O SERTÃO INTUITIVO DE RIOBALDO

Cristiane Sampaio (Doutoranda)

Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe ” (ROSA, 1986: 84) - são as palavras de Riobaldo. Nessas palavras tão ao acaso e pouco esclarecedoras, de declaração insólita, o sertão aparece em sua forma original, isto é, sertão é travessia infinita para o homem e, sendo assim, ele se nos revela a cada instante. Diante dessa aproximação de Riobaldo do sertão que ele não sabe, mas que está à procura, o sertão lhe aparece de forma intuitiva. Riobaldo sabe o que é o sertão a partir do que vê, do que experimenta. E o que vê e experimenta é um mundo à revelia, insurgindo-se a cada tentativa de definição que tivesse a pretensão de abarcar a totalidade do real [1].

Na sua maneira intuitiva de ver o sertão, a intuição é a sua forma de conhecimento. Assim, ele mesmo diz a seu “interlocutor”: “(...) Eu quase nada não sei. Mas desconfio de muita coisa ” (ROSA, 1986: 8). Intuir o mundo é, como diz Henri Bergson, ganhar uma “ consciência imediata ” (BERGSON, 2006:29), “ visão que mal se distingue do objeto visto ”, e que se apresenta como uma “ consciência alargada, premendo contra os bordos de um inconsciente que cede e que resiste ”; e que “faz-nos constatar que o inconsciente está aí; contra a estrita lógica ” (BERGSON, 2006: 29). O sertão que Riobaldo intui está, segundo ele, “em toda parte ”. Sendo assim, o sertão escapa à lógica de que fala Bergson e ganha a amplitude da intuição. Estando em toda parte, o sertão nos solicita a cada momento a intui-lo; ele não se dispõe como realidade una que abarcasse, simplesmente, um conceito que desse conta de sua dimensão.

Intuir também não é apenas uma espécie de pressentimento, ou quem sabe instinto ou sentimento. Intuir em Grande sertão: veredas é antes de tudo deixar o pensamento ganhar movimento; um movimento que é árduo e dificultoso. Em outra nomeação sua do sertão, Riobaldo diz que o “ sertão é dentro da gente ”. Sobre esse sertão, que é dentro da gente, e que está sempre se transformando, é que Riobaldo se debruça. Sendo o sertão, para Riobaldo, algo que escapa a uma dimensão meramente geográfica e espacial, este ganha também a impossibilidade de demarcações. O poder de observação de Riobaldo comprova muito bem isso. O sertão é a experiência incomunicável de Riobaldo, isto é, sobre o sertão pouco ou quase nada se esclarece, se comunica. Ainda que o sertão a todo instante nos fale, não podemos falar nada sobre ele. O sertão, então, se revela, por exemplo, através das diversas estórias que cortam a narrativa de Riobaldo, ou dos personagens que povoam o grande sertão. Em cada estória que Riobaldo conta, em cada personagem de que ele se aproxima, o sertão surge, aparece pela primeira vez.

Ao se aproximar do sertão a cada instante sem determiná-lo, sem nomeá-lo definitivamente, Riobaldo perpetua-se no espanto. Em determinado trecho da narrativa, por exemplo, ele nos declara: (...) “ o sertão é uma espera enorme ” (ROSA, 2006: 509). Sendo essa longa espera, o sertão é sempre um convite ao desamparo. A idéia de um sertão onde tudo se transforma ou onde tudo é muito misturado, de um mundo à revelia, em que qualquer tentativa de defini-lo escapa às nossas mãos, se repete ao longo da narrativa. Sobre esse mundo à revelia ele comenta em determinada passagem com seu suposto interlocutor:

 

 

“Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?” (ROSA, 2006: 26)

 

 

Segundo Bergson, a metafísica ganharia muito se “ seguisse as ondulações do real ”, ou seja, se deixasse o real se apresentar fora das amarras de um mundo já trancafiado em preconceitos, em definições. Em Grande sertão: veredas , Riobaldo está a todo instante buscando deixar que o real se manifeste, tal como fala Bergson, com suas “ondulações” ou, como diria o próprio Riobaldo, com seus redemoinhos. O que Riobaldo quer, a princípio, o que deseja, é apartar, como ele mesmo diz, esse mundo à revelia; quer que o feio seja feio e o bonito seja bonito; que o branco seja branco e o preto seja preto. Mas o que ele vê, constata, vivencia, é que o mundo é por demais de misturado, confuso mesmo. É essa impossibilidade, assim, de abarcar esse mesmo mundo em uma dimensão una que faz com que Riobaldo permaneça próximo ao pensamento, que se singulariza em Grande sertão: veredas , pelo seu caráter intuitivo. Em determinado momento ele se refere a essa sua necessidade de demarcar o real que se apresenta diante dele:

 

(...)”o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança do meio do fel do desespero. Ao que este mundo é muito misturado.”

