TEMPO E CONTRATEMPOS EM CEM ANOS DE SOLIDÃO

(Lívia Aparecida de Almeida e Sousa – Mestranda em Teoria Literária/ UFRJ)

 

La poesia, en fin, esa energia de la vida cotidiana y contagia el amor y repite las imágenes en los espejos .

Gabriel García Márquez

 

Na modernidade reflexiva, a crise sobre quem somos se revela por meio de vários canais midiáticos. Contudo, é na literatura que ela se intensifica, já que ela dialoga com o leitor fazendo com que esse reflita sobre quem é, por meio de várias histórias contadas.

Pretende-se, nessa conversa, verificar como a crise da condição humana é apontada no romance de Garcia Marquez, Cem Anos de Solidão – metáfora da civilização (Calasans, 1982) na modernidade reflexiva. Focaliza-se a concepção do tempo, não como um fenômeno estável que pode ser medido ou cronometrado. Vislumbra-se, assim, o tempo da solidão ou a solidão do tempo, que faz do passado e do futuro construções imagéticas por meio da linguagem verbal e não-verbal, em que se inclui o silêncio.

Entende-se aqui solidão no sentido mais antigo do termo, ou seja, all one – o estar inteiramente em si, quer essencial quer transitório. É nessa direção que o romance é lido e interpretado, isto é, o tempo como elemento (re-) construtor do indivíduo.

Percebe-se, no romance de Gabriel García Márquez, que a narrativa não se preocupa com o tempo das ações das personagens e sim focaliza, ora aproximando a lente ora se distanciando, o drama psicossocial – tempo interior. Essa imagem é ilustrada na saga da família Buendía e da construção de Macondo.

Barthes (1975) dizia que toda escritura é autobiográfica. Mas a qual biografia Barthes se refere? A do autor? A do leitor? A das personagens? O texto [1] é o redobramento da vida do indivíduo e do grupo social. A palavra, escrita ou lida, expressa uma atitude solitária, da intimidade, que em contraposição se torna pública e reconhecível em dramas seculares. A escritura do sábio Melquíades representa os dramas dos Buendías que são identificados tanto pelo o autor do romance, pelos leitores, pelos críticos e pelos amantes de literatura, pois conta o descobrimento da intimidade, a voz interior como espaço de discernimento e auto-afirmação. Desse modo, esse espaço se encontra propício para cobiçar a inquietude da temporalidade, a angústia da solidão e a imortalidade.

Em CAS, as personagens se representam como indivíduos, em que o corpo aparece de modo materializado em perspectiva microcósmica, ou seja, as múltiplas subjetividades estão em constante negociação com outros indivíduos. Esse fenômeno faz emergir a imagem do homem carnal, onde se percebe a interseção dos objetos e dos fenômenos por meio da contigüidade verbal, da associação verbal num contexto, numa frase, num único conjunto de palavras, como afirma Bakthin (1998).

Por outro lado, as personagens são representadas em nível macrossocial, visto que as elas não são um corpo individual numa série individual e irrelevante da vida, mas um corpo impessoal, um corpo do gênero humano, que nasce, que vive, que morre várias mortes, que renasce e que é mostrado em sua estrutura e em todos os processos de sua existência. (Bakthin, p. 287) .

Percebem-se personagens, como o fundador de Macondo José Arcádio Buendía, a matriarca Úrsula, o Cel. Aureliano, o operário Arcádio e tantos outros que povoam o romance de García Márquez, que identificam o caráter humano. Vale ressaltar que não há uma característica definida e fixa em cada personagem que pode ser determinada a fim de adequá-las em categorias sociais. Os personagens/indivíduos desse romance ecoam as mazelas, vicissitudes, alegrias, frustrações, vitórias e derrotas de uma coletividade culturalmente constituída e representada.

O narrador não manipula, ele faz ouvir as vozes conscientes e inconscientes da nossa história/ memória. Ele faz sentir a violência oculta e expressa nos dramas dos personagens. Ele faz perceber a convivência do arcaico e do moderno nas práticas sociais. Logo, o que entra na arena da discussão é como o tempo e o espaço do romance engloba tais questões das experiências e vivências dos indivíduos por meio dos posicionamentos imagéticos das personagens.

Observam-se imagens das personagens propositalmente opostas à expressão espaço-temporal do ideário burguês, visto que o indivíduo ávido de fixidez por valores morais é constantemente desestabilizado diante das adversidades da vida, o que o torna um ser fragmentado, contraditório e fluido (Hall, 2003).

Como exemplo de identidades múltiplas, vê-se o caso da personagem Fernanda que diante da sociedade e da instituição família se mostrava incorruptível e politicamente correta e rigorosa com os valores morais e religiosos, porém escondia uma pulsão doentia que expunha seus desejos mais sórdidos. O romance, dessa forma, permite o contato vivo e carnal das coisas, com suas qualidades multiformes, já que as coisas e as idéias estão unidas por meio de relações hierárquicas falsas, hostis à natureza delas, estão separadas e distantes uma das outras por diversas camadas intermediárias de um ideal de outro mundo, que não as deixam entrar em contato vivo e carnal . (Bakthin, p. 285)

A busca incessante de acúmulo e perda de riqueza aponta, também, para a oposição das imagens dos valores burgueses. Percebe-se, assim, que desde a fundação de Macondo o sonho ufanista de se construir uma grande civilização em um lugar que manava leite e mel foi com o tempo sendo desconstruído visto que já estava fadado ao fracasso.

