Literatura e cinema: do sertão à favela

 

AUTORA: Mariana Gesteira da Silva

ORIENTADOR: Eduardo F. Coutinho

CO-ORIENTADORA: Heloísa Buarque de Hollanda

 

A literatura e o cinema, no Brasil, relacionam-se de maneira, ainda que inconstante, desde o século XX. Ambos os meios vêm mantendo os mesmos temas sociais, apesar de nem sempre terem sido apresentados na mesma época. Assim, o cinema da década de 1960 dialoga com a literatura regionalista, que, embora não lhe seja contemporânea, fornece-lhe o tema do sertão, possibilitando olhar para uma realidade distante dos grandes centros urbanos. No entanto, os temas sociais desaparecem por algum tempo, e passamos a ver filmes e livros, que, ora abordam política partidária e ditadura , ora temas metafísicos e existenciais. A partir da década de 1990, os temas sociais retornaram tanto na literatura quanto no cinema, num movimento em que prevalece uma relação ética com a realidade por parte de escritores e cineastas. Contudo, o dado significativo que a última década trouxe consigo, diz respeito a uma produção na qual as pessoas, no interior da favela e da periferia, buscam falar de si mesmas. Este fato se contrapõe à postura adotada anteriormente, na qual o intelectual militante era uma espécie de porta voz da coletividade.

No Cinema Novo, os cineastas buscavam ter uma relação ética com a realidade que lhes circundava. Por essa razão, os temas sociais surgiram como uma forma de construir uma identidade nacional. Os personagens, oriundos do campo, representariam um ideal socialista no qual o povo chegaria ao poder. Naquele momento, o campo funcionava como matriz duma identidade nacional, de maneira que, o intelectual-militante falava pela coletividade. Há, por detrás do Cinema Novo, um projeto em que a arte era uma forma peculiar de engajamento e de militância política. A esquerda defendia a contestação dos conservadores e o campo era o espaço simbólico no qual se permitia discutir a realidade social do país. Deste modo, o cinema de autor afirmava-se, na década de 1960, como expressão estética de luta política e ideológica em consonância com a sociedade.

Contudo, antes mesmo de que o campo se firmasse como tema preferido do Cinema Novo, o movimento havia começado com o tema da periferia e da favela, que, na literatura, não aparecia desde o Realismo. No entanto, ao se iniciar, em 1964, a ditadura militar o tema é deixado de lado, sendo retomado trinta anos depois, já na década de 1990. No cinema, essa produção pré-64 retratava a favela e a periferia de maneira a se mostrar a opressão dos pobres, que, por estarem excluídos do sistema, tinham de roubar para sobreviver. Desse modo, o crime terminava justificando uma falha do capitalismo, que, ao forjar diferenças sociais, faz com que nem todos possuam as mesmas condições de subsistência – o que pode ser observado nos filmes Cinco Vezes Favela, Rio Zona Norte e Rio 40 graus . Já na literatura naturalista , mostrava-se a pobreza e a corrupção dos costumes de maneira determinista, considerando-a parte inerente das pessoas pertencentes aos estratos sociais mais baixos.

O tema do sertão surge na literatura regionalista de maneira politizada, não como um tema nacional – como ocorre no Cinema Novo –, mas como vivência característica da região nordeste do país. A miséria e a seca são denunciadas por escritores nordestinos, através da literatura regionalista , como uma situação ignorada pelo Estado. Porém o dado mais importante desta literatura são os dramas humanos que se originam das situações adversas. As tensões sociais terminavam sendo o motor dos comportamentos, de maneira que, a natureza interessa como realidade hostil que implica em reação das personagens. O nordeste aparece tanto pelo registro de costumes, como também por aberto engajamento e crítica que as condições da área exigem. O Cinema Novo retoma esse tema do sertão, em amplitude nacional, como foi dito anteriormente. A relação do Cinema Novo com a literatura regionalista se dá pelo sertão e pela politização do tema [*], em que os excluídos são vítimas dum sistema que engendra desigualdades.

