literárias o abandono da língua clássica. Os romances passariam a ser escritos de modo simples e direto conforme a língua falada.
Lu Xun, pseudônimo de Zhou Shuren, foi o líder do movimento cultural de 1919 que lutou pelo uso e o reconhecimento do bai hua , que na tradução literal quer dizer língua branca mas significa língua falada, desafiando a wen yan , a língua clássica utilizada nos textos antigos, principalmente os confucionistas, defendidos pelos senhores feudais.
Quando o império Manchu caiu, em 1911, a jovem república de viu diante de muitos problemas, dentre eles o que dizia respeito a que língua ensinar nas escolas. Em meio ao debate entre pedagogos e intelectuais, a revista Xin Qingnian , A Juventude, uma das publicações mais inovadoras e lidas da época, lança no ano de 1917 um texto decisivo em favor da língua falada , detratando as principais características da língua escrita . Hu Shi (1891-1962), o autor, era professor da Universidade de Pequim com formação acadêmica nos Estados Unidos. O manifesto, intitulado Modestas proposições com vista a melhorar a literatura , constava dos oito pontos seguintes na respectiva ordem: falar somente quando a algo a dizer; não imitar os mais velhos; cuidar da construção gramatical; não fingir sentimentos que não foram experimentados; renunciar às frases feitas; não recorrer às alusões clássicas; não buscar paralelismos; não descartar palavras e expressões populares.
Em seguida, a mesma revista publicou artigo ainda mais radical que convocava para a revolução literária, assinado por Chen Duxiu (1881-1942). Para esse futuro líder do movimento comunista, que passou temporadas no Japão e em Paris, a luta deveria estar focada em três pontos, a saber: acabar com a literatura estilosa e obsequiosa da elite, dar fim à literatura clássica e rejeitar a literatura hermética. Os objetivos a serem alcançados com o cumprimento dessas metas eram constituir uma literatura na qual o povo pudesse simplesmente exprimir seus sentimentos, estabelecer uma literatura realista, cheia de frescor e de sinceridade, e criar, no seio da sociedade, uma literatura clara e acessível a todos.
A nova visão de mundo dos partidários da revolução literária implicava colocar em xeque a forma e o formalismo herdados da tradição confucionista que eles consideravam responsável pelo atraso do país.
Dois anos depois, o movimento do 4 de Maio de 1919 consagra essa idéia. A juventude, numa tremenda reação patriótica, condena a humilhação que o Tratado de Versalhes impõe à China concedendo aos japoneses as antigas possessões alemãs e denuncia a “indústria de Confúcio” que, desde séculos, reinava sobre os sentimentos, as famílias e o conjunto da sociedade chinesa. Em 1920, eles conseguem uma vitória significativa com a publicação do decreto ministerial que determina que a língua nacional falada será a ensinada em todas as escolas do país.
Para a literatura moderna essa decisão teve importância considerável. A partir de então, a maioria dos autores passou a usar a língua falada e seus textos receberam pontuação, à semelhança das obras ocidentais, o que facilitou o entendimento para o leitor, ao contrário do que não acontecia antes nos livros escritos em chinês clássico que não utilizavam esse recurso gramatical.
Cresce a variedade de temas abordados, aumenta a difusão de livros estrangeiros traduzidos e a influência estrangeira se faz sentir mais largamente. Multiplicam-se as revistas que se tornam espaço de debate de idéias e lugar onde a criação literária toma forma. Além disso, o livro passa por importante mudança no modo de ser apresentado ao leitor. Em lugar de receber uma capa sem identificação e ser empilhado na prateleira, como acontecia com as obras dispostas nas bibliotecas chinesas tradicionais, o volume moderno era agora colocado na posição vertical, bem à mão do leitor que podia identificar autor e título inscritos na lombada dos livros. Essa transformação de ordem material deu um enorme impulso na leitura e na produção literária.Uma vez reconhecidos, os escritores começaram a se interessar em fazer carreira como literatos.
