JÓ: GRITO A UM DEUS ABSOLUTO?

Por Nilton José dos Anjos de Oliveira

(doutorando em Ciência da Literatura – Teoria Literária/UFRJ)

 

A cena inicia com um coro de mulheres, sucedida por um coro de homens; logo vem outro de não sei que forças, e no final de tudo, um coro de espíritos, ainda por encarnar, porém que sentem grandes ânsias de fazê-lo. Esses coros cantam algo muito confuso, em sua maior parte maldições, porém com acentos de supremo humor. Porém de pronto a cena cambia, e nos encontramos frente a certa Vida ociosa , em que também cantam, inclusive os insetos, saem tartarugas com certas frases sacramentais em latim, e até, se bem me lembro, canta não sei o que um mineral...

Quer dizer, que o assunto não se presta nada em absoluto. Em geral, todos os personagens passam todo o tempo cantando, e quando dialogam parece como se discutissem por algo vago, porém com indícios de suprema importância .

 

“O assunto não se presta nada em absoluto”: ou bem o absoluto escapou e assim paisagens e personagens se desencarnaram, contudo, sentindo grandes ânsias de encarnar, pois tudo ocorre como se não ocorresse; [e] a palavra se apaga sem haver-se feito carne, alimento da alma . Todos cantam como homens e mulheres num coro trágico sem proto agonistas , vozes que se confundem onde a luz pouco pode fazer para elucidar, pois, como esclarecer emissões de sons? “Quando dialogam parece como se discutissem por algo vago”: tentam apreender o que vaga, dialogar, mas logo, divagam. Mas, desencarnados fazem de tudo para não desanimarem, assim discutem como se fosse algo de suprema importância. Faz parte do requinte da Vida ociosa : pôr um pouco de sal, temperar, o que não há de comer, por não mais poder. E assim o relativo permeia a vida: dele ciosa ou não. Contudo, um transborde de confusão: o relativo é relação com outra coisa, diferente do Absoluto (desligado ) que sem solver-se, sem misturar-se continua sendo – e que na cultura ocidental confundiu-se com o Aquele que é da tradição judaico-cristã .

Ou, “o assunto não se presta nada em absoluto”, pode querer dizer que no assuntado tudo está relacionado, não existe nada que possa estar fora, desligado. Desse modo, tão importante quanto às tartarugas que pronunciam certas frases sacramentais em latim (homens em que o tempo de outrora ainda demora neles, talvez por caminharem a passos lentos), é o canto dos insetos etc. Neste contexto, o que não se pode compreender é o Absoluto, Algo que esteja desligado e que dê sentido àquilo com a qual ele não se relaciona.

Qual seria a necessidade para o homem de uma divindade ociosa? É urgente que o ‘absoluto' se entorne, se espalhe e se estenda; que ele enfim caia, decaia, decante, cante em meio às entranhas - esse fundo último do humano viver (...) e que são a sede do padece r . Não mais príncipe, princípio; mas partícipe, parte. Que comparta as desolações humanas, que faça parte e não parta ocultando seu rosto como um amante furioso. Que pronto escute o pranto e acolha o olhar lacrimoso de todo aquele que sofre na presença. Mas, neste caso, como coadunar absoluto e relativo? Se o absoluto só pode ser compreendido pelo homem ao relacionar-se com ele, então o absoluto é relativo (ao homem). A condição de Absoluto só pode se dar através da crença e não do argumento, pois que o homem só pode acreditar que o Absoluto se relacione com ele, já que para justificar-se como Absoluto não pode relacionar-se. Mas foi o homem quem denominou este algo (alguém para tantos) de Absoluto. Assim, o homem tangencia esse ser através de um nome. É nome, foi nomeado, foi humanizado. Ao denominar, o homem domou a divindade.

Mas poderia um Deus crido como Criador ser denominado de Absoluto? Não, porque a criação sugere uma relação. O poder da e de criação nega o Absoluto, pois o que se basta, não cria. Vinde a mim as crianças - os que ainda são denominados como criados por alguém: memória do poder criador. Eis que esse Deus Criador é um Deus relativo, como também um Deus do e em relato: relação e revelação. Revela-se à medida que o homem queira travar uma relação com Ele: no momento que se travava com Ele, encontrava. Numa inversão de termos é o homem que pode surgir como absoluto, pois é ele quem pode negar a relação com Deus quando compreende que se basta. Assim, se o divino for absoluto, em verdade, ele é alguma coisa que o homem não sabe nada a respeito, por conseguinte, não saber nada a respeito afirmaria o seu caráter absoluto, mas não necessariamente divino já que não saberíamos do que se trata. A condição de absoluto é diretamente proporcional à ignorância absoluta. O curioso de tal situação é que no decorrer da história ocidental o Absoluto foi caracterizado dos mais diversos modos, paradoxo só comparado ao dos herméticos que descansavam ao descrever algo que não podiam definir e assim as descrições tornaram-se, sem que percebessem, definições.

