O enigma dos olhos inquietos. Sobre dois poemas de Claro Enigma

Wellington Augusto da Silva

Mestrando em Teoria Literária - UFRJ

 

Antonio Candido, em Inquietudes na poesia de Drummond , indica um caminho fértil para refletir a profundidade e a grandeza deste escritor. Com o olhar muito atento, a descrição feita pelo crítico propõe, a partir da recorrente imagem da torção , um tema de longo alcance para a produção do poeta – a inquietude. É no entorno do centro emocional que se dará a experiência artística do período estudado, compreendido entre os anos de 1935-1959.

Em fabulosas transformações, atendendo a várias perspectivas, sempre cautelosa quanto à presença da subjetividade, a poesia de Drummond compõe-se, na primeira hora de suas publicações, como “reconhecimento do fato”: sentimentos, acontecimentos, o espetáculo material e espiritual do mundo são tratados como se o poeta limitasse a registra-los” (pág.97), de modo que o sujeito se igualaria, de modo solidário, ao objeto notado, garantindo o destaque para este último. A produção poética compreendida entre os anos de 35 e 59 caracteriza-se pela forte desconfiança da palavra e da própria poesia. Drummond abandona o registro dos fatos e passa a conceber seu fazer poético como um processo , tortuoso e incerto, de busca constante por novos objetos, a partir de uma reconfiguração estética. O rearranjo, feito trabalho do poeta, é o mecanismo possível de desvelamento da poesia entranhada nas palavras. No entanto, como que numa luta, o distanciamento entre poeta e o seu objeto aumenta ainda mais a desconfiança na abordagem dos temas. Nisto reside, também, a diferença das concepções de Drummond no seu percurso criativo.

O interessante movimento das preocupações do poeta é logo percebido nos títulos de seus livros; por ex. Sentimento do Mundo e José . É justamente aquela desconfiança que o faz oscilar entre o mundo e o individuo, ampliando as margens da pesquisa poética, assumida como processo, que caracteriza sua técnica . Exatamente a polaridade fortíssima envolvida pela problemática da expressão, que permeia a organização de sua poesia. O recorrente tema da representação torcida e insatisfeita do eu-lírico nos poemas é a porta de entrada para uma consciência que sabe dos riscos de se expor. Não é gratuito, pois para descobrir a poesia “as afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam”. A validade poética da experiência individual somente é atingida na medida em que esta experiência é remodelada artisticamente. Mediada, então, pelo sujeito poético, a experiência estética participa da vida coletiva, ou dialogando com a filosofia com o universal concreto. A lição do grande poeta nesta matéria é, portanto sempre negativa e imperativa, já percebida em Brejo das Almas : “não ame”, “não diga nada”, “não conte” e “não peça”. Os conselhos em negativo fazem-nos pensar na relação que a linguagem da poesia lírica tem com a cotidiana, pressionada pelo utilitarismo e pelo pragmatismo da vida moderna. Como que resistindo pela negação do óbvio e imediato, a linguagem da poesia se adensa, opõe-se ao trivial e cerca-se de múltiplas possibilidades. Sob este aspecto, desfaz-se a aparente naturalidade e facilidade da poesia modernista, sobretudo a de certa fase de Drummond, constituindo-se ela mesma como um poderoso instrumento de auto-conhecimento humano.

Retomando o estudo do mestre, sua atenção volta-se essencialmente para os livros Sentimento do Mundo , José e A Rosa do Povo a fim de verificar as “manifestações do estado de espírito desse eu todo retorcido” (pág.98). Mais claramente, a proposta que aqui tentaremos é a de verificar a continuidade do movimento da inquietude, como representação de um sujeito dividido entre a contensão individual e a participação social. De antemão, uma generosa dica para este desafio também está apontada no ensaio de A. Candido. Embora o livro esteja compreendido no período analisado, a proposta se sustenta pela singularidade apontada pelo próprio autor, já que Claro Enigma “apresenta uma inflexão dos aspectos” (pág.120) trabalhados até então. Recolhemos da parte final do estudo as sugestões que nos servirão de ponto de partida. A primeira relaciona-se ao modo pelo qual Drummond opera sua inquietude nos dois poemas selecionados. A segunda, identificar a forma pela qual os poemas se organizam em torno da intensidade dos problemas com os quais lidam.