Lu Xun é um exemplo do renascimento literário da China. Nascido em uma família do mandarinato, de onde por séculos saíram altos funcionários para servir a administração imperial, esse escritor reconhecido por sua veia crítica e satírica viu sua vida mudar depois que seu avô foi condenado à prisão perpétua por envolvimento em escândalo relativo a exames provinciais. Três anos depois, em 1897, seu pai morre vítima de uma doença agravada pela farmacopéia da medicina chinesa. Lu Xun muda de sua cidade, Shaoxing, para Nanquim onde vai estudar engenharia. Para não arruinar a tradição familiar, passa com sucesso nas provas, recebe o título de bacharel, mas decide continuar seus estudos no Japão, para onde vai em 1902. Nesse país, resolve resgatar as circunstancias que envolveram a morte do pai e vai estudar medicina moderna na Universidade de Sendai. Entretanto, sua vocação para a medicina durou somente até o momento em que assistiuà projeção de um filme em que uma das cenas mostra um chinês sendo assassinado por japoneses diante do comportamento alheio de seus compatriotas. Consta que Lu Xun teria diagnosticado que o mal da China não era físico, mas cultural. Decidiu, então, pela literatura com o objetivo de revirar a terra com a sua pena e, além de escrever, se dedicou a traduzir obras européias e russas para que os estudantes chineses se atualizassem nas discussões que corriam o mundo na época.
Com a idéia de ‘mudar os espíritos' e sob a influência de Zhang Taiyan ( 1869-1936), literato que lutou pela queda da dinastia Manchu, Lu Xun escre seus primeiros ensaios em língua clássica nos quais manifesta sua admiração por Pouchkine, Mickiewicz e Petöfi, escritores que souberam escutar a voz do povo. Em 1909, ele volta para a China como professor e, em 1911, assiste à passagem das tropas revolucionárias por Shaoxing. Escreve, então, seu primeiro romance Huai jiu , Lembranças do passado, em estilo clássico e com o tom sarcástico que vai marcar sua obra. Cai Yuanpei ( 1868-1940), ministro da Instrução Pública da administração republicana, o convoca como conselheiro a Pequim, onde Lu Xun aproveita o tempo livre para pesquisar e aprofundar o conhecimento sobre literatura chinesa antiga. Em 1918, a revista A Juventude publica seu curto romance escrito em língua falada Kuangren riji , Diário de um louco, título tomado emprestado de Gogol, violento manifesto contra uma sociedade na qual os homens só sonham em se devorar entre si. A propósito desse texto, deu-se o seguinte diálogo entre o redator da revista e Lu Xun
Lu Xun : Imagine uma casa de ferro, sem janelas, totalmente indestrutível, cheia de gente adormecida que não tardará a morrer de asfixia.Como vão morrer dormindo, não sentirão nenhum dos horrores da morte.. Você acredita que poderá prestar um serviço se começar a gritar bem forte e conseguir acordar os que têm sono mais leve que, então, sofrerão a agonia de uma morte inelutável?
Redator : Mas se alguns forem acordados, como você pode afirmar que não terão esperança de destruir da casa de ferro?
Lu Xun : É provável que ainda haja crianças que não comeram o Homem? Salvemos as crianças!.
Diário de um louco foi reunido junto com outros escritos, em 1923, em um livro que recebeu como título Nahan , Grito de combate. Na maior parte deles, Lu Xun procura exorcizar seu próprio passado e quebrar a solidão de seus contemporâneos. Assim, em Yao,O remédio, um pai acredita poder salvar seu filho fazendo-o engolir um pedaço de pão molhado no sangue de um jovem revolucionário que acaba de ser executado.No cemitério, as duas mães se encontram, unidas pela mesma aflição.