( ROSA, 1986: 191- 192)

 

Ao perceber intuitivamente o sertão, esse sertão que é sem janelas nem portas, de tão dentro da gente que é, como ele mesmo diz; ao colocar na visão e na experiência toda fonte de sua especulação, Riobaldo acaba traçando um percurso que aproxima ainda mais a poesia de um pensamento intuitivo. É através da visão e da experiência que tanto a poesia quanto isso que chamamos de pensamento intuitivo se relacionam com o real a partir sempre de uma linguagem que se dispõe a se arriscar à experiência da criação, isto é, a uma aproximação da realidade sem apoio em precondições da mesma, ou em verdades anteriores. A respeito desse pensamento intuitivo mais uma vez lembramos o pensamento de Bérgson que assim se refere:

“A verdade é que uma existência só pode ser dada numa experiência. Essa experiência será chamada visão ou contato, percepção exterior em geral, caso se trate de um objeto material; assumirá o nome de intuição quando versar sobre o espírito. Até onde vai a intuição? Apenas ela poderá dize-lo” (BERGSON, 2006: 53)

 

Descobrindo assim um modo de relacionar-se com real que vai de encontro ao impessoal, ao habitual, à vida de “ mesmice mesmagem ”, Riobaldo constrói aos poucos com sua narrativa uma linguagem que se aproxima do sertão arriscando-se a não dar conta dele, a intuir o sertão sem ter pra quê, sem ter por quê. Dessa forma, Riobaldo mais do que contar história deseja nos convidar para a experiência do pensamento e da poesia, para o desamparo; essa experiência a que tanto o pensamento quanto a poesia se lança em suas possibilidades de manifestar o sertão “que é dentro da gente”, ou de manifestar o silêncio que “é a gente mesmo, demais”. Assim, a poesia e o pensamento, esse pensamento intuitivo como estamos chamando, nos convocam para uma abertura, uma fenestreca, como diria Guimarães Rosa, janela que abre a possibilidade para que o sertão vá ensolarando aos poucos seus recantos, ou como diria também Guimarães Rosa, seu “ mim de fundo ”.

Em sua tentativa de compreender o sertão, de estar à espera dele, Riobaldo vivencia um sertão inofensivo e perigoso. Um sertão onde o mais das vezes o que prevalece é o incongruente, o que se dispõe para ele no meio da travessia como experiência avessa a conveniências. Não há, assim, uma espera pelo conveniente. O sertão que Riobaldo espera é sempre inesperado, pois, como ele mesmo confessa, o sertão “está em toda parte”. É o viver que, segundo ele, é muito perigoso; é arriscado demais. Assim, a aproximação de Riobaldo do sertão não se dá por meio de uma supressão do mundo muito misturado. Riobaldo narra a partir de uma realidade que se apresenta com todos os seus encantos, mas, também, com a sua experiência de pobreza. Não seria, desta forma, a falta de uma realidade mais amena do sertão um empecilho para que nos aproximemos desse mesmo sertão através da poesia e do pensamento. O sertão nos convoca, em sua essência, sempre a uma experiência de carência, no sentido de que nada a princípio nos é dado de pronto; ou de que o que há é um mundo de verdades já consolidadas, de um saber já assegurado, em que nós só teríamos que aprimorar ainda mais com outras experiências que pudessem assim render mais frutos. A experiência do sertão é, em sua origem, a experiência de um não, de uma negação, ou de um não saber.

Em seu livro Infância e História , Giorgio Agamben fala de uma pobreza da experiência . Segundo ele, não seria o mundo atribulado da modernidade, em redemoinho, como diria Riobaldo, o responsável por essa incapacidade de narrar experiências. A experiência não estaria relacionada ao extraordinário, mas ao cotidiano, matéria-prima no que diz respeito à tradução de experiências.

 

É esta incapacidade de traduzir-se em experiência que torna hoje insuportável - como em momento algum no passado - a existência cotidiana, e não uma pretensa má qualidade ou insignificância da vida contemporânea confrontada com a do passado (aliás, talvez jamais como hoje a existência cotidiana tenha sido tão rica de eventos significativos).(AGAMBEN, 2005: 21)

 

 

Nesse sertão que Riobaldo não sabe, mas que busca narrar suas experiências, busca intuir, ver o que se passou com ele, intuir seu grande sertão, a experiência maior que nos deixa, nos presenteia, é de que conhecer é antes de tudo um desconhecer, um ignorar, admitir o pouco, por intuir que o sertão, quem sabe, seja, somente, como diz Gu imarães Rosa, a alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões ”. Talvez, por isso peça a seu interlocutor:

 

“ O senhor escute meu coração, pegue no meu pulso. O senhor avista meus cabelos brancos...Viver _ não é? _ é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender -a – viver é que é o viver, mesmo. O sertão me produz, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca... O senhor crê minha narração?”(ROSA, 2006: 518)

 

BIBLIOGRAFIA

AGAMBEN, Giorgio . Infância e História . Belo Horizonte. UFMG, 2005.

______. Le langage et la mort. Paris . Christian Bourgois,1997

______. “La fin du poème. In La fin du poème . Paris, Circé, 2002.

HEIDEGGER, Martin. Approche de Hölderlin . Paris, Gallimard, 1973.

______. A caminho da linguagem . Rio de Janeiro, Vozes, 2003.

NOVALIS. Pólen . São Paulo, Iluminuras, 2001

PUCHEU, Alberto. Platão e as questões da arte: a poesia e seus entornos interventivos. In: A arte em questão: as questões da arte , Rio de janeiro, 7 Letras, 2005.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas . Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986. _____. Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason . Rio de Janeiro,

Nova Fronteira: Academia Brasileira de Letras; Belo Horizonte, MG: Ed da UFMG, 2003.

1. Bérgson, Henri. O pensamento e o movente . p. 28

 

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