COMBATE: TRAGÉDIA: CAMINHO.
Diego de F. B. Pereira
Aristóteles elabora a lógica. Este modo de pensamento vem a constituir o fundamento das reflexões a serem realizadas pela sua filosofia. É através e em busca da lógica, por exemplo, que o estagirita chega à estrutura de concatenação das ações na tragédia grega em sua Arte Poética. A obra tomada como parâmetro para elaboração do modelo aristotélico é Édipo Tirano, de Sófocles. Ocorre que, ao lermos a primeira fala da peça, tudo já aconteceu: Édipo já dormiu com a mãe, já matou o pai, etc. Ora, se tudo já aconteceu, como pode a estrutura do drama ser baseada numa seqüência de atos? A tragédia de Sófocles se tece em torno, sim, das reflexões e sentimentos que envolvem a busca do saber. É um drama de paixões e interpretações, não de ações. Não consideramos ação aqui como o agir essencial, a poiésis, mas sim no sentido aristotélico mesmo, de realização de um feito com vistas à produção de um efeito. Um outro motivo reforça esta colocação: todo grego, do mais nobre ao mais simples, quando ia ao teatro assistir às encenações, já sabia de cor toda a seqüência de atos que caracterizavam o enredo do mito que era tema da peça em apresentação. Não iam ao teatro para ver ações, para esperar pelo final surpreendente, mas para refletirem e se emocionarem. Aristóteles também fornece uma chave para o caráter emocionante das tragédias: a hamartía – a personagem age visando a um objetivo, mas erra o alvo. Uma das mais importantes e belas tragédias gregas é Antígona, uma peça da autoria do mesmo criador de Édipo Tirano. Além disso, é uma espécie “seqüência” desta última . Aceitando em princípio a hipótese de haver hamartía em Édipo Tirano, não se pode dizer que haja hamartía em Antígona, apesar de toda ligação e semelhança entre as duas peças .
A personagem principal de Antígona é a heroína homônima, filha de Édipo. Como antecedentes temos uma disputa entre seus irmãos pelo trono de Tebas após o exílio do pai em que ambos morrem lutando. Creonte, cunhado de Édipo, assume o poder e determina que Entéocles, que defendera a cidade (de fato, negando-se a cumprir o acordo feito com seu irmão de alternarem-se na ocupação do trono), deveria ser enterrado de acordo com os ritos apropriados, enquanto seu irmão Polinices, que atacara a cidade, deveria ser deixado às aves. Não receber os devidos ritos fúnebres era a coisa mais temida por qualquer grego daquela época. A peça abre-se com a discussão de Antígona, comiserada pela sorte do irmão, e sua irmã Ismênia, em que vemos aquela afirmando sua vontade de enterrar Polinices custe o que custar. A heroína desafia não só a determinação de Creonte como também os deuses olímpicos, que estavam intimamente ligados à política (no sentido da estruturação e vida na pólis, a cidade grega). Ouvindo isso, sua irmã lembra-lhe de algo que certamente Antígona já sabia: que a realização de sua vontade resultaria em morte trágica. Antígona estava cansada de saber do resultado de suas ações. Dito isto, coloco: existe hamartía nesta peça? Claro que não! A personagem se perde numa ação consciente de seus resultados. Pode-se alegar ingenuamente que esta não é uma tragédia “perfeita” justamente por isso... mas apenas se tomarmos como parâmetro o conceito de perfeição estabelecido posteriormente por Aristóteles. Uma personagem é trágica não porque suas ações a levam a um destino divergente do seu objetivo, mas precisamente porque toma a decisão consciente de realizar sua vontade, mesmo que as configurações decorrentes conduzam-na à morte trágica.
Aquele que não comande sua própria vida jamais será um personagem trágico. O personagem trágico é a primeira consumação da liberdade, sobretudo de deliberar contra a própria vida e dar-se em sacrifício pela tentativa, vã em relação à moira , de instauração de uma ordem contrária à vigente. O que configura uma tragédia é o choque de verdades, do indivíduo contra o arranjo imperante. Nesta perspectiva, podemos suspeitar que não haja – nem poderia haver – hamartía, nem mesmo no Édipo Tirano, em que foi primeiramente postulada como traço por Aristóteles . Édipo é simbólico do artifício humano, no que se irmana a Ulisses, o de muitos ardis. Um homem da envergadura de Édipo não tomaria uma decisão que o levasse ao oposto do desejado. Édipo decifra o enigma da Esfinge, ele mesmo dirige todo o inquérito em busca do culpado do flagelo de Tebas e, a certa altura, sua própria esposa-mãe, Jocasta, aconselha-o a parar, temendo as conseqüências. Édipo se nega, afirmando seu desejo de ir até o fim. Isso significa que caso ele, perseguindo o culpado, venha a descobrir-se culposo, por mais chocante que lhe pudesse ser – e talvez por isso mesmo - estaria disposto a perseguir a si mesmo. Atirar-se à pena nefanda, auto-imposta. Édipo desafia, sim, a ordem vigente, justamente porque isso implica que o Tirano desafiasse a si mesmo.
