A HORA DA ESTRELA: O DIÁLOGO CLARICEANO COM O TEXTO TRÁGICO

 

Patrícia Lopes de Medeiros Maria

(UFRJ)

 

 

Aquiles – Assim falou a águia, ao perceber as penas

na flecha que a perfurava: Então somos abatidas por

nossas próprias asas. Ésquilo*

 

Ao se pensar na obra A hora da estrela , de Clarice Lispector, tendo como base as influências da tradição do teatro grego no romance moderno, é possível vislumbrar alguns pontos de contato com o texto trágico, não só no que concerne à transposição de recursos dramáticos para o gênero narrativo, como também no que diz respeito à proximidade de temas entre o texto clariceano e a obra Édipo Rei , de Sófocles, já que os dois textos tratam do desvelar de si mesmo e do próprio destino.

A tradição crítica e teórica considerou que o romance tinha sua origem na epopéia. No entanto, há uma outra forma de romance, a qual não admite que a obra-de-arte sirva apenas para representar uma realidade. Esse novo romance tem como característica o questionamento da realidade que quer se fazer passar por canônica.

Este tipo de romance tem origem no drama trágico, no drama cômico e no tragicômico, representando apenas uma das realidades, reproduzindo um sentido que se forma e se transforma independente dele. A realidade manifestada no texto A hora da estrela é dotada de extremo subjetivismo, não sendo uma essência, mas sim uma estrutura plurissignificativa que depende de uma determinada ótica para se manifestar sob uma forma distinta. Assim, nesse tipo de romance, é comum o multiperspectivismo, no qual coexistem o olhar do narrador e o olhar dos personagens, no qual só se pode falar em realidades plurais.

Também é mister registrar a presença da ironia literária que, introduzida por Aristófanes, é um dos grandes destaques do texto de Clarice. A ironia irá se constituir como princípio de construção da obra-de-arte, ou seja, não se destacam passagens irônicas do texto, mas cada parte deste contribui para um todo que é irônico. Assim, mostrar-se-á como a parábase, recurso típico do texto dramático, se manifesta através do narrador, Rodrigo S. M., fazendo da ficção uma metaficção – lançando seu olhar crítico não só para os acontecimentos da narrativa, mas para o próprio fazer literário do texto.

Para que se aprofundem tais discussões, é imprescindível que se realize uma análise básica de como algumas das principais características trágicas se manifestam na obra Édipo rei .

 

ÉDIPO REI E A TRADIÇÃO TRÁGICA

O filósofo Aristóteles fez de sua Poética um modelo para a tradição literária do Ocidente. Para tal pensador, a tragédia grega se caracteriza por ser:

 

... imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes (do drama), (imitação que se efetua) não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções. (ARISTÓTELES, 1973:447)

 

No entanto, é preciso registrar que, na verdade, a tragédia não é um drama de ações. Muito pelo contrário, as ações têm um lugar secundário na trama. De acordo com Souza: (2001: 119), “a tragédia grega é a interpretação, a exegese das ações, e não simplesmente a representação da trama das ações consecutivas.” Assim entendida, ela passa da mimesis para a sintesis , trabalhando com reflexões e emoções – a tragédia grega é, na verdade, palco de um drama sem ações, estático. Por isso, em Édipo rei , a peça se inicia com fatos já acontecidos. O que se vê, no decorrer da obra, é como tais fatos repercutem na vida dos personagens, influenciando as suas experiências.

A peça se abre com Édipo buscando soluções para a maldição que se abateu sobre Tebas, sem ter conhecimento de que ele próprio era a causa para os nefastos acontecimentos. As previsões do oráculo já haviam sido concretizadas: Édipo havia matado seu pai e desposado sua mãe, sem ao menos ter conhecimento de quem eram seus genitores. O que se tem a partir daí é o drama interior do personagem em meio à busca e à fuga de sua verdade.