Em princípio, os fundadores saíram de suas velhas terras, a fim de se livrarem do jugo de uma moral retrógrada baseada em mitos, como o do rabo de porco. Todavia, esse passado é o que os impulsionaram a buscar e a construir o futuro.

O caráter burguês, que consiste no domínio da terra pelo homem com o suor do próprio rosto, foi sendo desmistificado, já que o sonho da estabilidade financeira, emocional, criativa, política era com nuvens que ora estava lá e no mesmo instante desaparecia. Essa desestabilidade pode ser vista, por exemplo, nos inventos do patriarca juvenil José Arcádio Buendía, na sabedoria folclórica do cigano Melquíades, na preservação dos valores morais da matriarca Úrsula, nas lutas sem glória do Cel. Aureliano, na revolução do operário utópico Aureliano, nas empreitadas de Aureliano Segundo, na solidão voluntária de Amaranta, nas ilusões de Fernanda em constituir um lar exemplar, nas tentativas frustrantes de Amaranta Úrsula de reconstruir o lar, no conhecimento avassalador de Aureliano Babilônia entre outras personagens que por meio de sua visão multiperspectivada do mundo representava o tempo e os contratempos de sua época.

O tempo da memória do indivíduo e do grupo não se apresenta de modo linear, visto que um espaço ­– casa dos Buendías, Macondo, trem amarelo, laboratório de alquimia entre outros lugares – ou um objeto provoca um retorno ao passado não como ele foi de fato vivido, mas como ele está sendo representado, lembrado. O espaço também conduz para o futuro, onde o local se torna uma promessa de grandes realizações. Logo, o espaço – físico, geográfico – se transforma em espaço biográfico ( Arfuch, 2005).

Bergson (1999) explicita sobre a possibilidade do passado de uma pessoa se conservar na memória, influenciar o presente e criar possibilidades de futuro. Para ele tais dimensões temporais são fundamentais. Uma pessoa só se reconhece no mundo, se tiver uma experiência anterior. A imagem é vista sob a perspectiva do já vivido, da experiência. Desse modo, ela é cronotópica.

O sentimento do tempo expresso pelas personagens emana do espaço da vida aberta à multiplicidade, onde cada presente da atualidade – do relato – se debruça sobre as tradições narrativas e sobre a temporalidade da própria vida: deles e das nossas.

O tempo faz parte da vivência de todos os seres, porém a idéia que se tem sobre ele parece ser muito fluída. Esse romance toca e faz eclodir múltiplas sensações temporais. Nele, o leitor percorre por várias criações da concepção do tempo sem se prender nelas, já que cem anos podem durar um segundo e um segundo pode durar cem anos. Logo, seu discurso plurilingüístico (Bakhtin, 1998) recria o tempo histórico e o tempo da memória, em que as imagens (Bergson, 1999) constroem posicionamentos identitários, como será visto nos personagens da estirpe Buendía.

A intenção desse diálogo, então, é interpretar o romance Cem Anos de Solidão de Gabriel García Marquéz sob a perspectiva do microcosmo e do macrocosmo, ou seja, estudar o ser divido em múltiplos eus em nível sócio-cultural (macrocosmo) e individual (microcosmo), por meio das imagens da “experiência passada” (Bergson, 1999), conservada na memória do indivíduo cronotópico (Bakthin, 1998). Assim, busca-se perceber o sentimento do tempo pela mão dupla do indivíduo e da coletividade nessa novela latino-americana.

Alguns temas dialéticos, isto é, opostos e complementares são vislumbrados, como: cultura/natureza, paz/violência, memória/história, arcaico/moderno entre outros. Eles são sobrepostos em uma visão multiperspectivada do narrador. Essa visão intermediará os dois cosmos – individual e coletivo –, visto que o narrador dialoga e, muitas vezes, faz conflituar ideologias e posicionamentos identitários no discurso literário. Desse modo, a visão global e específica do narrador de CAS penetra todas as instâncias do enredo, seja na visão de cada personagem diante do fenômeno social, seja no próprio fenômeno em si, como uma lente fotográfica.

Lê-se o romance em perspectivas, ou seja, sob pontos de vistas a respeito de temas recorrentes, que Bakthin chama de séries [2]. O fio condutor da leitura se baseia na imagem cronotópica das personagens sob o aspecto da memória individual e coletiva , a fim que as idéias não prendam, mas que as imagens libertem os fantasmas de um povo condenado a cem anos de solidão.

