A poética do olhar em Tanussi Cardoso:
um exercício do corpo inteiro
Igor Fagundes *
lamber os beiços
no prazer da escritura frugal
da poesia
que insistente
Tanussi Cardoso
1. Poesia e pensamento: “o olho no olho do poema”
No célebre ensaio “Poesia e Pensamento Abstrato” , Paul Valéry defende que se reconhece um poeta quando este transforma o leitor em inspirado , isto é, quando aquele que lê oferece ao criador dos poemas os méritos transcendentes das forças e das graças que se desenvolvem no primeiro. “Ele procura e encontra em nós a causa admirável de sua admiração” , diz o poeta-pensador francês.
Procurar e encontrar na poesia do brasileiro – e carioca – Tanussi Cardoso a causa admirável de nossa admiração é seguir este percurso de forças e graças: rasurar as fronteiras entre o poético e o pensante, na medida em que refletir sobre a linguagem é deixar também que ela – a linguagem – sobre nós se reflita. E se refrate, nos refrate, fazendo-nos dela pensadores. E poetas. Críticos-poetas , na linguagem e da linguagem indiscerníveis, numa via que será sempre de mão dupla, já que, ainda com Valéry, todos os verdadeiros poetas são necessariamente críticos de primeira ordem.
A assertiva se aplica a Tanussi. Não bastasse assinar mensalmente uma coluna de crítica literária num jornal segmentado da área de Letras e prefaciar boa parte da nova geração de poetas brasileiros, sua obra poética se ergue como ato incontestável de pensamento. Nas palavras do poeta romântico William Wordsworth, Tanussi sabe que imaginação criadora é “razão em sua forma mais exaltada” ( Reason in her most exalted mood ” ) e que não há dicotomia entre pensamento e sensibilidade ou, conforme o crítico brasileiro José Guilherme Merquior, que “o lirismo é a expressão da consciência reflexiva de uma emoção” .
Em carta enviada ao poeta e professor universitário Gilberto Mendonça Teles, responsável pelo prefácio de seu último livro, Exercício do Olhar , Tanussi escreve: “Penso, às vezes que escrevo os mesmos temas desde sempre” . A construção gramatical da frase é sugestiva. A princípio, a pontuação seguida a “penso” seria oportuna somente se a locução adverbial “às vezes” estivesse entre vírgulas, o que não ocorre. Uma vez diante de um período composto por subordinação, no qual a oração “que escrevo os mesmo temas desde sempre” é objeto direto do verbo pensar, a vírgula configura um lapso sintático e deveria ser abolida.
Na fala do poeta, entretanto, a vírgula figura como um lastro semântico e evoca uma nova leitura. Não a de que o autor pensa, às vezes, que escreve os mesmos temas, mas a de que ele pensa e, por isso, pode pensar/achar que às vezes escreve os mesmos temas. A vírgula parece abrir um caminho de ênfase ao verbo pensar. Chama-nos à meditação por meio do silêncio momentâneo que ela suscita na frase. “Penso; logo, posso pensar que às vezes escrevo os mesmos temas”, poderíamos esboçar. Ou ainda: “Escrevo os mesmos temas porque penso”. Enfim: “Penso; logo, escrevo”, reformularíamos o axioma de Descartes, com a ressalva pessoniana de que “o que em mim sente está pensando” .
Se no Brasil Drummond já havia destacado uma motivação comum dentro de toda sua obra de caráter predominantemente logopaico (isto é, de pensamentos que produzem pensamentos), na literatura universal também os grandes autores cumpriram ou cumprem o mesmo destino. Durante o período em que ministrou cursos em Frankfurt, a poetisa Ingrid Bachmann ensinou aos seus alunos que se percebe a existência de um poeta quando a poesia manifesta uma questão constante; quando, a cada livro, uma preocupação teórica em evidência ou secreta parece marcá-lo:
Como se reconhece um verdadeiro poeta e uma poesia? Se reconhece numa nova completa definição, numa ordenação, numa secreta ou manifesta exposição de um pensamento inevitável. Atemporais, sem dúvida, são apenas as imagens. O pensamento que aprisiona o tempo se submete por sua vez ao tempo. Mas porque se submete, por isso mesmo, nosso pensamento deve ser novo, se quiser ser verdadeiro e ser quiser interferir.
Daí se justifica que, ao longo de sua trajetória, um grande poeta parece escrever os mesmos temas, sob novas formas, por outros caminhos, na busca inquietante de si mesmo e do próprio mundo que o atravessa, continuamente a modificar-se e a modificá-lo.