Em A Q zhengzhuan , A verdadeira história de A.Q, a narrativa rica em ironia fala de um camponês que vive só em um velho templo e é alvo de chacota de toda a região. Ele, pretende, entretanto, ser reconhecido como membro da família dos Zhao, um dos dois clãs de notáveis do local, mas cada vez que apanha de alguém ou sofre qualquer outro tipo de humilhação é incapaz de se defender transformando sua atitude em vitória moral. Sentindo-se cada vez mais frustrado, ele se vinga insultando uma religiosa e a audácia o enche de alegria e satisfação. Resolve, então, fazer amor com uma jovem viúve que trabalha como doméstica na casa dos Zhao. A imprudência lhe vale a perseguição do clã e de toda a cidadezinha. Ele foge e assim que reaparece depois de algum tempo a população do lugar pensa tratar-se agora de um homem rico. Na verdade, não passa de um ladrão vivendo da venda de produtos roubados. Com a proximidade da revolução A.Q. pensa ter chegado a hora da sua vingança. Mas ele fica decepcionado ao constatar que os ditos revolucionários não passam de engodo. Finalmente, ele é acusado do assalto ocorrido na casa dos Zhao. Incapaz de se defender, é condenado à morte. A opinião pública local considerava A.Q. um celerado e foi unânime a respeito da sua execução
Por meio do duro julgamento, Lu Xun denuncia o comportamento dos seus compatriotas, em particular o orgulho que os faz acreditar na superioridade espiritual da civilização chinesa. Além disso, A.Q. aparece como um excluído, rejeitado por todos. Sobre esse bode expiatório, o abandono atinge proporções inaceitáveis em decorrência vaidade dos notáveis e da estupidez cega da população. Em resumo, a sátira de Lu Xun não tem por objetivo condenar o indivíduo, mas colocar em discussão o conjunto de uma sociedade que uma pseudo-revolução tornou ainda mais odiosa.
Panghuang , Errâncias, a segunda compilação de histórias de Lu Xun publicadas em 1926, difere da anterior no sentido de que o tom o menos combativo e o escritor parece hesitar em relação à luta engajada. Em Guduzhe , O solitário, e Shangshi ,O lamento do passado, Lu Xun prioriza denunciar as fraquezas e as quimeras dos intelectuais que conhece, a começar por ele mesmo. É nessa mesma época que o escritor, reconhecido pela veia crítica e satírica, compõe uma série de poemas em prosa, Yecao , As ervas selvagens.
A revolução literária encabeçada por ele pretendia erradicar a superstição, disseminar a ciência, introduzir a literatura ocidental e reabilitar a literatura clássica chinesa em língua vernácula. Sua compreensão do papel da literatura no processo de transformação da sociedade foi declarada em seu ensaio Sobre a divulgação da literatura , de 1930, publicado na revista Literatura Popular:
“Não se supõe que a literatura seja apreciada somente por algumas pessoas de talento em detrimento dos que tenham nascido sem talento. Se a norma é: a maior qualidade, menos pessoas que apreciam as obras, então os escritos que ninguém entende deveriam qualificar-se como obras-primas”.
Pouco mais de 70 anos depois, essa razão de ser da literatura foi contestada por Gao Xingjian, o primeiro chinês a receber o prêmio Nobel de literatura, em 2000, pela originalidade de seu romance A montanha da alma e pelo conjunto de sua obra composta ainda de ensaios teóricos e peças teatrais.
O discurso de agradecimento de Gao Xingjian , pronunciado em Estocolmo, não recebeu por acaso o título A razão de ser da literatura . Nele, o autor que vive na França, afirma que o drama da literatura chinesa foi ter sido literalmente contaminada pela política no início do século XX. Observa que a literatura pode afrontar qualquer tipo de tema, o político inclusive, mas sem se sujeitar à política, e destaca que a partir do momento em que o escritor chinês pôde se libertar foi capaz de criar grandes obras.De acordo com Gao Xingjian a criação literária é um ato solitário que tem o indivíduo como ponto de partida e alimento fundamental
“O que quero dizer é que a literatura só pode ser a voz do indivíduo. Uma literatura concebida a ser o hino de uma nação, a bandeira de uma raça, o slogan de um partido político ou a voz de uma classe ou grupo, se torna um potente instrumento de propaganda e perde o que é inerente à literatura, cessa de ser literatura.(...) A fim de que a literatura possa salvaguardar a razão mesma da sua existência e não se transformar em um instrumento da política, deve voltar a ser a voz do indivíduo, porque a literatura deriva em primeiro lugar do sentimento do indivíduo”.