Deve-se ressaltar que a representação do tempo, por meio dos personagens/indivíduos na novela colombiana Cem Anos de Solidão de Gabriel García Márquez, se manifesta não em idéias ou ideologias e sim em posicionamentos imagéticos. Desse modo, o tempo diluído revela-se nas vivências do indivíduo e do grupo, em que as questões sociais, políticas, religiosas, econômicas, emocionais se justapõem nos dramas das personagens. A literatura, como afirma Bakhtin (1998), reflete o tom de cada época. Nesse romance, em especial, o enredo espelha o tempo e o espaço da cultura latino-americana de modo não-cronológico, mas em perspectivas.

Uma das descontinuidades da modernidade, como aponta Giddens (1991), encontra-se na teoria do evolucionismo social em que a “história” pode ser contada em torno de um enredo que impõem uma imagem ordenada dos fatos sobre uma mistura desordenada de acontecimentos humanos Ianni (1995, p. 168), também, reflete sobre o caráter totalizador da história e como ele afeta os indivíduos; “A totalidade histórica e teórica incute em cada um e todos os seus componentes um pouco do seu modo de ser, possibilidade de agir, sentir, pensar e imaginar”.

O processo histórico se apresenta unitário apenas quando é narrado sob o ponto de vista dos vencedores. Nesse caso, ele é dotado de seqüência e racionalidade. Os vencidos, seguindo seu pensamento, não podem ver assim os fatos porque suas lutas são violentamente banidas da memória coletiva. A administração da história se realiza pelos vencedores, que perpetuam na memória os feitos que os favorecem e que legitimam seu poder.

De acordo com os estudos “modernos”, sabe-se que a história não possui a forma “totalizada” como as concepções evolucionárias apontam. A desconstrução do evolucionismo significa aceitar que a história não deve ser vista como uma unidade ou um reflexo de certos princípios unificadores de organização e transformação. Acaba-se com a crença metafísica da história unitária e portadora de uma reconstrução do passado, na consciência e no imaginário coletivo. Além disso, como aponta Bauman (1999:257): a ciência é apenas uma dentre muitas histórias, que evoca um pré-julgamento frágil dentre muitos .

Como Marx (Marx e Engels, 1973 apud Hall, 2003:14) disse sobre a modernidade, “tudo que é sólido se desmancha no ar”, já que nenhum conhecimento é concreto e unificado. A história ordenadora, digo construída na modernidade, vai se deteriorando na pós-modernidade. Assim, a História com ‘h' maiúsculo é destituída de teleologia e, conseqüentemente, nenhuma visão de “progresso” pode ser plausivelmente defendida.

Interpretar a construção e a descontrução da imagem cronotópica do romance em pauta parece relevante, já que permite o (re)conhecimento de nossas identidades culturais, visto que há a leitura poética liberta o ser do jugo ideológico. Essa leitura possibilita uma visão multiperspectivada da vida ao sair da racionalidade autoritária e permitir a eclosão de sentimentos que conduzem o indivíduo e o grupo social ao auto-conhecimento de quem são, de quem foram e de quem podem vir a ser.

Entender o tempo e os contratempos desse romance torna possível compreender o tom da vida tanto na superfície quanto na profundidade. Perceber as tramas invisíveis aos olhos, mas que são sentidas situa o homem carnal no contexto da geopolítica do caos na qual se vive. A leitura poética não engessa o pensamento, pois abre caminhos para possíveis soluções futuras.

 

BIBLIOGRAFIA

•  AGOSTINHO, Santo. Confissões . Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. Braga: Livraria Apostolado da Imprensa, 1990.

•  BAKHTIN, Mikhail.Questões de Literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo, Unesp, 1998.

•  Bauman , Zygmunt. Modernidade e ambivalência . Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.

•  BENJAMIM, Walter. “Sobre o conceito de história”. In: Magia e Técnica, arte e política. Editora brasiliense, 4ª ed., v.1, 1985

•  BERGSON, Henri (1859-1941). Matéria e Memória. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 291.

•  BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Trad.: Ana Maria L. Ioriatti, Carlos Felipe Moisés. São Paulo, Companhia das Letras, 1986.

•  EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-modernismo. Trad.: Elisabeth Barbosa. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998.

•  FOUCAULT, Mikael (2001). A ordem do discurso . Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio – 7ª edição – São Paulo: Edições Loyola.

•  HALL, Stuart . A identidade cultural na pós-modernidade . Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

•  HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX. Trad.: Marcos Santarrita. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.

•  LE GOFF, Jacques. “Antigo e Moderno”. In.: Memória e História . Tradução Bernardo Leitão [et al.]. – 5ª ed.– Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003.

•  MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. Cem Anos de Solidão . Trad. Eliana Zagury. – Rio de Janeiro: O Globo: São Paulo: Folha de São Paulo, 2003.

•  MONEGAL, Emir R. Borges: uma poética da leitura. Trad. Irlemar Chiampi. São Paulo: Perspectiva, 1980.

•  ROMANO, Ruggiero (dir.) "Memória e História". In: Enciclopédia Enaudi . Porto: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1984. v. 1

1. Entende-se texto aqui como a transmissão de mensagens em linguagens verbais ou não-verbais com intencionalidades (Koch, 2003).

2. As séries são identificadas por Bakthin (1998) como o método literário de Rabelais.

 

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