O OLHO DO DESCONHECIDO: O QUEM E A LÍNGUA NA POESIA DE RIMBAUD

 

Luiz Guilherme Ribeiro Barbosa
Graduando em Letras-Literaturas

 

1 . o quem

 

No percurso de dizer o indizível, que é o percurso de uma obra, de uma vida, há um aprendizado, como uma higiene de linguagem , necessária para aprender a dizer. Nas duas cartas escritas em maio de 1871, conhecidas como as cartas do vidente, o poeta pensa “o futuro da poesia”, para “varrer tantos cadáveres que há tanto tempo acumularam os produtos da inteligência” . Rimbaud lê a tradição flagrando nela o que há de linguagem morta, pesada e cadavérica, como se, em meio a escombros, ruínas do pensamento e da arte, procurasse algo que, vivo, escapasse a qualquer linguagem.

E constrói seu pensamento, com muitas faíscas: “ Eu é um outro”, “É errado dizer: Eu penso: deveríamos dizer pensam-me”. Ao criar uma disjunção sintática, o caminho do pensamento já se mostra pensando além das palavras da língua; pensando através, não das palavras, mas da sintaxe. Se pensarmos que a morfossintaxe de uma língua é uma espécie de semântica congelada, diremos que o percurso do pensamento rimbaudiano movimenta um sentido acomodado demais, há muito tempo, que é relativo à diferença entre sujeito e objeto, sujeito e predicado.

Rimbaud escreve contra o que chama de “uma explicação falsa” do eu . O que está em jogo é a relação entre a identidade e o pensamento. Pois dizer eu é uma palavra, antes de ser aquilo que a palavra quer dizer. A identidade é, então, uma imagem do pensamento, que, por sua vez, não se origina do eu : pensando assim, o cordão umbilical metafórico que tende a ligar-nos à língua é cortado. Ou seja: a língua não exprime, nunca, nada – só sabe inventar.

Se não sou eu que penso, quem pensa? Pode-se responder: quem pensa, ponto. Como se a origem do pensamento fosse uma interrogação, um vazio.

Como animal racional , a humanidade do homem não estaria justamente na consciência de si? Estranhando eu e pensamento, o pensamento torna-se estranho a mim mesmo, pois, embora esteja em mim, sua origem (uma interrogação) não é o eu .

Não se trata de um “eu é um outro eu”, como em Fernando Pessoa que, com seus heterônimos, cria outros eus , numa alteridade que se configura como fragmentação da unidade, criando novas unidades, ainda que fragmentárias. Mas sem escapar sempre de uma consciência da unidade, de uma consciência de si, ainda que este si seja um de muitos. Em Rimbaud, não há espelho possível que fixe esta consciência de si. A identidade nem é desfeita nem é multiplicada, mas acelerada. Assim como a escrita.

2 . a língua

 

Em O que é a filosofia? , Deleuze e Guattari apresentam uma definição de caos não como um contrário de ordem, nem como diluição de ordem – casos em que haveria uma oposição entre os termos, mas como a “velocidade infinita com a qual se dissipa toda forma que nele se esboça”.

O desafio do poeta, “criar uma língua”, é o de inventar um texto, traçar um campo de palavras no qual a leitura só possa ocorrer em alta velocidade. Sem escolha. O sentido das palavras se traça, na medida do possível, no momento mesmo em que a leitura do poema é feita. Por isso, para Rimbaud, “é preciso ser acadêmico – mais morto que um fóssil – para fazer um dicionário em qualquer língua” . O sentido de uma palavra surge no momento em que a zona tensiva de palavras – que é um poema – se configura. O sentido é, ao mínimo, da ordem da representação, da metáfora, da língua em sua função referencial, e, ao máximo, da ordem da metonímia, da ligação das palavras em relação a elas mesmas, dos choques elétricos que estas ligações suscitam. Movimentando sentidos – desdicionarizando –, o poema potencializa-os, como se contivesse virtualmente o máximo possível de sentidos. Vendo desta maneira, a poesia de Rimbaud, em vez de ser obscura ou cifrada, é extremamente clara, clara demais (pode até cegar). Como afirma Maurice Blanchot, Rimbaud tem “a necessidade de dizer tudo em tempo relâmpago, estranha à faculdade de dizer, que, esta sim, precisa de duração”. Esta extrema clareza não respeita a duração .