Entretanto, para os escritores revolucionários do 4 de maio, a literatura significava um importante meio de esclarecimento e propagação das mudanças que acreditavam ser preciso implementar para que a China nunca mais sofresse humilhação por parte do estrangeiro. Em 1912, ainda no início da república, o primeiro presidente Sun Yat Sen afirmava que a única causa da pobreza da China era a subserviência do governo e de seus funcionários
...É fora de dúvida que assim que estiver curada desse cancro, a China reencontrará seu lugar ao lado das Grandes Potências. Nos tempos antigos, nos dias de autocracia, o funcionário era só um amo, o cachorro do monarca, mas mesmo assim dominava o povo desarmado diante dos seus excessos e crimes.(...) Antes de tudo, o que importa para o povo é eliminar os elementos que prejudicam o Estado e impedem seu desenvolvimento.
Logo, a China será um Estado forte e rico.Não é ela uma das mais velhas nações do mundo? Sua civilização tem cinco mil anos. Antes de entrar em relação com os povos do Ocidente, ela ocupava o primeiro lugar no Oriente.(...) Insensivelmente, a China conheceu o orgulho, a satisfação de si e a arrogância. Fechou-se em si mesma, isolando-se. Nós nos fechamos sobre nós mesmos, trabalhamos sozinhos, desdenhamos a ajuda estrangeira. O náufrago, lançado sobre uma costa deserta, fabrica tudo o que necessita, esmagado pelo trabalho, ele cessa de pensar. Ele esquece, pouco a pouco, o sentido da cooperação social.(...) O fechamento da China sobre si mesma e seu espírito de auto –suficiência datam de longe.A maioria do povo chinês não compreende ainda as vantagens da cooperação internacional; ele não tolera nenhuma superioridade nem qualquer observação. Essa estreiteza de espírito retardou seus progressos.
Os escritores da revolução literária de 1919, que se inspiravam em Sun Yat Sen, fundador do partido comunista chinês, acreditavam que a voz do indivíduo seria o eco e a ressonância das lutas que poderiam conduzir a uma situação que promovesse o bem-estar coletivo.
No clássico e referencial trabalho Breve História do romance chinês , Lu Xun se preocupa em selecionar textos analíticos e críticos sobre a sociedade chinesa na perspectiva dos hsiao-shuo , relatos breves sobre fatos da vida cotidiana, extraídos da fala das ruas e que conformaram o romance na China. Os escritores de hsiao-shuo seriam os sucessores dos funcionários da dinastia Zhou ( 1121-256 a.C) que, em suas viagens de inspeção pelo país, tinham a tarefa de registrar a conversa trivial da gente comum e os costumes locais narrados nas canções populares. O objetivo do trabalho era ajudar os governadores a entender os costumes e a moral social do povo. Os modernistas , como passaram a ser identificados os autores do movimento de 1919, defendiam o abandono das raízes culturais e traduziam em seus textos a inadaptação ao processo político e cultural do qual eles próprios estavam sendo vítimas. Nesse sentido, os romances de Daí Sijie e Mian Mian se mostram um prolongamento das idéias nascidas no 4 de maio, mas ao mesmo tempo se diferenciam dessa matriz por estarem profundamente enraizados no universo chinês.
A partir do passado que é presente caminha esta aventura semiológica pela China do século XXI. Nessa investigação, as considerações finais se concentraram na dialética aberta verificada na escrita de Mian Mian e de Daí Sijie. Nos romances contemporâneos desses dois autores a política continua sendo o texto da China, que tece a nação apertando, afrouxando, fazendo ou desfazendo os nós das manifestações culturais dentre as quais a literatura tem um papel de extraordinária significação.
Cabe observar, ainda, que o trabalho foi todo o tempo um pedido de licença. Entrar na China e sair dela com o que lhe é próprio foi um exercício semiológico permanente de disponibilidade e fuga, estado duplo sobre o qual nos fala Roland Barthes. Abordagem que ganhou ainda mais sentido no encontrou com a perspectiva de Antônio Candido sobre a relação entre literatura e sociedade, na qual a criação literária deve ser levada em conta no seu contexto social sem o abandono da integridade do seu significado.