Ao publicar, no ano de 2006, seu quinto livro de poemas, Exercício do Olhar , Tanussi Cardoso vai ao encontro do que diz na mencionada carta a Mendonça Teles. Após o premiado Viagem em torno de , todo construído segundo a temática da morte, o poeta volta a eleger o tempo e a consciência da finitude humana como força-matriz de seu trabalho: “como se a morte fosse / a possibilidade do desejo / ou do deserto”, lemos em “hóspede das águas” , um dos muitos poemas que integram o último livro.
Longe de trazer algum tipo de ranço do romantismo tradicional, sua reflexão literária é absolutamente moderna, pós-moderna (para os que aprovam a já gasta e imprecisa expressão), na trilha dos dedicados a pensar a própria palavra e a poesia. Sua poética do tempo e da morte é, na afirmação do contraponto, uma poética da vida, porque poetiza a poesia, porque se quer metapoética. Ora a ratificar seu amor incondicional pela linguagem que o vivifica perante a ameaça do finito, ora suspeitando, face à dor de viver, de uma possível luta vã – para lembrar novamente Drummond – frente ao signo verbal: “para que servem as palavras/ a não ser construir enganos?”, escreve este crítico eu-lírico em “como se não fosse adeus” .
Movido por luminares e luminosas contradições dessa natureza (“o verso e seu silêncio não me salvam. / e por mais que tente / sou menor que minha esperança” ) e mergulhado nessa multiplicidade de forças contrárias que agem sobre o humano, Tanussi produz um trabalho de busca pela unicidade das coisas, chamando-as de deus . Consolida, assim, uma poesia multifacetada, conforme é possível flagrar em um dos onze poemetos que compõem o grande poema “sobre todas as coisas”:
quantas faces temos?
qual delas se chama
amor?
quem em nós se diz a
morte?
qual acende a vela do
Ao mesmo tempo que as faces do humano se revelam na tensão dos enjambements , as faces da poética tanussiana se revelam dentro das próprias perguntas e exclamam aquela que, mesmo velada no texto, afirma-se na correspondência semântica com “morte” e na semelhança gráfica e fônica com “templo”: o tempo.
Diante disso, não por acaso o livro Exercício do Olhar se divide em três blocos: “O Tempo”, “Os Dias” e as “As Noites”. Pelo título de cada um deles, já se percebe, de antemão, que todos os três estão relacionados e organicamente confundidos. Afinal, dias e noites são índices do tempo. Resgatando a noção de forças antitéticas que promovem a existência do homem e da poesia, temos os significantes “dias” e “noites” também como metáforas para a oscilação entre luz e sombra, palavra e silêncio, vida e morte, que marca a poemática de Tanussi .
Assim, se em “Os Dias” sobressai o canto louvatório do amor (e, concomitantemente, do amor pela poesia, da poesia como gesto de amor), em “As Noites” o ofício poético mostra sua face de dor, de suspeita, de angústia. E tudo isso endossa a percepção do que chamamos de poética do tempo à luz de um pensamento metapoético ou metalingüístico . A recorrência de poemas que celebram o fazer poético em “Os Dias”, por exemplo, é percebida nos versos de “poesia” (“quando no branco / o susto reverbera” ), “cântico para Guimarães Rosa” (“com os olhos da poesia, / que contêm o verbo do homem e da aurora” ) , “as palavras” (“em sua luminosidade de estrelas como temê-las? ) e “da poesia” (“o olho do tigre / exato certeiro / preciso” ), entre outros.
O bloco “As Noites”, por ter a morte como espinha dorsal, sugere a face angustiada do fazer poético em poemas como “sobre o ofício” (“espanto e perigo de queda // entregar-se ao / terremoto que vem / do tremor de si mesmo” ), “um poema cantando na noite” (“é na noite que o silêncio se faz e o poeta esgrima” // “na noite que nada espera / que o poema desespera” ), sempre em tensão com a face frugal da escrita, estampada em “do prazer da escritura” (“que insistente / faz-me tremer as mãos / sexo feliz nos espelhos” ; “o manto branco da agonia / da palavra inalcançável” ).
É revezando-se nessas faces e confundindo cada uma delas que a poesia de Tanussi constrói um pensamento, em última instância, sobre o divino. Como vimos no fragmento transcrito de “sobre todas as coisas”, o termo “tempo” se diz na semelhança gráfica e fônica com “templo”, este último figurando como índice do sagrado e se afirmando como uma das quatro indagações do poema.
Daí resulta que a palavra Deus se repete em diversos momentos. São mais de quinze citações ao longo do livro. Seu trabalho é um convite a si mesmo a tentar responder poeticamente (isto é, de não responder, apenas exclamar e deixar em aberto, velar) a pergunta que fecha (ou abre?!) o poema “sobre o humano”, um dos últimos da coletânea: “como preencher o vazio / deixado por Deus”? .