Esse vigor desafiante, combativo, é elemento fundamental do enquadre de mundo, em que a única conformação possível se dá na conformidade dos combatentes. O agón, o embate, a oposição, é origem das ações, do pensamento e do cosmos grego. Até mesmo em Homero, os heróis não são joguete dos deuses, mas por vezes os vemos avançar de lança em punho contra os imortais, ou contra aqueles que se encontram “vigorados” em algum deus ou alguma deusa. A cosmo-teogonia hesiódica se estrutura na tensão de potências e divindades que se unem na contrariedade. Atirando-nos nesta guerra da linguagem, surge uma ferida. A contrariedade que vigora na contradição é o princípio articulador da ironia. Uma guerra de tróia, uma tragédia, uma Odisséia irônicas. Isso é uma ferida aberta ao pensamento, na linguagem. Um dos fios condutores do Édipo Tirano é a busca do saber, a pretensão do saber, e o encontro com o saber do não-saber. Isso é um toque irônico na tragédia sofocliana. Édipo, o decifrador de enigmas, não sabe com que mulher está se deitando! É uma desconstrução irônica da pretensão de tudo saber. Édipo pode saber muito, mas ainda estará perdido a menos que saiba o que ele é. O que de fato acontece após essa descoberta é o tema do desfecho da trilogia, a “trágica redenção” edípica de Édipo em Colono. Conhece-te a ti mesmo. Tragirônico , esférico, nunca planificável num plano dissecante. Uma esfera de profundidade e inevitáveis semitons, sombras, luz, e um lado negro lunar indecifrável e, sim, vigente na imaginação sempiterna.
Em grego, Trágeos é o que é próprio do bode; Oidé é o canto, a ação de cantar. Trágeos Oidé: tragédia, o canto do bode . Esse canto era, fundamentalmente, os ditirambos entoados em honra a Dionisos, o deus trágico, o bode-expiatório. Um sacrifício, e não assassinato. Portanto, consciente. Seus sacerdotes, que originaram os coreutas da tragédia clássica, eram cantores que trajavam as peles e os cornos de um bode para celebrar no círculo da orchestra: o “lugar onde se dança”. Uma dança cantada, feita de palavras-atos. Destaca-se um protagonista. Surge um antagonista. O combate no canto, onde o que se tomba é uma oferenda deitada ao altar: elevado sobre a terra, sob o céu, entre os homens e os deuses. Uma coisa a se pensar. Tragédia é o canto do bode que não só lamenta a morte, mas celebra a instauração da vida. Baco, o deus vinífero, do rubor e do aroma inebriantes. Seu nome deriva do verbo grego bakcheúein, agitar-se, ter convulsões, estar em transe extático: movência incontrolável da vida. Tragédia é morte-vida e vida-morte, a tensão. Baco e Dioniso são vertidos na mesma taça. Tomar um é aceitar o outro. O que caracteriza este par ambíguo é a experiência dimensional de ser, e não um saber monovalente. Vida-morte, saber-não-saber, eis o agón de Édipo. O único “erro” trágico de Édipo é uma errância profunda, segundo a qual pôde se pretender um ser subsumido no saber, em que até hoje a humanidade no ocidente, que já expande seu abraço ao oriente, se encontra. Tal é a atualidade de Édipo – e esse império do saber tem um fundamento: filosofia, que surge na época da escritura da peça, e que se desdobra em teologia medieval e ciência moderna.
Para Platão a filosofia é o saber acerca do ser. O saber é a cerca do ser, envolvendo-o e aprisionando-o, como se o ser pudesse ser objeto do saber. Mas a relação entre quaisquer sujeitos e quaisquer objetos se funda na planície do ser, pois todo sujeito é, todo objeto é, e tudo é de modo que o ser não possa estar num de quaisquer extremos, de quaisquer relações. Ser é sempre para além, é sempre inclusive e apesar. Ser é transgressão e ingressão que não cabem nos monômios da linguagem lógica, é um movimento contíguo de forças contrárias que despedaça o discurso como é despedaçado o corpo de Dionisos, o deus do trágico. Ser é, não-sendo, lutar por ser.