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A epígrafe de Valéry ajuda, e muito, a entrada no mundo das palavras de Claro Enigma . Neste livro, motivo de muita polêmica à época, Drummond adensa a sua dicção poética, adota formas clássicas e lhe dá conteúdo apurado, bem como manipula todo tipo de convenções do poema (versos alexandrinos, chave de ouro etc.). Uma notável demonstração de competência formal e intimidade com a tradição, de auto-aperfeiçoamento, apuro e liberdade com o trabalho poético. Um dos movimentos mais interessantes do livro é a percepção da condição humana, altamente refinada pelo apuro estético, que o poeta ao elabora-la, no íntimo da subjetividade poética, é capaz de atingir os limites do ritmo social de seu tempo e, como pretendemos demonstrar, chega-nos até os dias de hoje.

Se os acontecimentos, antes anotados e registrados, agora aborrecem o poeta, o que resulta de sua operação poética? Há ainda validade perguntar sobre o sentimento do mundo? Justamente aquele que se dispunha a construir um mundo novo a partir daqueles mesmos acontecimentos? Lembremos aqui o belíssimo verso final de “Mundo Grande”: “- Ó vida futura! Nós te criaremos”. Se neste livro, o desejo de transformar o mundo era uma exigência da concepção política e poética, era também uma tarefa de redenção do próprio poeta. Não nos esqueçamos que a intensa conjuntura política dos anos iniciais do séc. XX propiciaram altos momentos da arte mundial. Tomar partido na luta social tinha significado profundo na concepção de vários artistas. A polarização fortíssima entre o socialismo e o fascismo, as guerras, a intensa modernização da sociedade brasileira. A consciência aguda de Drummond, na medida em que identifica o mundo mal feito e caduco de seu tempo, se expande quando se reconhece integrante desta mesma sociedade.

Ao contrário do que aparentam, os poemas de Claro Enigma também possuem uma forte inquietação com o tema social. Por certo, a relação estabelecida entre Lírica e Sociedade não é tão explícita se equiparada à das obras pertencentes a Sentimento do Mundo ou a Rosa do Povo . Se o empenho político e os acontecimentos da época formavam a armação dos poemas integrando-se a eles por meio da clara inquietude, o que se vê em “Um boi vê os homens” é uma profunda observação do mundo e das relações humanas. O distanciamento necessário à visão crítica espanta pela sua atualidade, tornando o raciocínio extremamente contemporâneo, talvez até mais do que para os homens partidos do tempo de Drummond. Em “Opaco”, diferentemente, a distância entre discurso e ação diminui, pois é pelo ângulo do sujeito poético que se revela a angústia causada pelo ambiente urbano. Por sua vez, o tom sombrio em que canta a voz lírica aumenta o intervalo entre a superfície dos fatos, sua vivência anterior e sua condição futura. Problematizando seu lugar no mundo, a subjetividade poética torna-se o terreno de resistência à pressão inerente à cidade moderna. É interessante notar, também, a ambientação dos poemas. O terreno no qual se move a reflexão de “Um boi vê os homens” é rural, visto que tal espaço é evocado a começar pelo seu título e pelo agente da ação. No entanto, uma fratura pode ser percebida quanto a unidade entre as questões lançadas e o espaço que as abriga. Neste poema, as reflexões desenvolvidas são declarações estéticas e angustiantes que acometem o sujeito urbano e moderno. Não obstante, a inquietação recai sobre o ambiente rural e não formula questões próprias àquela esfera. Em “Opaco”, como afirmado, a cidade moderna é a localização por excelência, e o motivo que impulsiona o poema é tipicamente urbano. Cria-se, contudo, no poema de ambientação urbana, em que a força da oposição sujeito x mundo opressivo poderia surgir com maior potência, o lado regressivo da sociedade que absorve, aparentemente, a visão contestatória.