Tanussi preenche de palavra o vazio e a faz apontar para um vazio não-lingüístico onde se daria nosso encontro com o desconhecido. No poema, o signo verbal sofre uma transmutação (converte-se em uma outra coisa que não é palavra, está além dela, mas só pode ser por ela alcançado) sem abandonar sua natureza original (ou seja, voltando-se sempre e de novo para ela). Assim temos também em Tanussi. O poeta nos lança ao desafio de mostrar o quanto, ao longo de um único livro, é possível ser outro. Outra persona , outro poeta a cada página, a cada poema, sem nunca deixar de ser o mesmo: aquilo que real e primitivamente é.
Dado o caráter eminentemente dinâmico do poeta e de sua poética, não por acaso se chama Exercício do olhar o quinto livro de poemas de Tanussi Cardoso. No latim, exercitum indica ação, movimento, mudança de rumo, desvio, neste caso, dos olhos/olhares que, a despeito do rumo que tomam, serão sempre do mesmo rosto, ainda que submetido às influências do mundo e do tempo. E é precisamente por meio deste exercício do olhar que, mais uma vez, o poeta traz a público seu inevitável e permanente pensamento sobre dias e noites, vida e morte, poesia. O poético como um modo – diferenciado, porém primeiro, originário – de ver as coisas. O tempo fenomenológica e poeticamente inaugurado pelo olho, pelo poeta, o que nos convoca à pergunta: qual o sentido de olho e olhar atribuído por Tanussi? Questão poética, mas também filosófica. Poético-filosófica. E eis o Valéry do primeiro parágrafo, a nos propor esta linguagem sem fronteiras entre o que é pensamento e o que se faz poesia.
2. Pensamento e corpo: “o olho que a palavra liberta”
Mais do que um pensamento do olhar, sobre o olhar, a poesia de Tanussi Cardoso é, na interseção entre o sensível e o racional, a revelação do pensamento no olhar. Não bastasse desdobrar-se em dezenas de versos em torno daquilo que caracteriza como um exercício da visão, a voz do poeta é também a de quem olha para seu próprio exercício, para seu próprio olho, para seu próprio pensamento do olho, pensando-o dentro dele mesmo. Lança seus “olhos nos desvãos”, conforme avisa o título de um dos belos poemas da coletânea:
o pijama despido do corpo
dorme seus sonhos
o rosto no retrato
estampa uma febre antiga
o piano dedilha
memória e descompasso
o fantasma de um gato
descansa no sofá
a escada suspira
os passos dos homens
no escuro as coisas brilham seus nomes
No poema citado, cada objeto visitado pelo olhar é, na verdade, um objeto revisitado pelo pensamento concebido segundo a imaginação criadora do artista, que parece adivinhar o invisível de cada visível: os sonhos dentro do pijama, a memória no piano, o fantasma no sofá, os passos na escada. Não apenas o invisível salta à vista. Na construção material dos versos, o substantivo abstrato é visivelmente flagrado no encontro com o substantivo concreto, de modo que este materialize aquele ou o primeiro torne o segundo abstrato, isto é, pensamento. O pensamento (o invisível) no visível, no olhar .
A proposição “ no escuro as coisas brilham seus nomes ” – que mais parece uma espécie de conclusão do poema (o que atesta ainda mais seu caráter reflexivo, silenciosamente argumentativo, mas poeticamente exposto sem a marca prosaica da retórica) remete à figura recorrente do cego ao longo do livro.
Do mesmo modo que é preciso regressar sempre à condição de ignorante para recomeçar a busca do conhecimento, a cegueira em Tanussi Cardoso parece dado indispensável para o exercício da poesia. Em outras palavras, o que chama exercício do olhar nasceria daquilo que não é olhado, “olhável”, do que não se pode olhar (e, por isso, convida-nos ao desafio de olhá-lo), daquilo que, enfim, não conseguimos ver e é, em última instância, o desconhecido. O mistério da vida. O “ escuro ” compreendido como grau zero de toda criação, de toda luz iminente, gênese em que as “ coisas brilham seus nomes . Os versos de “poesia”, na abertura do bloco “Os Dias”, assim a definem: “quando no cego / o olhar / é o eco” .
Percorrer as páginas do livro é endossar essa abordagem. Uma das possíveis leituras para o poema “criação” , por exemplo, é esta: a de que o poeta é um cego. Em intertexto com o poeta contemporâneo Marcus Vinicius, autor do premiado Manual de Instruções para Cegos , o criador do poema seria aquele que, ao visitar o museu (a própria vida exposta aos que a vislumbram), esperaria um guia que o ajudasse a andar. E a ver . Lemos na epígrafe de Marcus na abertura do poema de Tanussi: “um cego visita o museu / passa a passo, de sala em sala / supõe a voz sábia de um guia”.