Deste modo, ambos os meios, ao tratarem dos temas sociais, terminam abordando a questão da exclusão social. Esta é uma característica que persiste na produção atual. A violência surge, juntamente com a favela e a periferia, como conseqüência dum processo no qual se formou uma massa de excluídos sem acesso, num primeiro momento, a condições de subsistência e moradia, e, posteriormente, sem acesso a bens de consumo. A violência surge como resultado desse processo de exclusão, marcando a falta de negociação entre os locais. Ocorre, exatamente, o que o narrador do livro Cidade de Deus , de Paulo Lins, afirma: “Falha a fala. Fala a bala.”.(Lins, 2003, p. 21) E é pela violência que o lado excluído surge novamente nas artes.

Assim, na década de 1990, o tema da periferia e da favela é retomado, simultaneamente, por ambos os meios, substituindo o espaço, que, outrora, era preenchido pelo sertão. Esse interesse por temas sociais relacionava-se com a tradição artística anterior, firmando-se como conseqüência dum processo histórico. De modo que ao ser frustrado o ideal socialista, o campo perdia espaço como tema preferido. As favelas voltaram ao foco como espaço representante das minorias excluídas do sistema capitalista, apartadas do consumo e das políticas públicas. Durante os trinta anos que separaram o sertão da favela, as questões governamentais e partidárias tornaram-se o tema preferido das artes. Com os olhares voltados para o golpe militar, o comunismo, a ditadura, o AI-5, a democratização do país, o exílio, a guerra fria, os movimentos dos trabalhadores, a dívida externa e as Diretas Já, o tema da pobreza foi relegado a um segundo plano. No entanto, ao se ignorar a exclusão no interior da periferia, se chocava o ovo da serpente. A exclusão deu origem, posteriormente, à violência, que veio a ser um dos temas principais na década de 1990.

Os eventos ocorridos no limiar da última década – como a queda do Muro de Berlin, que marcara no cenário mundial o término da Guerra Fria, com a vitória dos EUA – fizeram com que o mundo deixasse de ser orientado pela disputa de dois países hegemônicos. O efeito disso é que o mundo passou ao comando de apenas uma potência mundial, que estipulava – através de acordos internacionais, como o Consenso de Washington – formas de controle do sistema econômico dos países periféricos. As multinacionais passaram a atuar nesses países com mais intensidade, fazendo com o que o Estado-Nação se debilitasse. De maneira que determinadas medidas, são, de fato, parte dum projeto em que os países hegemônicos - encabeçados pelos EUA – promoviam a globalização da economia a fim de atender os interesses duma elite econômica transnacional. Portanto, a globalização de forma alguma é inerente, é, sim, um projeto político.

Se por um lado, a globalização se caracteriza por grandes fluxos de capital transnacional, pela massificação de bens e costumes, o que homogeneizaria, p or outro, as migrações massivas e, conseqüentemente, as transferências culturais, terminaram estabelecendo contato entre culturas antes ignoradas. Assim, a partir da relação com o outro são formadas novas identidades, marcadas pelo local de origem, em contraste com outros locais. Como o fenômeno da globalização localiza povos, são estabelecidas conexões entre indivíduos e instituições que promovem estratégias de ajuda ou de intercâmbios mais efetivos. 

O reflexo dessas transformações manifesta-se nas artes de maneira evidente. Ao se analisar a produção da década de 1960 até a dos dias atuais, percebe-se que o nacional foi perdendo espaço paulatinamente para o local. A libertação nacional era um dos projetos do Cinema Novo, assim como de outros movimentos culturais no Brasil e na América Latina (década de 1960), que, afirmavam de maneira incisiva, o conceito de nação dentro de uma conjuntura internacional (política, cultural). A partir da década de 1990, os temas sociais retornaram com força para a literatura e o cinema, mas ao se concentrar cada vez mais no local, passa-se a se estabelecer conexões internacionais entre esses mesmos locais. De maneira que os movimentos de periferia dialogam, rompendo fronteiras nacionais. É, em suma, um local que se globaliza, pois ao mesmo tempo em que possui características intrínsecas, assemelha-se a outros locais por serem portadores de experiências semelhantes. Contudo, o processo que levou a esse contexto, se iniciara com uma produção constituída tanto pelo nacional, como pelo local.