Ao despertar o medo e a piedade, Aristóteles propõe que o poeta dramático crie o prazer trágico , para evocar a catarse, provocando alívio de emoções, através da purgação. A catarse é um dos aspectos mais debatidos na teoria aristotélica, consistindo, de acordo com o Antônio Freire (1985), na purificação, na moderação, na sublimação dos dois sentimentos mais característicos da tragédia: a compaixão e o terror.

Ainda sob a ótica de Aristóteles, os personagens não são – eles só fazem –, o que caracteriza um esvaziamento ontológico da tragédia. Sob essa égide, os personagens se simplificam, perdendo sua autonomia. No entanto, nota-se que Édipo se mostra muito diferente, pois é exatamente quem ele é que o levará aos acontecimentos de seu destino. É a sua vontade de conhecer a verdade que o leva ao seu desfecho. Sua tragédia é a tragédia do saber, a ironia de sua existência reside no fato de que este personagem tudo sabe (e inclusive decifra o enigma da esfinge), mas desconhece a si próprio. Édipo tem a seus pés todos os caminhos, menos aquele que o levaria a si mesmo.

Se na tradição diz-se que o personagem sucumbe devido a um erro cometido por ignorância, Souza (2001) aponta que não há erro e nem ignorância reais na tragédia grega. Ao nascer, Édipo já tem seu destino definido, como o Oráculo de Tebas anuncia. O que acontece é que o personagem vai de encontro ao interesse de sua própria vida. O homem não aceita o que lhe foi dado – o personagente busca mudar seu próprio destino, entrando em conflito com os deuses.

O trágico não reside na noção do aniquilamento, mas na idéia de que a própria salvação torna-se o aniquilamento. Não é na degradação do herói que se cumpre a tragicidade, mas no fato de o personagem sucumbir no caminho que tomou justamente para fugir da ruína. Deste modo, ao tentar escapar de seu destino, fugindo da casa de seus pais de criação, Édipo o encontra, nas figuras desconhecidas de Laio e Jocasta. Portanto, o Édipo de Édipo rei termina a peça cego e desterrado, após seu longo conflito entre a fuga da verdade e o desejo de sabê-la. Sua redenção é, ao mesmo tempo, a sua punição.

O mecanismo da tragédia grega nasce de uma posição antagônica. É nesse tipo de obra que se tencionam o humano e o divino, o racional e o passional, a consciência e a experiência. Segundo Kitto (1990:254), “Édipo, tal como o vemos repetidas vezes, é inteligente, decidido, autoconfiante, mas de temperamento exaltado e demasiado seguro de si próprio; e uma cadeia aparentemente maligna de circunstâncias combina-se, ora com o lado forte do seu caráter, ora com o fraco, pra dar lugar à catástrofe.” Deste modo, a catarse, na tragédia, não significa a superação do conflito, mas a transformação da oposição antagônica na oposição complementar, com os contrários coexistindo em tensão harmônica.

Nietzsche (s/d), em A origem da tragédia , aponta dois elementos essenciais na fundação da tragédia: o espírito apolíneo e o instinto dionisíaco. Nascido como conflito, o encontro destes dois estados, através de um milagre metafísico , harmonicamente, dá origem à tragédia ática. Preso a um destino, o herói trágico precisa cumprir seu percurso de desnudamento da aparência, o que ocorre através da extinção da individuação apolínea pelo êxtase dionisíaco . Reintegrado ao coletivo, o herói receberá a gratidão da comunidade, pela qual doou seu sacrifício.

Ao se entender que o trágico é equilíbrio de sombra e luz , de consciência e perda de si , de acordo com Jean-Marie Domenach (1967), os heróis como Fedra, Antígona, Édipo e Creonte, apesar de todo o sofrimento, concedem um retorno ao equilíbrio ao cumprirem suas trajetórias da eudaimonia (glória) para a daimonia (catástrofe). Seu percurso é iniciado a partir de uma falha trágica , a hamartia (ou amartia ), que não representa uma falha moral, e sim estrutural. Mas esta catástrofe é assumida pelo herói. Antígona diz a Creonte que preferiria morrer a conviver com a culpa de ter deixado Polinices sem sepultamento, um cadáver exposto.