 

3 . na poesia: As pontes, Iluminuras

As pontes

 

Céus de cristal gris. Bizarro desenho de pontes, estas retas, aquelas em arco, outras descendo em ângulos oblíquos sobre as primeiras, e essas figuras se renovando nos outros circuitos iluminados do canal, mas todas tão longas e leves que as margens, cheias de cúpulas, afundam e encolhem. Algumas dessas pontes ainda estão cheias de barracas. Outras sustentam mastros, sinais, frágeis parapeitos. Acordes menores se cruzam, e somem, as cordas escalam os barrancos. Distingue-se uma roupa vermelha, talvez outros trajes e instrumentos musicais. São árias populares, trechos de concertos senhoriais, restos de hinos públicos? A água é gris e azul, larga como um braço de mar. – E um raio branco, desabando do alto do céu, aniquila esta comédia.

 

O que se descreve, neste texto, não estabelece identificação alguma com as experiências de paisagem vividas por quem lê, no sentido de que estas imagens não nos enviam à experiência cotidiana. A paisagem não existe fora do texto. Se é assim, o texto não funciona como um duplo de suporte e sentido, já que seu próprio suporte se configura como a paisagem mesma que se vê ao ler o texto. Trata-se de uma paisagem de palavras . O sentido não está através, mas sobre o texto.

Podemos flagrar instantes de velocidade. Por exemplo, em meio a uma paisagem incessantemente visual, atravessa o espaço do poema a imagem: “Acordes menores se cruzam, e somem, as cordas escalam os barrancos”. Contaminada pela visualidade de todo o poema, o espaço no qual se inserem estes complexos sonoros, que são os acordes menores, é o espaço visual recortado pelo céu e pela rede de pontes. Os acordes “se cruzam”, assim como as pontes. O som, então, é a um só tempo visto e ouvido. Além de estabelecer uma relação equívoca com as próprias pontes, que, por associação, podem confundir-se aos acordes menores. E, tudo isto, escrito, no poema, em meio à visualidade afetiva que podemos imprimir ao som das letras, como nos sugere Rimbaud em “Vogais”.

Na mesma frase, sem o corte de um ponto final que delimitaria o surgimento de uma outra imagem, como o ritmo do poema, ainda que irregular neste sentido, nos sugere, “as cordas escalam os barrancos”. As cordas de algum instrumento musical? Logo abaixo surgem “instrumentos musicais”, que nos fazem, de imediato, reler o poema de trás pra frente e associar tais cordas a eles. Mas as cordas escalam , elas que são o instrumento de uma escalada. Assim como o texto, em sua materialidade de letras e mancha tipográfica, tomado tradicionalmente como instrumento do sentido, funciona ele mesmo como sentido, e o próprio sentido como materialidade textual em movimento. As diferenças são sempre reversíveis.

O que é indeterminável , nestes textos das Iluminuras , é aquilo que se refere à própria composição, à sintaxe das imagens. Mais do que imagens desarticuladas, trata-se de imagens inarticuláveis: não há como reordená-las numa totalidade de sentido a fim de torná-las referenciáveis. Mais do que escrever sobre algo indeterminável, a própria escrita é indeterminável. Em vez de, com o leitor, olhar o desconhecido, através da representação, esta escrita cria na língua um objeto indeterminável, ativando o desconhecido , que, mais do que objeto visível, é um texto que se projeta diante do leitor, que olha o leitor.

4.

O poeta, enquanto um motor de poetização , é o ladrão do fogo do pensamento, tomando para si aquilo que é alheio a si mesmo. Dando ao homem aquilo que, não humano, atravessa o homem. Por isso, “responsável pelos animais”, porque toma para si a responsabilidade da vida , humana ou não. O poeta “chega ao desconhecido” e inaugura um espaço textual a um só tempo incognoscível e habitável, fazendo da escrita uma dimensão do mundo.

A poesia como arquitetura da vida, a vida como o espaço – intervalo, lugar, ar, palavra – desta arquitetura, desta invenção de novos espaços, porque a arquitetura deve ser minimamente habitável, como a poesia, minimamente habitável, legível, como a vida, minimamente suportável, minimamente vivível, como a música, minimamente audível, como a poesia, minimamente audível, como a pintura minimamente habitável, como a filosofia, minimamente legível, habitável, audível, visível, pensável. O poeta “deverá fazer sentir, apalpar, escutar suas invenções”: as fronteiras vão se desfazendo, vão se refazendo, e a poesia dá a ver ao homem a estranha imagem da vida que, sem origem, existe.

 

BIBLIOGRAFIA:

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_________________. Uma temporada no inferno & Iluminações . Trad. Ledo Ivo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.

 

Deleuze e Guattari (1997), p 153.

Rimbaud (1991), p. 16.

Blanchot (1997), p. 158.

Rimbaud (2002), p. 43.

 

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