Música , língua viva do silêncio
"O pássaro luta para sair do ovo . O ovo é o mundo . Aquele que nasce deve destruir um mundo ”.
- Hermann Hesse, Demian
Não escassos são os caminhos a se percorrer para pensar a música - muito embora já sejam musicais, enquanto caminhos . Isso torna encontrar a música fácil e difícil , assim como tudo aquilo em que se planta o homem e seu pensar : Linguagem , Morte , Paixão , entre outros . Porém , essa ambigüidade de encontro só torna mais difícil crer em conceitos universais que dêem conta dessas questões . Isso ocorre exatamente porque a abstração se torna esquizofrênica, já que não se consegue distinguir o objeto de análise de quem analisa. Por isso , quando tratamos de suas formas e estruturas estamos também falando de música – falamos de uma música .
Mas por que pensá-la quando tudo o mais nos compele a conhecê-la? Como pisamos então em solo firme , por que alçar vôo e pensar para além dessas categorias , ou melhor , pensar o de onde dessas categorias ? Sem música , ironicamente, não haveria uma estrutura proposicional engajada para dizer o que ela é e então ser conhecida ; contudo , continua em sua vigência , pois é um conhecer humano proveniente do coração – é saber . Diferentemente de procurar o que a música é em seu fundamento , vamos tentar buscar , num sempre vislumbre de pensamento , as maneiras pelas quais a música se permite ser vislumbrada: “Uma música para algo quer dizer um empenho , à luz da sacralidade, para se saber , conhecer , ler algo em sua intimidade – e conseqüentemente também se deixar ser conhecido e alcançado. Essa sacralidade diz, em sua simplicidade , da relação cúmplice entre o homem e o além-homem, ou , no caso , aquilo que sabe ou busca saber ”.
O conto “ Cantiga de Esponsais ”, de Machado de Assis, esse grande poeta-pensador da língua portuguesa, pode nos dizer muito sobre essa música ontofânica a que nos referimos. Mestre Romão é regente de uma orquestra de uma igreja , um senhor de idade , apoiado numa bengala , benquisto em toda a comunidade . Geralmente possuía um tom taciturno e tristonho , mas quando regia “a vida derramava-se por todo o corpo (...) o olhar acendia-se, o riso iluminava-se: era outro ” [1]. Ele se entregava e se alimentava de todo o vigor e espetáculo da sua regência , de música , de vida . Poesia é vida , é corporal : é dança , que pinta um quadro , e celebrando uma música também é teatral ...
Mas Mestre Romão possuía aquele tom grave . Faltava-lhe algo . Em sua casa , “ alguns papéis de música ; nenhuma dele...”. É que lhe faltava um cuidado mais radical da música . “Se Mestre Romão pudesse seria um grande compositor (...) a causa da melancolia de Mestre Romão era não poder compor , não possuir o meio de traduzir o que sentia”. Traduzir é dispor , propor , verter , profetizar , conduzir além . Pois não conseguia atingir a proficiência mais profunda do poeta como tradutor, criador de mundo , profeta . “Trazia dentro de si muitas óperas e missas , um mundo de harmonias novas e originais (...)”, mas não lograva lhes dar sentido , lhes mundificar . Contudo , dominava a técnica e a executava com perfeição .
Curiosamente , no período em que se casou, a inspiração lhe bate às portas , e rabisca um canto esponsalício, que não só não é terminado, mas que termina por frustrá-lo ainda mais pela morte alguns anos depois da mulher .
Eventualmente , cai enfermo . O remédio do boticário não consegue curá-lo, e perante a morte , o Mestre resgata o canto inacabado das gavetas , e se obstina a concluí-la, para deixar algum legado . Perante da morte , ele busca ser vida , se elevar na memorialização da obra . Sua existência , dedicada à música , é uma de paixão . É essa paixão que buscará para conjugar sua obra inacabada : põe o cravo para perto do quintal e insistentemente busca a sua melodia no cravo . Ele avista um casal de namorados pela janela , com os braços por cima dos ombros , e volta a tentar compor no instrumento . Faz ele de tudo para se abrir para a “ inspiração ”: “voltava ao princípio , repetia as notas , buscava reaver um retalho da sensação extinta , lembrava-se da mulher (...)”. Contudo , em sua ansiedade de compor , Mestre Romão estava atropelando as exigências da canção , estava se privando de escutá-la. Estava operando em outro tempo senão o necessário à obra . Porém , um acontecimento irá conduzi-lo aonde desejava chegar , irá impor seu tempo , isto é, seu ritmo , música : a moça do casal , “embebida no olhar do marido , começou a cantarolar à toa , inconscientemente , uma coisa nunca antes cantada nem sabida (...) justamente a que Mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca . [ grifo nosso ]”. Assim , como havia encontrado sua obra final , embora frustrado por não ter sido ele quem a compôs, Mestre Romão expira, morre no mesmo dia , pois sua busca terminara.
