A POÉTICA CIRANDEIRA DE VILLA-LOBOS

Sônia de Almeida do Nascimento

 

Vivendo num mundo de representação e objetividade, estruturado dicotomicamente, em que a ciência e a reflexão ainda deixam intacto o enigma do mundo bruto (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 153), ou seja, um período em que o mundo e o homem são apenas objetos do conhecimento, Heitor Villa-Lobos ousou permanecer fazendo parte de um mundo encantado, negando-se a aceitar a oposição dos contrários. Posicionando-se longe da tradição cartesiana, esse artista recusou a se desprender do objeto, empreendendo uma relação simbólica de seu corpo com o mundo e assumindo uma perspectiva poética. O que queremos dizer aqui é que ele não sobrevoou o espetáculo do mundo. Pois sua perspectiva poética o fez habitar o mundo poeticamente. Quanto a isso, podemos recorrer a Heidegger e afirmar que “a poesia não sobrevoa e nem se eleva sobre a terra a fim de abandoná-la e pairar sobre ela. È a poesia que traz o homem para a terra, para ela, e assim o traz para um habitar” (HEIDEGGER, 2001, p. 169). E mais, Heidegger acrescenta que a linguagem da poesia tem seu lugar no desprendimento, ou seja, no entusiasmo (2003, p. 62). Em suma, como o filósofo ensinou, o desprendimento vigora como espírito jovial e “é a reunião na qual a essência do homem se recolhe na infância mais quieta e essa no cedo de um outro começo" (2003, p. 56).

Diante de tais palavras, podemos acrescentar que, por não estar despojado do corpo, o artista participou e concordou harmonicamente com o mundo que o cercava, mantendo a experiência corporal como essencialmente aberta, cumprindo a essência do desprendimento, que, segundo Heidegger (2003, p. 59), é o lugar da poesia. Acreditamos que é nesse quadro que se inscreve a afirmação de Merleau-Ponty de que uma tal concordância harmônica nos é propiciada pelo “Ser vertical ou selvagem” (MERLEAU-PONTY, 1999, 192), pelo qual nos interpenetramos uns nos outros, e nós próprios em nós para possuirmos o nosso tempo.

Ora, essas palavras nos autorizam a afirmar que a harmonia aqui referida é o parentesco ou a concordância originária entre o homem e a natureza, e que permite a promiscuidade com a vida interior das coisas, ou seja, segundo o próprio Merleau-Ponty, “a invasão de tudo por tudo” (1999 p. 214). Nesse sentido, não sendo alvo da cisão sujeito-objeto, o espírito encantado do artista permaneceu em seu estado não colonizado e propiciou a experiência primordial que desconhece a separação conceitual entre alma e corpo, entre experiência e essência, e que pode ser captada como “iniciação aos segredos do mundo” (CHAUÍ, 2002, p. 161). Portanto, arriscamos afirmar que, experiência, para ele, não é passividade receptiva e nem inspeção intelectual do mundo, mas instauração de novo mundo dentro do mundo. Ou ainda, é o modo de ser e de existir no mundo como um verdadeiro “filho da natureza” que sente a vida no corpo, expressão que tomamos emprestado de Huizinga (2000, p. 134). Decididamente, atrevemo-nos a pensar que somente um “coração selvagem” empreende uma visão mito-poética diante do mundo, propiciando uma intimização do homem e natureza.

Por conseguinte, utilizando-nos das palavras de Chauí, entendemos que Villa-Lobos manteve seu corpo como “sentinela em vigília às portas do sensível” (2002, p. 158) e, como aprendemos com Heráclito (2000, frag 26), na vigília toca o adormecido. Estando aberto ao “jogo” do mundo – jogo entre o visível e o invisível -, esse artista entrou no espaço de fascínio que esse jogo exerce. Ou ainda, ele entrou na real experiência do jogo que, de acordo com Gadamer (2004, p. 154) “consiste no fato de que, no jogo, passa a predominar algo que obedece inteiramente às suas próprias leis”. Dessa forma, o mistério o chamou a decifrá-lo, não pedindo explicações, somente convidando à iniciação – à experiência. Certamente, essa experiência é radical, na medida em que, como o selvagem, ele não conhece a diferença conceitual entre ser e jogar (HUIZINGA apud GADAMER, 2004, p. 155) e, assim, poeticamente reestrutura o real, instaurando o novo. E para o filósofo, projetar algo novo (ainda não presente) significa poetar originariamente, fundar poeticamente (HEIDEGGER, 1999, p. 168). Mas, Heidegger também informa que “colocar no mundo” é próprio daquele que procria e é capaz de criar na acepção de parir, dar à luz, e o que se procria é a criança (1998, p.213).