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Admirador das obras cinematográficas, Drummond já no seu livro de estréia atinge a formalização estética dos recursos desta arte. As ressonâncias do apelo literário aos mecanismos de composição do cinema são, para o poeta (bem como para boa parte dos modernistas brasileiros), um expediente de grande produtividade. É bom registrar que a incorporação destes recursos se dá, em Drummond, de maneira crítica e mediada, configurando, portanto, a experiência nacional .

No primeiro poema que vimos comentando, é possível atestar indícios da técnica da montagem . Tal qual uma câmera lenta capaz de ampliar o arco de visão do espectador, a plataforma de observação construída em “Um boi vê os homens” adquire função de arma crítica. Não seria exagero, inclusive, sugerir que os olhos do boi-observador corresponderiam a mais uma das múltiplas faces do poeta itabirano. O fértil jogo de máscaras derivado da fragmentação do individualismo moderno continuaria a sua tarefa de problematizar a experiência histórica brasileira. Ao adotar a postura metafórica de um boi no pasto, o eu lírico do poema utiliza-se da observação da rotina fatigante dos homens, mas ainda delicados, que por ele passam. Interessante perceber que a reflexão é feita a partir da perspectiva do animal (que se quer externa à sociedade, mas integrante dela, já que sabe da sua negatividade), capaz ele sim de perceber a conexão entre os “homens tristes que correm de um para outro lado”. Seu ritmo de vida é outro (mais ponderado se contraposto à “agitação incômoda” dos homens) e, exatamente por isso, é possível apontar a surdez e a cegueira do ser humano frente à plenitude do mundo natural (que não sai incólume desta relação, como aponta o verso final).

Curioso notar que a apresentação destes homens frágeis e incompletos, feita na 1 a estrofe, é um balanceio que busca a completude que lhes falta; são pares positivos e negativos que institui uma gradação cujo par final é obscuro. São os homens “ delicados mas sempre esquecidos de alguma coisa”; “ nobres e graves ”; “ graves e até sinistros ”. São coitados pois não escutam os “ cantos do ar ” nem os “ segredos do feno ”. Somente aquele que correu o risco de cantar os sentimentos do mundo, pode sofrer com a ausência de sentido e com a distância entre os homens. Separados da natureza, vagando como sombras melancólicas (mas agitadas) pelos campos. Seriam estes os homens do mundo caduco que Drummond não mais queria? Por certo, as antigas apostas na superação do mundo foram frustradas; e suspensa esta possibilidade, resta a brutalidade trilhada no caminho da tristeza. Como que anti-heróis da época degradada, estes homens são espectros quase sem expressão alguma, bastando simplesmente um baixar de cílios, um gesto pequenino para que suas faces sejam recolhidas à insignificância. A seqüência na escolha das palavras para retratar os humanos, depois da crueldade vinda da tristeza, passa a um tom animalesco. Não há nenhum “ pêlo ” em seus “ frágeis extremos ” e eles mesmos caracterizam-se por “ reentrâncias e secura ”.

Neste retrato em que figura a ausência (a falta de espaço entre as reentrâncias; vivacidade ou água na secura) é pelo horror que ressoa o antigo sentimento do mundo pois há o lamento da pouca montanha (firmeza?) nos homens ou entre eles. A solidariedade massacrada pelo avanço irracional da razão técnica (é bom lembrar que o livro é contemporâneo do início do ciclo eufórico nacional-desenvolvimentista) aparece mais uma vez pela impossibilidade de organização daqueles em quem o poeta devotou sua confiança transformadora. O anseio, quase desesperado, por uma humanidade plena ressente-se pela falta de encantamento da vida, uma vez que a alma destes indivíduos é vazia.