Pra haver tragédia é necessário o conflito, que irá se instaurar à medida que os personagens vão em busca de sua autonomia, desafiando os deuses e as leis da polis . No entanto, é preciso ressaltar que ambos os lados da contenda estão carregados de razão. E ao mesmo tempo, ambos são culpados devido a sua unilateralidade de razão, devido a seu pathos . Édipo é inocente, por desconhecer a verdade, e é culpado pela mesma razão.

 

ÉDIPO E MACABÉA: O DESENCONTRO COM O PRÓPRIO EU

Entre as obras de Sófocles e de Clarice Lispector, podem-se apontar alguns pontos de contato e de atrito. Em A hora da estrela , assim como em Édipo rei , são poucos os acontecimentos. Porém, existe entre as duas obras uma diferença singular: Em Édipo rei a peça se inicia quando os acontecimentos principais da história já se realizaram; em A hora da estrela , os acontecimentos – assumidos como história inventada e mediada pelo narrador – se materializam no decorrer da própria escrita: “Pergunto-me se eu deveria caminhar à frente do tempo e esboçar logo um final. Acontece porém que eu mesmo ainda não sei bem como esse isto terminará”. Mas se em Édipo rei o foco é centrado nas conseqüências de atos previamente realizados, em A hora da estrela também o narrador, ao invés de se prender à descrição de fatos, prefere se concentrar no interior da personagem Macabéa, pois é a partir dele que as reflexões e os conflitos se estabelecem.

Entre Édipo e Macabéa podem-se traçar algumas semelhanças e dessemelhanças. Enquanto Édipo é o típico herói trágico, pertencente à classe nobre da sociedade grega (é o herdeiro do trono de Tebas), Macabéa é apenas mais um dos rostos sofridos dos que imigram para os grandes centros urbanos. O pathos de Édipo se vincula a valores culturais, como a polis e os deuses, o que faz com que seu destino, marcado por acontecimentos passados, influencie no equilíbrio de toda a cidade.

Já o pathos de Macabéa se relaciona com valores interiores; seu destino em nada influi na vida da cidade: “Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás dos balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam”. Macabéa é a anti-heroína, cuja história tem o valor questionado pelo próprio narrador.

No entanto, pode-se destacar o fato de que ambos são personagens que deveriam cumprir o destino de nascer e vingar, apesar de qualquer obstáculo:

 

Eu também acho esquisito, mas minha mãe botou ele por promessa a Nossa Senhora da Boa Morte se eu não vingasse, até um ano de idade eu não era chamada porque não tinha nome, eu preferia continuar a nunca ser chamada em vez de ter um nome que ninguém tem mas parece que deu certo. (LISPECTOR, 1998:43)

 

 

Senhor, eu tive pena! Pedi àquele homem que o levasse para a cidade dele... Agora vejo que o reservou para a pior das sinas: pois se tu és em verdade aquela criança, nasceste para ser muito infeliz. (SÓFOCLES, 1980:125)

 

E mais, ambos os personagens não conhecem a verdade de si mesmos. Édipo é aquele que tudo sabe, mas desconhece a si mesmo. É o herói que vai de encontro à própria preservação, que toma as rédeas de seu destino, entrando em embate com o cosmos. Sua história é baseada na tensão entre o desvelar e o encobrir a verdade, que uma vez conhecida, sela o destino de seu herói:

 

Eu não viria a assassinar meu pai nem seria culpado como amante da criatura que me pôs no mundo... Agora não há deus que me redima: sou filho de uma mulher corrompida, rival do homem que me deu a vida. Se existe um mal maior do que o próprio mal, esse é o quinhão de Édipo! ( Idem; Ibidem. p.133)

 

Enquanto Macabéa também não tem noção de si mesma: “Se tivesse a tolice de se perguntar ‘quem sou eu?' cairia estatelada e em cheio no chão. É que ‘quem sou eu?' provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é incompleto.” Macabéa não se questiona; sua ignorância é total. Também não busca nenhuma verdade, não tem esperança no amanhã e no seu destino. O desvendar de sua verdade, que acontece por acaso na fatalidade de seu atropelamento, só lhe é possível na iminência da morte: “Hoje, pensou ela, hoje é o primeiro dia de minha vida: nasci.” É preciso ainda mencionar que Macabéa também encontra no final trágico sua forma de redenção – finalmente ela “é”, como personagem central de sua própria história, tornando-se a estrela de sua própria morte.