O princípio da identidade está no outro , no diferente . É que é o casal de namorados que dá a Romão o que buscava, algo mais próprio , mais seu : “ Em 1880, talvez se toque isto , e se conte que um Mestre Romão...”; algo que o próprio Mestre não alcançou. O casal é a oferta da vida , é o acaso , a profundidade e proveniência da Música em primeiro lugar na vida , numa vida vigente, que é dita na palavra grega zoé . Não haveria técnica ou estrutura que lhe propiciasse a adivinhação dessa melodia . É que o saber de fato está na escala do sabor , do pensar , da experiência ; não somente , portanto , da racionalidade . Não há poeta que sobreponha a prática poética à leitura de um manual de técnicas , prática esta que angustia o regente Romão, por saber ele exatamente da incompletude do seu saber musical.
A paixão que procurava em sua obra final Mestre Romão encontra num casal apaixonado. Ele lembra ao Mestre de seu próprio tempo de apaixonado, algo que a pura lembrança não poderia abastecer e compor uma obra : era preciso que a Memória se desse na experiência de ver e ouvir o casal apaixonado, o que também significava ver e ouvir a sua própria paixão : a paixão de si e a paixão do outro , numa melodia reunidas. É daí que o caminho para a felicidade do homem se edifica na alegria de cantar . Não só o esforço de reproduzir uma música do rádio , mas exatamente fazer o que o rádio não faz e nem poderia : ouvir sua própria música e deixá-la surgir e brotar .
A própria música , ao se constituir como um espólio divino e ad-divinhador da guerra entre silêncio e dito , é curiosamente também o que delineia a possibilidade humana de experienciá-los: silêncio e dito . Música é também pro-ducere, produzir : nos conduz para algo que não nós mesmos , e também assim conduzimos. Conduzir é poeticamente obrar , dar as mãos calejadas e ainda finas ao silêncio , ou melhor , à música , e fazer dela sua companheira : reconhecer sua importância e por ela repartir o pão da vida e da existência : canto , diálogo .
O canto haure e irrompe do monte , da Terra . Ele desafia um mundo , como uma lâmina cortante , mas ao mesmo tempo o faz mundo , pelo desafio . E ainda é um método , lâmina pela qual o homem faz a travessia ( ou tenta ). Mas essa lâmina não é uma espada , reta , rígida e uniforme , ela é mais como um chicote , uma labareda , que afaga queimando. E não pode fazer isso se já não for uma linguagem essencial , a nortear qualquer anseio nosso de existir . A graça da linguagem-música é a graça venenosa de sempre oferecer um sentido entre muitos : é o lugar do poético.
Só se consegue viver musicalmente. A radicalidade da vivência irá depender diretamente da escuta das desenvolturas da música . Um antigo xamã animista tinha seu totem animal , um lobo , cervo ou urso : dele tirava suas forças místicas de acessar o mundo e re-conhecê-lo. E sabia que não deixaria de ver seu espírito guia se olhasse para os lados ou os olhos fechasse: ele era o guia , a força propulsora que melodicamente constituía tanto seu Ser como a capacidade de agir e inter-agir no mundo . Assim se moviam, também , sociedades inteiras. Entrincheira-se no mito algo que , então , todos sabiam: mito é essencialmente música . É linguagem , é princípio , é mousiké [das Moûsai ]. Ouvir e celebrar a música em sua dinâmica em quanto phýsis se plenificava quando o sagrado aedo dava a todos essa possibilidade, ao resgatar a música como método , caminho exatamente para experienciar os mundos e seus corpos a bailarem: o espetáculo da vida .
Frén, em grego , significa o bom entendimento , o com-cordar, ligado ao coração , mas também à mente e à inteligência . É porque se trata de um pensar integral e dialógico , como todo pensar que radica na música . É por isso que o entendimento lógico e metodológico de música é esquizo frênico : ele entende com a mente e a racionalidade , pois se confunde na incompletude e contraditoriedade, ao invés de situar aí o lugar , o espaço da música . O entendimento humano concretiza a medida de cada homem , sua música , seu ritmo , e toda a possibilidade de diálogo melódico que funda um ouvir experienciador. Mais uma vez , o caminhar é musical e metódico .
Muito se diz sobre um dos méritos do cinema ser poder dar uma trilha sonora aos fatos , aos acontecimentos das pessoas apresentadas. Mas será que isso não existe fora da tela de fato ? Claro , seria ingênuo imaginar um grande diretor dirigindo nossas vidas e tocando músicas para elas conforme achar mais cabível . Ora , só porque em certas situações não ouvimos a música como conhecemos [2], não quer dizer que não se manifeste. Além disso, a música não é só o que se manifesta : está para além do fenômeno físico . Pelo contrário : só pode ser vista objetivamente por aprovação e cumplicidade do que não se manifesta , ou não está se manifestando.