Assim, está posto que o Criador não reina absolutamente e assim Estado Teocrático (de poder absoluto) utilizou em vão o nome de Deus, duplamente: primeiro, porque com o nome de Deus quis exercer domínio sobre outros e, segundo, para saciar a sua própria sede de poder deturpando não só Deus como também o próprio poder, já que este não significa outra coisa senão a capacidade de realizar o que se pretende realizar , por isso do poder tornar realidade decantou-se em poder real e, enfim, em realeza. Que esta seja deposta - esse foi um dos gritos da nova ordem francesa em fins do século XVIII que secularizava a santíssima trindade ao firmar a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Klossowski afirma que o regicídio foi compreendido por Sade como um simulacro da execução de Deus . Deus morto na cruz, Deus guilhotinado, Cristo morto proclamando que Deus não existe no texto de Jean Paul , Deus está morto no ‘Assim falou Zaratustra' nietzscheano. Ninguém morreu mais na cultura ocidental do que Deus: morre porque acreditam que ele tenha morrido, morre porque morrem aqueles que acreditam nele, morrerá novamente em função de cada homem nascido. Morre um modo de compreendê-lo e senti-lo: mas a morte de Deus não é sua negação, a negação de sua idéia ou de alguns dos atributos que a ela convêm. Somente se entende plenamente o “Deus está morto” quando é o Deus de amor quem morre, pois só morre de verdade o que se ama, só ele entra na morte: o resto só desaparece. Se o amor não existisse, a experiência da morte faltaria. E somente quando Deus se fez Deus do amor pode morrer por e entre os homens de verdade . A partir desse critério torna-se possível diferenciar as vezes que Deus morreu, daquelas que uma divindade desapareceu por ter abusado do nome de Deus.

Variegadas situações em que o homem faz questão da presença ou não desse “absoluto”, mas existe um momento ou um motivo que no decorrer de toda a cultura ocidental uma urgente pergunta se insurge: como se trata de um Deus relacional por ser criador, qual o relato a respeito do sofrimento humano? Sofrimento e presença: sofrimento absoluto ou sofrimento na presença do absoluto. Há um tempo interrogava-se Deus para se saber o porquê do sofrimento na sua presença ou da sua presença – já que sofrer na presença do todo-poderoso faz supor que é Ele quem propicia o sofrimento; mais recentemente o homem utiliza o sofrimento para fazer com que Deus se faça presente . No primeiro caso o sofredor (se) interroga, no segundo, ele não se dá por rogado. Da provação à desaprovação. De qualquer maneira, o sofredor grita com ou para o ‘absoluto', pois o sofrimento força uma relação com o ‘absoluto'. O que se dissolve e não se resolve, grita para aquele que acredita poder absolvê-lo. Quer absolvição em vez de dissolvição. Contudo, o que absolve, absorve:

 

Deste-me a vida e o amor, e tua solicitude me guardou. E, contudo, algo guardavas contigo: agora sei que tinhas a intenção de vigiar sobre mim para que, se eu pecasse, meu pecado não fosse considerado isento de culpa. Orgulhoso como um leão, tu me caças, multiplicas proezas contra mim, renovando teus ataques contra mim, redobrando tua cólera contra mim, lançando tropas descansadas contra mim .

 

O grito é concomitantemente para diminuir a distância do outro quando é chama (chamamento), mas também para aumentá-la quando inflama (inflamação). Grita-se para sustar a dor com uma presença que alivie. Grita-se para assustar a dor que vem com o verdugo que se aproxima ou para expelir a dor que já tortura. De qualquer maneira o grito sempre (d)enuncia uma presença , reconhecível ou não, querida ou não, seja a presença de uma presença, seja a presença de uma ausência. Além disso, todo grito é sintético, não se explica como não explica. O grito é um sopro sonoro: nada cria, somente constata e mesmo quando é de alegria arrisca-se a incomodar outro. O grito é de um jeito ou de outro: incômodo. O grito é cifrado e só pode ser decifrado quando já se desfez. Só o alvo do grito é capaz de compreender quem grita. Aos que estão na periferia do grito só resta dizer ao que grita: acalme-se. Para quem Jó grita? Nesse momento, não nos interessa discutir quais os motivos de Jó, mas simplesmente certificar de que pelo fato de Jó gritar, ele sente uma presença que em absoluto é absoluta.

Fiodor M. Dostoyevski. Demonios , pp.22-23. Obras Completas V. Madrid: Aguilar, 2003.

Maria Zambrano. El hombre y el divino , p.184. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 2005.

Cf. Nicolau de Cusa. A visão de Deus , p. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988.

Martin Buber. Qué es el hombre? ,p.107. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1986.

Maria Zambrano. op.cit ., p.197.

Jó 13, 24.

Como nos lembra Frei Luis de León, reiteradas vezes nas Sagradas Escrituras, sedento quer dizer salteador, ladrão.Exposición de l Libro de Job , pp.111 e 312. Obras Completas II. 5ª. ed. Madrid: La Editorial Católica , 1991.

Martin Buber, op.cit ., p.63.

Pierre Klossowski. Sade mj prójimo, p.58. Madrid: Arena Libros, 2005.

Jean Paul. Alba del nihilismo , pp.45-57. Madrid: Ediciones Istmo, 2005.

Maria Zambrano, op.cit ., p.145.

Pierre Klossowski. op.cit., pp.78-79.

Jó 10,12-14.16-17.

Franz Rosenzweig. La estrella de la Redención , p.231. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1997.

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