 

A PARÁBASE EM A HORA DA ESTRELA

A ironia literária, que tem a função de subordinar o acontecimento representado ao processo crítico da reflexão, permeia toda a obra de Lispector, sendo sua base de construção. Segundo Souza (2000), a ironia é o princípio que articula a estrutura da obra-de-arte e preside à gênese e ao desenvolvimento de cada uma e de todas as partes. A ironia é, portanto, estrutural, e não apenas verbal.

Na tragédia grega, a parábase realizada pelo coro é a responsável pela exegese dos acontecimentos. De acordo com Belezza (1961), a parábase é uma interrupção súbita na peça para que o coro se dirija diretamente ao público, apostrofando-o em seu próprio nome, ou no do autor.” Duarte (2000) complementa, apontando para o fato de que a parábase tem como função chamar a atenção dos espectadores e situá-los na peça, controlando as expectativas do público ao indicar o andamento da peça.

Sendo a parábase o questionamento crítico do drama que se apresenta, a ironia é parábase permanente. Portanto, a obra literária é sempre julgada superior quando apresenta um movimento parabático contínuo. No drama, a parábase se inicia no momento em que se suspendem as ações para que o coro comece a refletir sobre os acontecimentos desenvolvidos. Em Édipo rei, o coro de anciãos se indigna:

 

– Ah, Édipo famoso, ao leito nupcial de onde saíste filho voltaste como esposo...

– Ah, como pôde o chão que teu pai semeou, tanto tempo em silêncio, acolher o teu grão? (SÓFOCLES, 1980:127)

 

Já no romance, esse momento é o da digressão no narrador. O narrador vai funcionar, então, como o coro, interpretando o tempo e os fatos, definindo a ironia poética. Na ficção narrativa irônica, o narrador se desvia constantemente do fluxo inercial das ações para estabelecer um intercâmbio polêmico com a sua própria obra. O narrador desdobra-se em autor e crítico de sua própria criação, sendo caracterizado como autoconsciente. Leituras de obras irônicas por excelência acabam, portando, por demandar uma interação dialógica intensa entre autor e leitor.

Em A hora da estrela , assim como em Édipo rei ou em Hamlet , o que importa são os personagens, e não as ações. Assim, o romance passa a ser classificado como um drama de caracteres, no qual o narrador se recusa a narrar ações, passando a interpretar caracteres, assumindo um estatuto parabático. A ênfase é no ser, e não no fazer, ao contrário do que Aristóteles previa.

No texto de Clarice Lispector, o narrador interfere durante toda a narrativa, se reportando várias vezes ao leitor para opinar, criticar ou explicar seu próprio relato: “Que não se esperem, então,estrelas no que se segue: nada cintilará, trata-se de matéria opaca e por sua própria natureza desprezível por todos. É que a esta história falta melodia cantabile.”

A ironia, no trecho, é clara e se manifesta através da crítica ao próprio conteúdo do que se narra. E Rodrigo S. M. entrecorta toda a história com suas dúvidas em relação ao status da história de Macabéa: “Mas desconfio que toda essa conversa é feita apenas para adiar a pobreza da história, pois estou com medo.” Rodrigo S. M. faz-se assim, autor e crítico de sua própria obra.

Em outros momentos, a ironia crítica é direcionada diretamente à sua “heroína”:

 

 

Maca, porém, jamais disse frases, em primeiro lugar por ser de parca palavra. E acontece que não tinha consciência de si e não reclamava de nada, até pensava que era feliz. Não se tratava de uma idiota, mas tinha a felicidade pura dos idiotas. E também não prestava atenção em si mesma: ela não sabia.