Depreende-se disso que o mistério é o que convida o artista à experiência. Mas essa experiência somente é possível pela criação, pois o chamamento do mistério exige a sua transformação em visibilidade/audibilidade como um verdadeiro desejo primitivo ao impulso de realização. E é a ação que abre a via de acesso para o contato com o misterioso. Neste ponto, recordamos as palavras de Huizinga (2000, p. 124), quando ele afirma que “não é através da reflexão ou do raciocínio lógico que se consegue encontrar a resposta a uma pergunta enigmática. A resposta surge literalmente numa solução brusca – o desfazer de nós em que o interrogador tem preso o interrogado”. Entretanto, devemos esclarecer que, segundo nossa perspectiva, o “desfazer de nós” a que se refere o autor é a condição sine-qua-non da criação à medida que é despersonalização – abertura e liberdade radical.

Posicionando-se com a liberdade de uma consciência pluripessoal, observando que as coisas do mundo possuem interior e que são verdadeiras cintilações de sentido, o artista percebeu a comunicação entre ele e os temas cirandeiros. Mas, advertimos que essa comunicação não se dá porque esses temas agiriam em nossos órgãos dos sentidos e sobre nosso sistema nervoso, e muito menos porque nosso entendimento os transformariam em idéias ou conceitos, mas porque eles e nós participamos do mesmo mundo. Dessa forma, Villa-Lobos pode ver a interioridade dos temas cirandeiros e não se recusou a habitá-los para poder, de dentro deles, saber vê-los ou dizê-los, ou melhor, deixa-los falar, arrancando-os de si mesmos para que seu sentido viesse à expressão. Ou melhor, ele permitiu que a “fala silenciosa, sem significação expressa e no entanto rica de sentido” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 240) pudesse intervir.

Mas, porque ele foi emocionado pelos temas cirandeiros? Nossa argumentação nos leva a dizer que eles nos falam, têm uma lógica própria, ou seja, eles são “pregnância de possíveis”, mundos possíveis variantes deste mundo, destinadas a unir aquilo que habitualmente se separa (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 227). Sua aparência se apresenta como disfarce de forças e de leis desconhecidas que encantam o artista, chamando-o para o jogo, reivindicando a criação. Neles existe uma latência, uma fecundidade perene que os transformam num campo de possibilidades infinitas. De acordo com nosso entender, eles são, e aqui tomamos emprestadas as palavras de Chauí (2002, p. 119), o fundo falso do vivido, que é pura abertura e reivindicação. Da mesma forma, podemos estabelecer que esses temas evocam uma proximidade à medida que são pura provocação.

Diante disso, argumentamos que esse artista não relatou os fatos da própria vida, pois o que realmente lhe provoca são os dramas da humanidade que se encontram nas coisas. Até porque, como ensinou Gadamer (2004, p.478), “o que nos move a fazer experiências é o impulso daquilo que não se submete às opiniões pré-estabelecidas”, ao que acrescentamos as palavras de Huizinga, ou seja, “o jogo situa-se fora da sensatez da vida prática, nada tem a ver com a necessidade ou a utilidade, com o dever ou com a verdade” (2000, p. 177). E isto pode ser entendido, acreditamos, a partir do pensamento heideggeriano, quando o filósofo afirma que “quem é o homem, não chegaremos a saber por meio de uma definição erudita” , mas somente a partir da criação que se dá no embate (HEIDEGGER, 1999, p. 168). Logo, no que tange a nossa proposta neste texto, não nos interessa a intenção e nem o fato do artista ter criado uma obra, mas, se nessa obra, o artista conseguiu ou não fazer falar os temas cirandeiros, permitindo que eles cantem em nós. E se eles cantam em nós é porque “as formas musicais são determinadas por valores que transcendem as idéias lógicas, que transcendem até nossas idéias sobre o visível e o tangível” (2000, p. 177).

