MORAL E DIALÉTICA N' O HOMEM DUPLICADO

Madalena Aparecida Machado (UNEMAT-FAPEMAT/UFRJ)

 

O estudo da representação do homem na literatura atual encaminha à leitura de Minima moralia (1993) de Theodor Adorno (1903-1969). Ao trabalharmos com o personagem protagonista de O homem duplicado (2002) de José Saramago encontramos a idéia da dialética de si que observamos em Sartre a nos conduzir à percepção do exacerbamento na consciência do indivíduo que, longe da moderação como virtude, está na atomização não só de suas relações pessoais, mas inclusive nele mesmo. A questão recebe um outro olhar com Adorno. Nesse livro, concebido com base nas experiências da segunda guerra mundial, os assuntos contidos trazem análises a respeito da alienação a que o homem se vê submetido num mundo recheado da indústria cultural e racionalidade tecnológica. As deformações de caráter social e cultural fazem eco da existência moderna denunciada por Adorno, cuja tarefa assumida é de desvendar as muitas máscaras da falsa consciência. A força libertadora que o autor vê no uso de aforismos como recurso para dar forma ao seu pensamento, traz junto de si um âmbito individual para o qual conclama as diferenças. Justamente o ir além das aparências é motivo condutor de quem se arrisca na avaliação do tempo presente. Embora o contexto do livro seja o da experiência da segunda guerra mundial e de ser publicado em 1951, o rigor das avaliações, o sentido crítico da concepção de Adorno nos auxiliará de maneira incondicional na interpretação do romance O homem duplicado.

Como podemos falar de consciência de si, de o sujeito se encontrar numa efervescência identificada pelo nome de dialética se ele é engolido por uma atmosfera que não o deixa pensar nele mesmo? Como garantir o mínimo de moralidade nas parcas reflexões que ele ainda é capaz de fazer se sua vida está danificada? Moralidade de quem, por quem, para quem atingir? Tais dúvidas que encaminhamos ao personagem principal do citado romance, dizem respeito à experiência individual do sujeito condenado pela história que ensina; no seu entender ele ainda está pleno desta condição, entretanto, em si já não apresenta significado. Do pensamento adorniano, retiramos a valorização deste algo desaparecido como principal porta de entrada para nossa interpretação. A anunciada decadência do indivíduo, enfraquecido e feito oco pela manipulação da sociedade se torna em Minima moralia o requisito para se falar da experiência ainda assim subjetiva proporcionalmente encontrada em O homem duplicado.

O sentimento de sufoco, de retraimento que apontamos no perfil do protagonista da narrativa em estudo indica a pressão da conformidade, além de ver baixar seu grau de exigência em relação a si próprio, de acordo com Adorno. Isto coloca o personagem em dialética de si paralelo à urgência da criação ou da vazão da consciência por se ver um ocupante do mundo. A perda da disciplina do ensino é inteiramente residual no arvorar daquilo que vê o ator representar nos filmes. Quando não há proteção, auxílio ou conselho a seguir, soçobra a manifestação da desesperada concorrência entre si muito maior que a universal. A lacuna no indivíduo se esgarça pelas equivalências sentidas, por exemplo, num comportamento negado em si, mas visível no outro seu igual. Ocorre seja na solicitação pelo diferente, seja na negação da igualdade abafada esta pela realidade contrastante. A progressão da desumanidade que gera o atrofiamento do sujeito como explana Adorno, é a medida da supressão do tato configurado como a convivência humana impossível dos tempos atuais.