 

 

 

Enquanto Hamlet monodialoga e, entretido em seus pensamentos questiona: “Ser ou não ser? Eis a questão.”, Macabéa desconstrói a inquietação da busca pela verdade, apelando para a simplicidade de quem se limita à superfície, por não se compreender, como nas seguintes passagens: “Vagamente pensava muito de longe e sem palavras o seguinte: já que sou, o jeito é ser.” e “Quando acordava não sabia mais quem era. Só depois é que pensava com satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola.”

Na obra de arte regida pela ironia, o ser é capaz de se desdobrar em eu-sujeito e eu-objeto, fazendo com que o primeiro consiga se distanciar e analisar criticamente as experiências passionais do seu outro eu. Como Macabéa não desfruta dessa possibilidade de distanciamento, Rodrigo S. M. fica encarregado de dar o tom crítico à experiência da nordestina.

A narrativa é um gênero do discurso que se bifurca entre narrador e evento narrado. Portanto, é um texto no qual os acontecimentos são mediados por quem conta a história. Já no drama os personagens e os acontecimentos se apresentam por si mesmos, não contando com a mediação.

Em narrativas simples, há somente um mediador. Já nas narrativas complexas, encontram-se mais de um narrador, tornando o discurso literário plurissignificativo. Geralmente, há uma dupla mediação, na medida em que coexistem a consciência do narrador e a experiência do personagem.

Como no drama os personagens se expressam a partir dos diálogos e monólogos, o romance dramático irá encontrar no monólogo narrado e na refletorização os pilares básicos para expressar o pensamento dos personagens.

Uma das formas de mediação no texto é através da refletorização, na qual o narrador adere-se aos personagens para lhes narrar os sentidos. Essa aderência é muito bem exemplificada pela passagem: “A dor de dentes que perpassa esta história deu uma fisgada funda em plena boca nossa.” Esta técnica está vinculada ao aspecto corporal: “Ele falava coisas grandes mas ela prestava atenção nas coisas insignificantes como ela própria. Assim, registrou um portão enferrujado, retorcido, rangente e descascado que abria o caminho para uma série de casinhas iguais de vila.” Nota-se aqui que a captação dos sentidos da personagem se mostra de acordo com a sua própria natureza simplória. Rodrigo e Macabéa são um ente só, são opostos que se complementam, conferindo à ironia sua unidade.

Um outro modo de se revelar o personagem é o chamado monólogo narrado, no qual há a descrição dos sentimentos e impressões do personagem. Este recurso se volta mais para as faculdades inteligíveis, refletindo os personagens. É a forma do narrador dar vazão ao pensamento de seus personagens, no que se convencionou chamar de narrativa personativa. Esta forma de narração deixa transparecer a ótica de um determinado personagem, unindo experiência e consciência, razão e paixão. Em A hora da estrela, um trecho que bem destaca essa técnica é:

Essa moça não sabia que ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro. Daí não se sentir infeliz. A única coisa que queria era viver. Não sabia para quê, não se indagava. Quem sabe achava que havia uma gloriazinha em viver. Ela pensava que a pessoa é obrigada a ser feliz. Então era.

 

Como todo personagem é encarnado, tem corpo e alma, o narrador personativo tem de traduzir as partes carnal (dos sentidos) e espiritual (dos sentimentos) do seu personagem. E é assim que o universo de Macabéa se deixa revelar, através de sua visão de mundo, de seus sentimentos, de sua linguagem e de sua realidade – percepções sentimentais e sensoriais estas que captam a realidade subjetiva de “Maca”.

 

CONCLUSÃO

O desdobramento, já apontado por Shakespeare, em dois eus – o eu pensante e o eu pensado, é motivo de curiosidade na obra. Enquanto Hamlet se desdobrava filosofando sobre a própria existência, através do chamado bivocalismo, Macabéa se encontra impossibilitada de tal profundidade. Não é que não exista a dualidade em Macabéa, mas ela se depara com a dificuldade de se tornar objeto do seu próprio pensamento. Por sua simplicidade que quem está no limite entre o ser e o não-ser, a personagem é incapaz de refletir profundamente sobre sua existência: “Achava que cairia em grave castigo e até risco de morrer se tivesse gosto. Então defendia-se da morte por intermédio de um viver de menos, gastando pouco de sua vida para esta não acabar.” Assim, a tarefa fica a cargo do narrador Rodrigo S. M., que procura captar a todo custo a verdade de sua personagem.