Com o local valorizado pelo processo de globalização, a democratização das tecnologias, e, sobretudo, a democratização do conhecimento, emergem, no interior da periferia, vozes comprometidas com seu espaço de origem. Assim, a periferia começa a se olhar de dentro, buscando a desconstrução de estereótipos da imagem da pobreza. Fato inédito, já que na década de 1960, o intelectual-artista buscava ser um representante da coletividade, que, naquele momento, funcionava como um intermediador das minorias desfavorecidas.

Contudo, essa produção mais recente, embora busque um olhar próprio tanto na literatura – caso da obra de Ferréz e de Paulo Lins –, como no cinema – caso do grupo Nós do Morro e da CUFA (Central Única de Favelas), entre outros – não parece haver uma necessidade de ruptura de linguagem. A recente produção parece buscar a conciliação de interesses políticos e de mercado, rompendo com a separação entre as artes afim de unir qualidade a entretenimento. E mantém-se, ainda, a relação com a arte dos anos 1960 tanto nos temas, como também como referência para a recente produção.

A literatura e o cinema, nos últimos anos, caminham lado a lado num projeto no qual a nação se dilui e o olhar volta-se para um local-global, talvez como conseqüência do caminho traçado na pós-modernidade, em que o olhar voltou-se para as margens. Assim, diferenças étnicas, de gênero – entre outras – adquiriam importância no novo cenário. No caso do Brasil, especificamente, movimentos como o hippie , o Tropicalismo e, sobretudo, a organização de classes marginalizadas (mulheres, negros, homossexuais etc.) impulsionaram a divulgação da literatura produzidas pelas minorias. Porém, com a globalização, novas relações de inclusão e exclusão são estabelecidas, de maneira que a cidadania cada vez é mais definida pelo acesso ao consumo. Portanto, aqueles que foram excluídos do consumo terminam adquirindo maior importância nesses tempos pós-globalização.

No cinema e na literatura, os temas são locais, na medida em que se aborda uma realidade específica, e, ao mesmo tempo, são globais, por essa mesma realidade assemelhar-se às realidades locais de outras partes do mundo. Há intenso diálogo entre os dois meios e, sobretudo, entre as duas linguagens, pois cada vez mais a literatura e o cinema assemelham-se, seguindo esquemas de narrativa clássica que darão ao leitor e ao espectador uma certa previsibilidade na depreensão da obra. O diálogo entre os dois meios, por ser contemporâneo em relação aos temas e a linguagem, possibilita trocas e influências recíprocas, o que torna os limites menos evidentes.

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

 

 

BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS (org.). A globalização e as ciências sociais . São Paulo: Cortez, 2005.

 

 

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira . São Paulo: Ed. Cultrix, 1982.

 

 

CANCLINI, Nestor García. Consumidores e cidadãos : conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2005.

 

 

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem : CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1980.

 

 

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Intelectuais x marginais. http//portalliteral.terra.com.br . Acesso em: 11 out 2005.

 

 

LINDA, Hutcheon. Poética do pós-modernismo : história, teoria, ficção. Rio de Janeiro:

Imago, 1991.

 

 

LINS, Paulo. Cidade de Deus . São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2003.

 

 

NAGIB, Lúcia. O cinema da retomada : depoimento de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo: Ed. 34, 2002.

 

 

VENTURA, Zuenir. Cidade Partida . São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

 

 

XAVIER, Ismail. Cinema brasileiro moderno . São Paulo: Paz e Terra, 2001.

No entanto, a inspiração do Cinema Novo como movimento, no qual se busca fazer cinema brasileiro de maneira própria, liberto do modelo colonizador, guarda relações mais estreitas com as vanguardas modernistas de 1922.

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