Ao desconhecer o que se passa entre os próximos, as pessoas se movem pela idéia do lucro, da imediatidade das relações cada vez mais distantes marcadas às vezes com o peso da hostilidade. O fato é da mesma maneira provocador da anulação de si dentro de uma dominação dos sentimentos enquanto resultado da dominação maior de um homem por outro, de um ideal por algo desprovido disso. Privadas pela cultura organizada, as pessoas em última instância se vêem desprovidas inclusive de uma experiência de si mesmas. Na perspectiva de Adorno, o inverso é a principal razão de ser do homem, qual seja, o pensamento realmente independente que priorize o elemento crítico. O grande entrave que o texto aponta é a liberdade perdida da Filosofia para a ciência no que tange à especulação, à reflexão; quando isto acontece, a subjetividade vai pela mesma via de extinção que a Filosofia. A Literatura entra pela porta dianteira na discussão ao trabalhar com a imagem do mundo na intenção de acabar com a falsidade e a prevenção. Então, faz sentido que o espírito de dialética seja atribuído ao personagem o homem duplicado cujo contraste observado na sua pessoa é o da razão dominante, da retirada do entorpecimento que o consenso significa. Processo de busca e apreensão, a dissolução do concreto no interior do próprio indivíduo dá ocasião para pensarmos no quê a exclusividade perde campo quando falamos na substituição da experiência.

Por outro lado, o conjunto de experiências que o duplicado imaginava possuir se faz lacunas como aquelas observadas por Theodor Adorno com as quais podemos medir o distanciamento ou a continuidade do conhecido. Homem a meio do caminho com sua subjetividade, o duplicado não obstante, opta pelo encurtamento sem explicitar o continuísmo que nega mesmo sem alarde. A vida consciente do sujeito do conhecimento ocorre em meio à insuficiência e, só ela produz a existência não regulamentada a propósito do pensamento passível de ser despertado pela crítica, juízos revisitados, enfim, pela dialética para que assim seja identificado e mesmo se transforme em ensinamento; não sem razão o protagonista do romance é um professor.

A imagem do espelho, o reflexo de modos de ser em O homem duplicado mostra uma insistência com aquilo que Adorno chama de dialética por esta se mover pelos extremos com o propósito de levar à inversão. Neste ponto acreditamos que Saramago diverge do pensador na medida em que os personagens não querem ser o outro, apesar da indignação da imagem roubada, o que é salientado o tempo todo é a vontade deles no direito à particularidade e, por extensão, o dilema de não poder escolher. Apesar disso, se funde nos dois textos a denúncia da desumanização, do outro ser notado apenas enquanto objeto, refletido, subsumido para deleite de uma das partes na contenda de viver. Talhado para não servir de exemplo, o duplicado dentro de uma sociedade repressiva como nos ensina Adorno, se nivela ao conceito de homem embora isto não passe de uma paródia da imagem e semelhança. Tanto isto é cabível que os adjetivos original e cópia são usados indiscriminadamente ao longo do romance na nossa interpretação com a finalidade de desmascarar a idéia de quem se parece com quem e mesmo para confundir a semelhança. Chegamos a tal constatação ao observarmos o comportamento arredio do personagem protagonista; ele parece estar fugindo o tempo todo, se esquivando de ser objeto de contemplação, enfim, de fugir dos olhares alheios quando na verdade é o seu olhar que mais o preocupa. O inominável de dentro dele o acusando de ser ninguém, colocando-o o tempo todo em discussão com a imagem descoberta.

A experiência da duplicação vivida por seus protagonistas Tertuliano e António, mostra uma humanidade prostrada ante a impotência de assimilar à experiência aquilo que escarnece da totalidade. Sem conclamar o impasse, tentam embora na maioria das vezes em pensamento, deglutir o que lhes acontece; cada um a seu modo vive em função de não se entrelaçarem. É bom frisarmos que nisto eles respondem positivamente ao que Adorno propõe como o homem representante de um mínimo de moral para consigo: o requisitar do diferente; o discernimento necessário a se fazer entre os outros e em si. As emoções que sobrepujam no fato da duplicação existir contrastam com a objetividade que os personagens tratam a situação aos olhos do mundo. O não se adaptar, o impasse, resolução questionável ao invés de exemplificar o mau uso da objetividade, mostra por sua vez o sujeito na iminência de ser abolido de sua condição. Ainda prepondera a vida do pensamento no romance já que não houve a adoção de nenhuma medida exemplar, nenhuma conduta em destaque e, principalmente não houve decisão sobre qual vida erigir.