Édipo luta para tornar-se o que já é, para apropriar-se do que já lhe é próprio. Édipo Tirano ou Édipo Rei ? Parece não haver uma opção. Eis a tragédia. Em grego há duas palavras para soberano: Basileús e Tyrannos. O Basileús seria o nosso rei, devidamente entronado e coroado pela lei de sucessão, já o Tyrannos é o governante entronado fora das leis de sucessão. O título da peça em grego é Oidípous Tyrannos, não Oidípous Basileús. Contudo, pelas regras de sucessão, é justamente Édipo que deveria ser o rei de Tebas, pois era o príncipe, filho de Laio e Jocasta. Édipo é tirano-basileu, ao romper com a regra, confirma-a. Ao fugir do destino, realiza-o. Brilhante. Sendo rei, consegue tornar-se usurpador do próprio trono. Apropriar-se do que já lhe é próprio. A questão da tragédia de Édipo é totalmente atópica. A lei é obedecida ou não? Ele foge ou vai de encontro ao seu destino? Ele é rei ou tirano? Sábio ou ignorante? Se transformarmos essas disjunções em adições, deixamos vigorar o sentido – atópico - da obra. Trocando-se “ou” por “e” saímos de um pensamento lógico e entramos num pensamento dialógico de fato, em que não há necessidade de uma síntese final. Não precisamos optar por uma unicidade, uma verdade una e absoluta. Estamos a caminho do poético em que a unidade é sempre dois, é e não é.
Ambigüidade: linguagem da profecia, da magia, do oráculo e da poesia. No seu diálogo Mênon, Platão compara o dizer dos sacerdotes e sacerdotisas ao dos poetas como Píndaro (81 a-b) e também o dizer dos oráculos e adivinhos ao dizer poético (99 c-d). Na análise de seus elementos o abre-te sésamo é apenas uma oração imperativa fantasiosa, dita a quem não pode ouvir. Mais valeria usar o aríete epistêmico, iluminar a gruta com a luz da técnica para constatar que ali não há nenhum tesouro. É tudo ficção. Quanto mais se decompõe, mas fraca a realização; quanto mais se compõe, cresce o vigor. Qual o sentido do fonema /p/ com que Ésquilo “inicia” as Eumênides? Já a obra em sua integridade, quanto nos diz! O discurso lógico da poética aristotélica deu origem às diversas teorias literárias, pelas quais se analisam obras segundo pressupostos lógicos e verdades epistemológicas que nada têm a ver com o conhecimento poético e a verdade ontológica da arte. O trágico se insinua como uma experiência da ambigüidade da linguagem, não como um gênero literário com tais e quais características. Deste modo, apenas, somos privados da experiência em favor de uma suposta certeza de inteligência. Não somente a própria Teoria Literária, mas a Antropologia, a Sociologia, a Psicologia, a Filosofia, a História, etc, são discursos a partir dos quais se elaborou, na cultura ocidental, a reflexão em torno do poético. Este se tornou um discurso secundário, sem um saber próprio, dependente de outras formas de discurso para que se elucide seu sentido e legitime seu valor. A verdade destes outros discursos é inserida, à força dos mais mirabolantes métodos, no discurso poético que, conforme consideração comum, é ficcional, no sentido pobre daquilo que, em si, não traz nenhuma verdade ou, tão somente, representa a verdade.