Com isso se resgata o silêncio da música . Sua vivacidade no silêncio . Música é princípio . Principia nossas vidas , desde harmonicamente pela canção tocada no rádio para nos acordarmos até nossa própria capacidade de nos constituirmos como seres e co-respondermos a sua dinâmica como princípio motor : verdade , alétheia . Tudo vibra, o vazio não vibra; ele está a vibrar assim como acolher o que já vibrou e dar a possibilidade àquilo que vibra sua possibilidade de ser e seus modos de ser .
Tudo e vazio , talvez o exemplo mais extremo de “ coisas que não existam na realidade ”, mas a que temos acesso e, portanto , existem. Mas esse acesso só se dá pela arte , ou ainda , pela música . E, curioso o suficiente , podemos experienciar o tudo pelo silêncio e o vazio pelo dito : são maneiras pelas quais a música permite esse conhecimento , se doando ora de uma forma , ora de outra . Trata-se tão-somente da dinâmica da poíesis , ou sua originariedade [3].
A todo o momento temos nossa trilha sonora . Isso que chamamos de trilha sonora é, de fato , nossa vida : nosso caminhar não pode o ser senão for sonoro . Porém , não se reduz a ele . Até mesmo entendido no seu sentido mais comum , o de andar com os pés , é também e antes de tudo música . Não é o encadeamento de sons , mas antes um projetar . Não andamos porque “empurramos o chão para trás ”. Isso já é em si um desdobramento [4] do andar . Andamos porque somos também Terra .
Somos talvez seu mais ambicioso projeto . Também essa ambição se faz presente no andar . No andar vemos o grande salto . Afirmamos nossas raízes-pés teluricamente ao separar uma delas da Terra – um novo passo é iminente . O pé finca-se na Terra silenciosa , e o fincar já é um estrondoso passo . Forma-se a dimensão do caminho . Cumprindo o projeto , também dá um novo passo com o pé que ficou, agora o pé que vai, e o que tinha ido agora precisa ficar . E se não estiver satisfeito , a música continua por sua vida inteira , até na memória dos homens , em si já melodias incompletas.
Homens são melódicos. Eles reúnem no dizer e enquanto eles próprios um dizer . E um homem que busca o humano , a travessia , é um que busca a sua própria música , a música de seus semelhantes , de tudo . Gostamos de uma música tocada quando ela nos diz algo . Esse dizer não é comunicativo . A música não tem “ substância ” para ser comunicada – nem harmonia , nem estrutura , nem mensagem . Nem poderíamos ao menos supor que fosse uma coisa e, em segundo lugar , feita e já dada . O lugar , ou o originário da música é sua proveniência da experiência . Do tempo e do momento . Do que tempo e momento prenunciam: método . Método de cada um , da exigência de cada Ser . E quando gostamos de uma música tocada quer dizer que ela dialoga com nossa sinfonia , quando se convida para dentro de nós e não temos como resistir : seria niilista negar nossa própria sinfonia . Então já é tarde demais , nós e a música nos tornamos um só , mas ainda dois diferentes . É o princípio da sintonia, da sinfonia .
A música perdeu seu revestimento sagrado e de pensamento aos olhos dos homens , apreendida física e conceitualmente até por seus reprodutores . Reprodutores , pois se somente dessa forma pensarem a música , terão destituído de suas “ criações ” seu vigor , isto é, sua força como presença apaixonada (essa perda nota-se facilmente nas obras musicais) e portanto sua possibilidade de seu operar mundificante enquanto obra-de-arte, ao abrir mão do poético. Ora , o ato de plantar não é só um conjunto de técnicas de plantio . A música planta quando o homem é capaz de ouvir e co-responder àquela música com a sua própria , através dos seus feitos , também musicais. Cosmogônica e teogonicamente, assim se semeiam e crescem mundos , obras , plantas , homens e canções no amplo seio da Terra , do Vazio , da Fortuna .
André Vinicius Lira Costa
1. ASSIS, Machado de. “ Cantiga de Esponsais ”. In: Contos . São Paulo: Editora Ática, 1998, assim como as demais citações .
2. “ Arte e ciência de combinar os sons de modo agradável ao ouvido .” DICIONÁRIO AURÉLIO eletrônico , século XXI. Rio de Janeiro : Nova Fronteira e Lexicon Informática , 1999, CD-rom, versão 3.0.
3.Aqui lembramos o primeiro parágrafo de Heidegger em A Origem da Obra de Arte , na valiosíssima tradução de Idalina Azevedo da Silva e Manuel Antônio de Castro: “ Originário significa aqui aquilo de onde e através do que algo é o que ele é e como ele é. A isto o que algo é, como ele é, chamamos sua essência ”.
4.Talvez não seja a palavra apropriada , porque o andar , enquanto música , dobra e desdobra. Andar-caminhar é dobrar e compôr o espaço-tempo do caminho e, o superando, trazê-lo para seu horizonte : caminhar gera caminho .