Prosseguindo, argumentamos, mais uma vez, que poderíamos ter optado, como ocorre rotineiramente, por falar sobre os fatos que permearam a vida do artista. Mas, nesse caso, estaríamos sendo contrários ao que já foi argumentado anteriormente. Isso porque consideramos que não é o contexto de vida que explica a obra, mesmo sendo ele um campo aberto de possibilidades. Mas, antes, são essas possibilidades que provocam o artista, fazendo-o atender aos apelos da essência secreta das coisas para torná-la audível/visível. Saber atender a esses apelos significa entender a presença das coisas como um mistério que reivindica a existência - existência celebrada como a vida no seu todo, para que dele tenhamos experiência, suscitando, nesse processo, a ação significativa – poiésis – que é, como afirma Chauí (2002, p. 153) “experiência ativa de determinação do indeterminado”. Assim, podemos dizer que Villa-Lobos sonorizou o silêncio, a força inexaurível da fabulação que é o “oráculo mudo de Deus”, ou seja, a natureza.

Por conseguinte, se é a obra que realiza e revela o mundo e sua miséria empírica, então não nos resta outro caminho a não ser recorrer as próprias obras, para diante delas nos sentirmos interrogados, o que significa dizer que não somos nós que levantamos e colocamos as perguntas, mas sim a obra. Sendo assim, partimos do princípio de que a presença dos temas cirandeiros, para Villa-Lobos, foi esse mistério que reivindicou uma presença que só foi possível através da criação. Daí sua resposta na forma das Cirandinhas . Essa obra, resultado da inerência e confusão do artista consigo mesmo e com as coisas, revela um enlaçamento e cruzamento entre homem e natureza.

Mas, o que essa obra fala? Qual a mensagem ininterrupta que ela emite e que solicitou o trabalho do artista? Parafraseando Chauí (2002), Villa-Lobos, ao estar diante dos temas cirandeiros, encontrou-se tateando ao redor de uma intenção de exprimir alguma coisa para a qual não possuía modelo que lhe garantisse o acesso ao ser dessa expressão. E foi a criação, a obra, que abriu esse acesso, pois somente criando é que se consegue o contato pelo qual se torna possível a experiência desse ser. Ora, o criador é aquele que se apercebe da falta – apelo – e sente desejo/necessidade de preencher essa falta. Se as coisas reivindicam, os temas cirandeiros foram pura reivindicação para esse artista, na medida em que eles cantam em nós mais do que nós o cantamos.

Entre as várias reivindicações, escolhemos uma: a da circularidade. Circularidade essa que, tal qual a “roda viva”, exige a nossa participação compartilhada. Da mesma forma, podemos entender que ela é a nossa relação originária que traz a diversidade da medida e do limite a um único contorno, segundo o que ensinou Heidegger (1977, p. 51). Além disso, solicita a harmonia como parentesco e concordância originária entre as coisas (nós e o mundo – homem e natureza), produzindo aquela intimidade de um risco fundamental definida por Heidegger (1977, p.51) como a juntura de traçado e risco fundamental, de diâmetro e contorno (HEIDEGGER, 1977, p. 51). Essa circularidade, puro mistério, solicita a decifração, não pedindo explicação, somente convidando à iniciação – à experiência. Talvez por esse motivo, diante dessa obra, não possamos ficar inertes, sendo cada um de nós obrigados a participar daquela circularidade. Uma tal rotação perpétua, que envolve a todos, fazendo-os girar e girar, vincula-se de maneira irreversível ao movimento de unidade e indivisibilidade, em que um interpenetra o outro num caminho de ida e volta que, segundo nosso entendimento, Heidegger, estudando Heráclito, chamaria de “junção arrastadora”. Por outro lado, o filósofo (HEIDEGGER, 2001, p.158) também reconhece que “a dança de roda é o nó” onde se ajuntam dóceis os quatro: céu e terra, mortais e imortais. Na roda da dança acontece a apropriação

Mas, também devemos lembrar que esta circularidade corresponde ao movimento do jogo, posto que, segundo Gadamer (2004, p. 156 I), o significado originário da palavra “jogo” tem correspondência direta com a dança. E o que são Cirandinhas? Um movimento que é jogo, segundo as palavras de Gadamer, não possui nenhum alvo em que termine, mas renova-se em constante repetição. Em suma, é um verdadeiro movimento ininterrupto de caos e cosmo. Confundindo-se com o modo de ser do jogo, Villa encontrou-se tão próximo da forma de movimento da natureza - movimento sempre em transição -, que não mais se distinguiu e entrou no contínuo renovar-se do jogo, abandonando-se a si mesmo, justamente por ser natureza, vida conectada. Podemos dizer que ele foi enredado no jogo (GADAMER, 2004, p. 160), ou melhor, o jogo se assenhorou do artista, tal qual uma força vital que age retirando-o da clausura e da existência fragmentada para fazer falar o ser despersonalizado.