Para tanto, o narrador faz uso de recursos originários do drama, como a refletorização, com o intuito de mostrar, aos leitores, as percepções sensoriais de Macabéa; e o monólogo interior, responsável por trazer à tona os pequenos e delicados pensamentos da nordestina. O narrador é muito feliz, pois ao conseguir incorporar e extravasar a alma e a mente de Macabéa no seu narrar, nos oferece possibilidades de leitura amplas e profundas.

Ao se pensar os percursos narrativos, nota-se que o personagem principal de Édipo rei denota extrema força de vontade, que funciona como mola propulsora dos acontecimentos. É o seu desejo que provoca as ações, fazendo com que a razão as justifique. É a sua tentativa de se livrar dos vaticínios do oráculo que o compele a encontrar seu Destino. A imagem da esfinge que irá perseguir Édipo é como a sombra de uma realidade da qual o herói tenta fugir. E é vontade de conhecer sua verdade que leva Édipo ao seu fim e a sua redenção. Em A hora da estrela , o oráculo é reconstruído, fazendo culminar toda a ironia do texto na imagem de uma cartomante:

 

Macabéa ficou um pouco aturdida sem saber se atravessaria a rua pois sua vida já estava mudada. E mudada por palavras – desde Moisés se sabe que a palavra é divina. Até para atravessas a rua ela já era outra pessoa. Uma pessoa grávida de futuro (...) Assim como havia sentença de morte, a cartomante lhe decretara sentença de vida. (...) Então ao dar o passo da descida da calçada para atravessar a rua, o Destino (explosão) sussurrou veloz e guloso: é agora, é já, chegou a minha vez!

 

Em um percurso contrário, cansada da sua verdade, Macabéa procura por uma alternativa que lhe traga alento e esperança. Ao contrário de Édipo, que parte em busca de desvendar seu passado, deseja ardentemente que o futuro traga acontecimentos para a sua estagnada vida. Se o Oráculo de Tebas tem como função iluminar as verdades escondidas, a cartomante aparece com seus falsos vaticínios, cegando Macabéa para sua realidade. É o desejo de conhecer um destino, mesmo que de mentira, que leva Macabéa a seu fim.

O que ambos os textos apresentam em comum, neste sentido, é que os dois personagens não puderam se isentar do Destino. Ambos tiveram que abandonar suas conhecidas verdades para completar o ciclo do que lhes era reservado.

A ironia é o percurso adotado, portando, no texto clariceano, sob a forma da parábase de um narrador autocrítico e autoconsciente. O narrador cumpre seu papel de manter o leitor sempre advertido quando ao conteúdo ficcional do texto, contando, para isso, com a metalinguagem crítica; mostra que o que se apresenta em sua narrativa é a sua percepção de uma história, abrindo portas para leituras diferenciadas; além disso, mostra-se verdadeiramente irônico ao rir de si mesmo.

Sendo Dionísio o deus do drama, da vida e da morte, não é possível apontar nos textos uma dualidade entre trágico e cômico. Há, sim a complementaridade, percebida, tanto nas tragédias clássica e moderna, quanto no romance de Clarice Lispector, em um amálgama de cenas trágicas e cômicas.

Deste modo, conclui-se que a obra A hora da estrela não só apresenta uma forte ligação com a tradição trágica, como também se mostra imensamente rica, ao incorporar e recriar, de forma inovadora e dialógica, alguns dos temas míticos da humanidade.

 

BIBLIOGRAFIA

 

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KITTO, H. D. F. A tragédia grega . vol I. Coimbra: Armênio Amado Editora, 1990.

 

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___________________ . Introdução à poética da ironia. Linha de Pesquisa (2000) 1:27-48

 

Todas as citações da obra de Clarice Lispector foram extraídas de LISPECTOR, Clarice. A hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

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