A vida do pensamento começa para os personagens à medida que se distanciam da vida prática, algo que se encontra desenvolvido na filosofia de Adorno. Minima moralia exercita a noção de subjetividade na era da sua liquidação; ao negar a idéia do absoluto para tratar com o elemento humano também há condenação quanto à relatividade. O cuidado deve ser com o não apagar os vestígios humanos na transformação observada; por outro tanto, lançar mão da possibilidade de ir além de si mesmo por meio do questionamento, da oposição fecunda bem como da assimilação compreensiva daquilo que nos contradiz, ensina Adorno.

O horror que somos capazes de demonstrar tendo em vista o processo de absorção, passa a ser a medida a se determinar o quanto ainda podemos falar da instância do Eu. O que é auto-renúncia e o que é pura alienação são perguntas cuja resposta busca eco no discernimento do indivíduo em meio à quantidade misturado na multidão. A compreensibilidade tão cara ao espírito do livro empenhado por uma moralidade satisfatória, envereda pela distinção entre a intenção e a cópia. A Literatura lhe serve de parâmetro porque a ambigüidade notada em seus textos designa o ponto de indiferença entre a razão objetiva e a comunicação, fator este de primordial importância para se distinguir os significados incrustados. Neste aspecto, O homem duplicado identifica a inexatidão do trato da vida com a objetividade da imagem nada intencional feito cópia de dramas não vividos. O ator, o original perseguido pela cópia que de si tem muito pouco, exercita sua arte sem destaque nem reconhecimento. Podemos traçar um paralelo fazendo dele a problemática da subjetividade enquanto incorre no conformismo a erradicar. O que fazer? Como fazer? Não encontramos em Minima moralia. Encontramos isto sim, que está no pensamento dialético a fonte da tentativa em quebrar os elos da corrente cujo nome é o caráter coercitivo da lógica, usando para isso as próprias armas dela. Por isso faz sentido vermos no homem duplicado a face espelhada em humanidade solícita por se expressar.

A estranha sensação de não poder se destacar entre os muitos, de ainda ser capaz de esboçar reação com uma pergunta, dá sentido à epígrafe que Adorno vai buscar em Baudelaire para a terceira parte de Minima moralia: “Avalanche, queres me levar em tua queda?” Se ainda resta indignação ainda há esperança para o ser humano, assim pensamos por causa da experiência resguardada, das lembranças individuais que o sujeito confisca como propriedade. Daí termos a convicção de que o homem duplicado age de maneira idêntica ao pronunciar a pergunta crucial de sua vida: Quem sou eu? Embora ele não tenha a resposta, o fato de se indignar na pesquisa dela já demonstra a afinidade que buscamos. Em termos filosóficos isto não funciona como um envoltório sem a aura de sentimentalidade que poderia transmitir, só faz sentido invocá-lo quando o presente pode e deve ser mudado com a experiência que o passado formou. Já no romance, os personagens desprovidos de um passado e sem futuro à vista; o presente disjunto, o desconhecido é o que eles vêem como necessário ser mudado; principalmente para o professor de História ancorado nela toda vez que o presente lhe deixa na prevenção.

Na expectativa de se pensar o Eu como o faz Adorno, o sentimento é visto como algo a resgatar ao mesmo tempo em que pode ser visto com garbo e sofrimento, ainda é a via de configuração da alma humana, daquele que traz na expressão dos olhos o desejo desesperado de se salvar por meio da autodeterminação do Eu. Mais uma razão para interpretarmos em O homem duplicado a mesma vontade de resgate da emoção, de encontrar sabedoria nela conforme avalia o narrador do livro.

A consciência que de espontânea passa a reduzida se o objeto da experiência for tão grande que diminua o indivíduo, é responsável por um domínio da moral, algo também de certa forma incomensurável. Entendemos com isso que qualquer ação praticada pelo sujeito não pode ser julgada conforme expectativas criadas e sim como algo resultante de um conceito destituído de mensuração. Ora, não é outra a sensação que invade o homem duplicado. Não poder se medir nem intervir porque a duplicação não foi catalogada nos compêndios da compreensão judiciosa da sociedade, faz dele um pária cuja moral é mais que discutível. É a experiência que conta e se ela sobrepuja o sujeito em suas vontades este se torna vítima tanto quanto não pode fazer diferente ao que foi levado a praticar. Nessa roda de objetividade crescente concomitante ao apagamento da subjetividade, encontramos no pensamento de Adorno a inervação moral no âmbito da consciência de mesmo porte para fazer pensar na assimilação redundante, na revolta plantada de acordo com a maturidade do leitor. Somente ao aprender conviver com a moralidade sem falsos moralismos é que o sujeito pode resgatar o Eu perdido para noções pouco cristalizadas, por isso mais condizentes com a humanidade a ser resgatada.