A transfiguração dos sentimentos humanos, operada neste poema, surpreende na sua construção: por estarem bloqueados para os homens de alma vazia, as emoções são “sons absurdos e agônicos”. Dando continuidade ao grito de desespero devido à aversão de uma vida num mundo sem sentido, os sentimentos se concretizam no momento de sua perda: são passíveis de se despedaçarem e tombarem como pedras aflitas no campo. A lesão da alma é tão perigosa para a humanidade que assume um caráter arrasador; queima a erva do chão em que cai e evapora a água. Para além da destruição, sua e da natureza, tão perturbadora é a conseqüência decorrente. O distúrbio causado pela corrosão é tamanho que impossibilita a volta à tranqüilidade e à busca da verdade, os laços de solidariedade, as mãos dadas, a vivência conjunta. O arranjo poético constituído a partir da depuração da presença subjetiva corrobora o movimento de desconfiança de Drummond a este respeito. Interessante notar que, embora “Um boi vê os homens” aponte para uma espécie de objetivismo, o poema é marcadamente lírico em suas adjetivações e substantivações. Escrito pelo artista que o compôs, o poema não poderia se ordenar a partir de um derramamento de lamúrias ou por consciência afetada pela desgraça da derrota política e também de um projeto poético. É justamente da vitória do adversário (a alienação do Capital, a burocracia do Estado, o ritmo acelerado da vida na sociedade administrada) que o poema retira e adquire força. Girando no entorno da negatividade necessária, aquela que reflete profundamente a derrota, “Um boi vê os homens” canta a contracorrente, diversa da laudatória dos vencedores, pois sabe que este triunfo é ilusório e que depois do abalo por ele provocado, difícil é redescobrir nossa verdade, os altos valores da humanidade já esquecidos à época e soterrados na atualidade.

 

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É lugar comum afirmar que a observação do mineiro ressabiado é capaz de iluminar situações e momentos prodigiosos (ainda que prosaicos). O mecanismo é também utilizado em “Opaco”, já pelo título. A falta de transparência que cria sombras e impede a visão total é o grande tema deste poema. No entanto, para nosso modestíssimo interesse, qual seria a repercussão desta falta de visão para o poeta que no passado ousou o canto do próximo para cantar o seu próprio? O que significa saber da existência dos astros e não conseguir vê-los? O emparedamento da condição humana, percebido neste poema, é concreto, e seu agente é representado, no primeiro nível, pela figura do edifício .

Com relação ao tema da distância entre os seres humanos, “Opaco” remete quase imediatamente a “Nova Canção do Exílio”. Entendidos como faces diferentes de uma mesma consciência, cumpre um papel importante lançar luzes sobre as determinantes externas, ainda que brevemente, dos poemas citados. “Nova Canção do Exílio” faz parte do livro Rosa do Povo , de 1945. O poema, um tanto telegráfico, enxuto à concisão das palavras precisas, certamente, é obra de uma fantástica técnica de depuração ao essencial. Retomando o motivo romântico do sujeito exilado, saudoso de seu país, formalizado por Gonçalves Dias, “Nova Canção do Exílio” solicita uma leitura dissidente à ufanista, que lhe dera origem. No poema romântico, a possibilidade de harmonia interna do sujeito lírico é patente. O desejo de regresso à pátria é uma possibilidade aberta pelo poema, muito coerente com a construção do recém independente Brasil. A evocação divina pelo retorno é uma aposta na estruturação da nova e generosa nação. Recém saído da guerra, das cenas da mais alta barbárie vista no inicio do séc XX, o exílio drummondiano não se dá no terreno físico de territórios distantes. O próprio poema pressupõe, entre outros elementos, os abalos da dec. de 40, brasileira e mundial. Provavelmente, refletido no interior da repressão varguista e maturado no começo do declínio dos princípios da vanguarda modernista, “Nova Canção do Exílio” reforça mais uma vez o lado negativo da distância dessolidarizada dos homens. Repete-se ao abafamento o canto solitário do sabiá e do isolamento da palmeira. O sujeito lírico que reflete poeticamente é apagado quase que por completo, como se a sua presença mais clara fosse indesejada (ou impossibilitada).