Nossa trajetória histórica desde Descartes até o passado recente foi escrita com as linhas mestras, retiliníssimas, da verdade enquanto elaboração exclusivamente racional realizada pela ciência. Mas há um cisma dentro da própria ciência: o que é verdade para a geometria euclidiana não é válido para outras geometrias, o que é verdadeiro para a física newtoniana não é aceito pela física quântica. O que é verdade? Confundiu-se, no percurso do pensamento metafísico, a noção de verdade com a noção de realidade, uma confusão que se identifica na sentença cartesiana, “ cogito, ergo sum” : “penso, logo sou”. A tradução corriqueira e errônea como “penso, logo existo” ameniza a inversão proposicional de Descartes. Ao contrário do que disse o francês, notemos que o pensamento não caracteriza o ser, do contrário, tudo que é (ou seja, absolutamente tudo) seria um ser pensante. Já penso, logo existo é uma sentença que caracteriza o modo humano de ser. O ser humano é ao modo da existência. Existir: ec-stare, é exteriorizar, dizer o ser, rebater o ser que nos é arremessado no jogo da linguagem. “ Penso, logo sou”, por sua vez, submete todo o real ao pensamento, às elaborações diversas do pensamento a que chamamos verdade. Realidade tornou-se sinônimo de verdade, na medida em que a realidade está subsumida na verdade pensada. A verdade pensada é o mundo. A aldeia humana. Para além do mundo há a natureza, a floresta, o céu. A insurgência donde vêm a madeira das casas, a água, a comida, o ar, o predador mortal, a chuva incerta e o trovão medonho. Esse além-do-mundo nos abraça com sua proteção dúbia de verdugo generoso. Esse mistério é o trono onde reina, presunçosa, a certeza que não nota o seu incerto assento. Deposta, reposta, imposta, mas sempre na disposição da natureza de coroá-la com sua dúvida, dizendo-lhe: usurpadores, proclamai o talião! A verdade do mundo se funda na realidade da terra. A verdade, neste outro sentido, é um acontecer da realidade, é a realidade em curso, em realização, é o fazer aparecer, e em parte esconder, da realidade, na realidade. Tudo que vem à luz vem das sombras projetadas por algo que anteriormente estava iluminado e que, por sua vez, se oculta nas sombras do que vem à luz. Realidade é a brotação das coisas ( res = coisa ou causa), é também o sumidouro dos entes (o rio das coisas que passam), enquanto verdade é o processo de composição da existência, o enquadre cinematográfico da insistência no mundo, experiência de colheita tipicamente humana: uma experiência de linguagem.
A mais densa experiência de linguagem é a arte, não no sentido estético, mas no sentido de manifestação do sagrado que ela tem nos mitos, nas profecias, nas encenações trágicas e recitações musicais. Isso porque na arte a linguagem não tem vergonha de sua ambigüidade, de sua marca de nascença. A arte configura-se então como a mais densa das verdades, o fundamento de todo conhecimento. No jogo do saber e do não-saber, toda arte é marcial. É trágica na sua articulação, na unidade de dois, na composição de suas tensões sempre originantes e originais. Tomemos uma das mais antigas trilogias trágicas: a de Orestes. Na primeira peça, o rei Agamêmnon é morto por sua mulher, após retornar da guerra de Tróia. Na segunda tragédia, Orestes vinga o pai, matando Clitemnestra, sua mãe. Impera o conflito, neste caso, entre esposos, homens e mulheres, pais e filhos. Na terceira e última peça, entitulada “As Eumênides”, temos o conflito entre divindades olímpicas (transcendentes e patriarcais) e divindades ctônicas (imanentes e matriarcais). Do lado das divindades ctônicas temos as temíveis Erínias, e do lado olímpico, Apolo. Este agón divino, esta guerra de deuses se mostra como a tensão de opostos supostamente inconciliáveis, representando valores de uma ordem antiga, da religião cretense, contra novas valias da religião homérica que se impõem. Palas Atena, por ser Olímpica e ser mulher, estar entre os lados por condição, é posta como juíza da disputa insolúvel. Com sua mediação, um acordo é estabelecido. Parece estranho, mas o trágico não tem necessariamente a ver com catástrofes. A trilogia termina num acordo, numa transmutação de uma tensão excludente numa tensão inclusiva. Não há uma “desgraça” na última peça, mas permanece, desde o início do discurso trágico, a disputa, o embate, o conflito caótico que permite o surgimento da ordem cósmica. Essa dialética poética é, em certa medida, a única dialética, porque na medida em que, no simples, diz o ser - e não pretende dizer como deve ser – ela deixa ser.
Um combate sempre se estabelece, também, em todo e qualquer pensamento. Mas queremos, em nossa época de farta guerra e pouco combate, tudo determinar e calcular. Não há espaço para o incerto do acontecer, para o combate justo de resultado misterioso. Não aceitamos mais o trágico da eventualidade de nosso pensar. Talvez por isso o pensamento esteja se aproximando do impossível, para o conforto de nosso transe reprodutor. Pretendemos ter a posse da linguagem e do pensamento, e acreditamos contar com eles no rol de nossas serventias. Não se pode deixar, deitar o livre, apenas permitir, impor o possível. Contudo, reiteramos, na tensão combativa é que se instaura o vigor da questão, sempre. A compreensão é uma experiência de desarmonia, de conflito, de caos. Não há como anular esta experiência pela aplicação de métodos que se constituam de caminhos para o resultado esperado, garantido. Não que os métodos não sejam caminhos seguros, preestabelecidos. É exatamente isso que são! Levam-nos com segurança através da floresta, sem que tenhamos que nos embrenhar pelas tortuosas trilhas inaugurais, livrando-nos do risco dos encontros com o inesperado, de chegarmos à perigosa abertura de uma eventual clareira: lume acidental da verdade de um pensamento.