Nem vítima nem adepto, o que o filósofo deixa bastante especificado é que a consciência moral não é um jogo em que se ganha hoje e perde amanhã; a indiferença do que ele chama de culpa moral aponta para a impotência em tomar decisões próprias crescente com a dimensão do objeto. Disto extraímos a intolerância do seu texto com a visualização do homem por outro como algo a ser desbaratado e não compreendido na dimensão humana que lhe é peculiar. Bem ao contrário, não é a suposta facilidade das relações que deve ser vista ou resolvida de maneira paradigmática. É por outro lado, observar pelas reações do ser humano o quanto há ali de conformidade com a realidade social que diretamente o atinge na vida privada. Reagir de forma inesperada, brutal quando escapa à supervisão do mundo é sentir-se ameaçado na esfera que foi ampliada de seu próprio Eu. Exteriormente é o mesmo sujeito gentil, atencioso, mas, na intimidade a hostilidade se faz sentir na medida em que submete aquela à exigência crítica porque é ela afinal que investe o outro da condição de sujeito. Negada esta, não deixa de fazer o mesmo consigo ao acolher na consciência a estranheza que se vê amenizada. Acontece o contrário com Tertuliano Máximo Afonso que acolhe em sua consciência a estranheza nem um pouco amenizada, enquanto a conformidade externa depõe contra todos os sentimentos nobres fazendo-o demonstrar uma moralidade sofrível.

Pela atenção à vida composta de sentimentos tais como o amor, o homem pode ser coerente com os paradoxos que observa no mundo trazendo-os para dentro de si. Com isso não se confirma a fraqueza, todavia, é em mostrar-se fraco que ele pode sair do círculo vicioso da integração sem emoção, da adaptação voluntária. Negando este estado de coisas, a desqualificação que poderia desmerecê-lo, ao contrário, o impede de ser visto pela imagem da igualdade. Não poderíamos deixar de observar o mesmo com relação ao protagonista cujo designativo não se reduz ao nome com sobrenome ou a profissão. Chamado de o homem duplicado, internalizando o que seria uma desqualificação ele tem a oportunidade de tentar ser diferente, de ser afinal humano como ainda não o foi.

O Eu que move o homem o coloca como um todo, como um aparelho a seu serviço. Desta forma quanto mais anulado, integrado ou reticente o Eu se mostrar mais o homem reflete autonomia. A visão dialética dos modos de ser e viver compõe o desenvolvimento para que o sujeito se abandone, por exemplo, a um perigo desconhecido, experimente por isso mesmo um lugar vazio na consciência. Por isso temos no personagem professor Tertuliano Máximo Afonso, a consciência aberta para as implicações da duplicação. A emancipação histórica do ser em si se assegura e se compromete com a ambigüidade que a vida humana oferece, daí fazermos a observação de que o sujeito está numa dialética de si. Porque não identificarmos nele o homem duplicado? O perigo ocorre onde a dialética é vista como um recurso e não como uma entrega despudorada a ser feita. O conhecimento e não poderia ficar de fora o maior deles – o conhecimento de si – não só deve ser extraído do que existe, mas se faz indispensável ver nele a deformação e por esta mesma desgenerescência a que pretende negar. Minima moralia trabalha com aquela fagulha a que o pensamento se vê contrafeito, qual seja, o reconhecimento de que ele transita na sua própria impossibilidade. Receptivo a isto o homem compreende-se pela extensão e profundidade com que pode pensar-se entregue ao mundo feito de condicionamentos, embora se querendo incondicionado, a consciência deste limite – a dialética de si – é o que vai definir pelo exacerbamento.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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