Recrudescida a solidão humana, o canto é geral pois todos somos mutuamente apartados uns dos outros. No entanto, se na canção do exílio drummondiana a noite autorizava a felicidade de um possível retorno (“Ainda um grito de vida e / voltar / para onde tudo é belo / e fantástico:), em “Opaco” a escuridão noturna propicia um aspecto diverso. Como no exílio, o momento é de reflexão solitária; a percepção do que há ao redor apura-se e os próprios sentidos humanos tornam-se as únicas companhias possíveis. O apelo ao sentido da visão é tão fundamental para a estrutura do poema pois funciona como uma lente, pela qual a reflexão se irradia adensando-se até a última estrofe. Mais uma vez, a tímida presença do eu-lírico desempenha função crítica, quase um alerta contra o emparedamento humano. A repetição da frase “o edifício barra-me a vista” tem peso na composição de “Opaco”. Importante atentar ao fato da aparição sempre modulada e nunca presa no espaço do verso. Livre de amarras, o período contradiz a enunciação. Se o conteúdo sombrio asfixia o individuo, (e também o leitor) dada a sua repetição, é notável a liberdade pela qual a mensagem se expressa. Não é exagero pensar que a maneira pela qual Drummond anuncia a prisão aponta para uma solução da clausura. Não há como não notar que a repetição torna-se um refrão triste, pois triste também é a alma do poeta isolado, mas desejoso do brilho do céu (“Nada escrito no céu. / sei. / Mas queria vê-lo.”).

Em “Opaco”, a organização dos sentidos humanos nas estrofes também tem função esclarecedora. Em uma aparição enganosamente cíclica, a visão combina-se com razão e audição . A escuridão do céu noturno na primeira estrofe requer uma interpretação dos astros da segunda, que por sua vez traduz-se numa espécie de glosa astral em falso, pois “nada escrito no céu”. De modo a complementar o mosaico dos sentidos, a audição entra em cena como motivo que reforça o estatuto de solidão e destacamento do sujeito, retraído frente à grandeza opressora do mundo urbano. A sensibilidade lírica da composição pode também ser atestada na percepção auditiva, muito apurada, deste mesmo sujeito poético. Ele é capaz de confundir-se, ou de quer confundir o leitor, com um zumbido de besouro e dotar de humanidade o motor de automóvel. Seria possível à noite trocar os sinais das coisas e dos animais? Às primeiras registrar inventividade na repetição mecânica e aos últimos reprodução alienada da vida?

Válido ressaltar que o produto do trabalho humano, fruto do desenvolvimento técnico, é o elemento primeiro que impede a contemplação da natureza e o aprimoramento da sensibilidade. Em quatro dos cinco movimentos do poema, o edifício é o bloqueador da visão do sujeito, já dificultada pela ausência de luz. Cabe ressaltar que se trata de um fato sintomático, pois muito da experiência urbana moderna é opressão da subjetividade que, acuada, pode voltar-se contra o lado regressivo da sociedade em que vive. O caminho escolhido pelo poema é o da reflexão sobre seu “estar-no-mundo” e mesmo quando questionado apóia-se na razão . E aqui a atenção recai sobre os verbos ( quis interpretá-lo e sei ) e o tempo passado em que são conjugados. Na marcha da História, ficaram para trás a aposta positiva da razão e resta a derrota da proposta emancipatória. Cercado por todos os lados, numa noite escura, o edifício é barreira para a observação da natureza e da vida urbana. Sempre pela vista bloqueada, seja na rua ou dentro do edifício (pois não há indicação explícita de onde o sujeito fala), o exercício da consciência crispada torna-se observação dos elementos a sua volta (a paisagem astral, a interpretação do edifício, a escrita do céu, os sons dos insetos e o ronco do motor) buscando juntar, como num mosaico, os fragmentos da experiência dilacerada pela cidade. A resultante desta constelação, em que cada parte torna-se orgânica de um todo vivo (o poema), é a sublevação da condição humana na experiência histórica. Mesmo que não haja referências explicitas cronológicas, “Opaco” é um grito mudo da subjetividade lírica acuada pelas derrotas históricas sofridas pelo seu campo político. Trata-se de uma antítese, nada idealista, ao avanço do capitalismo de sua época, que não faz concessão ao passado colonial nem adere acriticamente à modernidade.