Assim, retornando ao que foi apresentado na introdução, podemos dizer que o artista, ao se confundir com o modo de ser dos temas cirandeiros, adentrou a região do encantamento, ou seja, entrou “naquele plano mais primitivo e originário” de que falou Huizinga (2000, p. 133) e que nós entendemos como o “ser despersonalizado” que faz festa com uma espiga de milho. Com isso, queremos objetar que ele entrou no plano a que pertencem a criança e o selvagem. Mas, a entrada nessa região de encantamento somente foi possível na medida em que o artista envergou a alma da criança, recusando-se a trilhar os caminhos do mundo cindido pelo mau humor da razão cartesiana. Com isso, ele alcançou a eterna juventude, ou o “espírito jovial” de que falou Heidegger, uma verdadeira conquista da liberdade. E a conquista da liberdade através dos temas cirandeiros significa uma abertura de vida com uma profundidade que não é acessível à observação, à reflexão e nem à teoria. O que importa para o acesso a essa profundidade é a disposição para deixar que os temas cirandeiros digam alguma coisa.

Sendo assim, poderíamos arriscar a afirmar que a consciência de Villa-Lobos foi formada hermeneuticamente, no sentido apresentado por Gadamer (2004, p. 358), na medida em que o artista mostrou-se receptivo e aberto à alteridade dos temas cirandeiros. Seu modo de experiência humana no mundo, guiado pela fala dos temas cirandeiros, demonstra que o artista permite que ainda permaneça vivo algo da produtividade de nossos inícios (GADAMER, 2004, p. 267), fase de extraordinária produtividade e genialidade. Neste sentido, a concordância com Huizinga não poderia ser mais evidente à medida que o originário é prenhe de produtividade. E é nesse sentido que gostaríamos de entender as palavras de Nietzsche (2005, p.62), quando dá voz a Zaratustra: “em todo o verdadeiro homem se oculta uma criança: uma criança que quer brincar”, uma “leonina sabedoria” – selvagem sabedoria – que se transforma em criança (2005, p. 36-74). Esse é o tesouro que nasce, “um novo começar [...], uma roda que gira sobre si, um movimento” (NIETZSCHE, 2005, p. 36). À luz do que precede, parece-nos que, para a criança, o mundo é uma perpétua criação.

Neste sentido, ousamos crer que a polimorfia do artista é a polimorfia da criança. É a polimorfia de uma “coração selvagem” que não está concentrado em si mesmo, artificialmente, mas que tem vibração existencial própria que lhe dá a alegria de estar vivo com os outros, celebrando a existência como a vida no seu todo. Somente essa abertura infante pode conceder a visão de que existem outras formas de saber além das idéias e conceitos. Visão que é pura profundidade de ser, visão do inumano dentro do homem, do inexpressível. Ou ainda, visão do despersonalizado que é a criança, o não separado que somente pode ser encontrado dentro do humano, naquele espaço onde não é possível viver de empréstimos, já que é o espaço da força formativa vital.

 

REFERÊNCIAS

CHAUI, Marilena. Experiência do Pensamento . Ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004

HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis, Rj: Vozes, 2003.

_________________. Ensaios e conferências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.

_________________. Introdução à metafísica. 4ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.

_________________. A origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70, 1977.

_________________. Heráclito: a origem do pensamento ocidental . Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000.

MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999.

NIETZSCHE, Fredrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Mertin Claret, 2005.

SOUZA, Ronaldes de Melo e. Apontamentos de aula da disciplina Poesia e Cosmogonia. Doutorado em Ciência da Literatura, UFRJ: Rio de Janeiro, 2005.

__________________________. A poética dionisíaca de Clarice Lispector. Rev. TB. Rio de Janeiro, 130/131: 123/144, jul.-dez., 1997.

SOUZA, José Cavalcante (supervisão). Os Pré-Socráticos: Vida e Obra. São Paulo: Nova Cultural, 2000.

 

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