A última estrofe guarda o momento revelador do poema. O significado total assume um novo plano a partir desta leitura. Anteriormente falamos do caráter aparentemente cíclico e assombroso do poema. E agora explicamos: o quinto movimento retoma o motivo da visão , que chega nesta estrofe com todas as cicatrizes da experiência urbana e moderna. Se opaco, num primeiro nível, era o edifício que barrava a vista, opaca é ela própria já que “se barra a si mesma”. O esplendor do céu estrelado e da noite de luar é, então, diminuído. A vivacidade do desejo de contemplação do firmamento, que desencadearia a interpretação dos edifícios e dos sons da cidade, dá lugar à humildade do brilho da lua. A experiência da natureza passa a ser mediada pelo edifício, visto que “Por ele é que sei do luar.”. A lucidez do poeta, capaz de selecionar o essencial de seu material, guia também a consideração do verso seguinte e cria uma armadilha. Se coerente a leitura, os versos finais aperfeiçoam a gradação do poema que lá atinge o ápice, e muda de patamar. Admitindo que a cidade bloqueia a visão total do ser humano (de suas relações, de seus afetos, da natureza), é também correto pensar que esta visão bloqueada produz aquela mesma cidade.

O estatuto processual da técnica de composição de Drummond se afirma de modo sombrio em “Opaco”. Resgata lições duras das estrofes anteriores, resiste à leitura fácil e potencializa os versos, uma vez que a aparente simplicidade esconde mais do que revela. Não deixa transparecer o rarefeito brilho do luar poético embora este seja intenso e humilde. O grande poeta eleva o tom de sua lírica e reconhece a escuridão da noite nos próprios olhos. Esta a etapa mais difícil, que precisa de muita coragem para a realização. Os dois iniciais da estrofe abrem-na de maneira quase normativa e lhe dá orientação. O sujeito poético interfere na reflexão quase tão humilde quanto seu luar, por entre os prédios, e nega a barreira de antes. O exemplo de vigor do poema segue a tendência depuradora, própria da poética de Drummond. Resistindo a pressão da sociedade alienante, “Opaco” insiste no lado negativo, porém necessário, da verdade: reconhece os defeitos e a derrota em si, e nos seus, para que, no futuro, as noites de luar iluminem-se e possam ser contempladas com os olhos claros e totais.

 

 

 

Referências bibliográficas :

ADORNO, T. “ Palestra sobre lírica e sociedade ”. In: Notas de Literatura I . São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, Col. Espírito Crítico, 2003;

ANDRADE, Carlos D. Antologia Poética. 33 a ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 1996;

ANDRADE, Mário de. Elegia de Abril. In. Aspectos da Literatura Brasileira, São Paulo, Martins, s/d.

COSTA, Iná C. A Herança modernista nas mãos do primeiro Drummond . In PIZARRO, Ana (org.). América Latina: palavra, literatura e cultura. São Paulo/Campinas: Memorial/Unicamp, 1995.

In: Vários Escritos, 2 a ed. Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1977.

Segundo A.Candido, os dois primeiros livros ( Alguma Poesia e Brejo das Almas ) do autor adotam esta perspectiva.

Técnica aqui entendida como Mário de Andrade a explicitou: “não somente o artesanato e as técnicas adquiridas pelo estudo, mas o processo de realização do individuo, a verdade do ser, nascida sempre de sua moralidade profissional. Não tanto o assunto mas a maneira de realizar o assunto”. Elegia de Abril. In. Aspectos da Literatura Brasileira, São Paulo, Martins, s/d., pp 193-194.

Retiramos estas observações do artigo de Iná C. Costa, A Herança modernista nas mãos do primeiro Drummond.

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