Trazido a “criação”, o fragmento “a voz sábia de um guia” pode ser lido como metáfora da presença de um deus , de uma força maior necessária para a manifestação da poesia, para a manifestação do olhar. O que os gregos chamam de entusiasmo – o recebimento, a incorporação de um deus no momento da poiesis – ou o que denominamos freqüentemente inspiração . Dizem os versos de Tanussi:
o quadro
imagina-o em luz
e cor
o cego
refaz / reconstrói / sonha / inventa
tece novas texturas
e pele
O quadro – a vida. O mundo, um quadro. Um poema, o quadro. O quadro que é o poema. Diversos quadros. Múltiplas telas. Museu – lugar do encontro com o tempo. Refeito, sonhado, inventado pelo cego-poeta, entusiasmado , tomado de um deus. Mas em contrapartida e acompanhando a celebração do poético, temos mais uma vez a suspeita crítica de Tanussi, a desconfiar de seu próprio ofício. Em outro poema, “como se não fosse adeus”, flagramos: “pergunto se o cego que vê Deus / enxergará” .
Tanussi enxerga. Principalmente aquilo que, mesmo não visto em sua claridade ou nitidez (mas recriado no embaçamento semântico da imagem poética), parece, ao contrário, enxergá-lo. Tanussi olha o mundo que o olha, fazendo do exercício criador um gesto plural, de tudo e todos, do nada e de coisa alguma, sem o binarismo dos sujeitos e objetos ou onde tudo seria sujeito e objeto ao mesmo tempo. Sob esse ponto de vista enxergamos “exercício do olhar”, longo poema que dá título ao livro:
o olho cortado do cão andaluz
o olho da lâmina afiada
o olho do sangue e seu jorro
o olho e a visão de Borges
o olho cego que vê
o olho dos bruxos
o olho oculto do eclipse
o olho da parábola e da profecia
o olho que circunda o olho claro do medo
o olho de Deus no centro do furacão
o olho do pai e da mãe e dos galos na aurora
o olho que habita o planeta da infância
o olho da morte anunciada
o olho da vida adiada
o olho na idade madura dos ossos
o olho da cidade fragmentada
dentro do homem fragmentado
o olho ruidoso da urbanidade
o olho do sonho que se recorda
o olho da memória em movimento
o olho partido da esperança e da utopia
o olho dos girassóis
o olho de Clarice
o olho triste da alegria
o olho dos 3 mistérios
o olho prismático dos cristais
o olho como ato de estilhaçamento
o olho das sombras e das dúvidas
o olho absurdo das águias
o olho atento das horas paradas
o olho na nudez escondida
das senhoritas de Picasso
o olho azul de Matisse
o olho das banhistas de Cézanne
o olho sonso do sorriso santo de Gioconda
o olho que se ilumina
além da superfície da máquina
o olho do ritmo das engrenagens
o olho que se espreita
além da língua e da linguagem
o olho que a palavra liberta
o olho do verbo ser
o olho duplo da androgenia
o olho do que sou e não sou
ou vice-versa
o olho que parte de mim para o outro
ou vice-versa
o olho fatal do nome e da coisa
o olho da máscara dentro do olho
o olho da carne dentro da pele
o olho entre os lençóis
o olho insuportável dos limites
o olho sem algemas
o olho do verso em transe e em trânsito
o olho na contramão da dicção
o olho dentro da hipérbole e do espanto
o olho paradoxal da contradição
o olho da serpente sugando o mar
o olho na mão de Gullar
o olho das 5 raízes
Cecília Bandeira Murilo Cabral Dummond
o olho do som de Cage
o olho do rio bebendo a sede
o olho aguado dos peixes
o olho da flecha
o olho da canção dos gatos
o olho no olho do poema
que se anuncia
A repetição obsessiva da palavra “olho” no poema é acompanhada por um rio de imagens. E a imagética, por sua vez, funda-se pelo e no olhar, o que ratifica o princípio de que poesia é “pensar por imagens”, conforme aprendemos, por exemplo, em “A Arte como Procedimento”, do formalista russo Chklovski , que disserta acerca de uma possível função cognitiva exercida pelopoético.
A despeito dos diversos reducionismos cultivados pela corrente formalista, Chklovski, ao citar Potebnia, ajuda-nos a compreender a poesia de Tanussi: “Não existe arte e particularmente poesia sem imagem (...) A poesia, assim como a prosa, é antes de tudo, e sobretudo, uma certa maneira de pensar e conhecer” . Diante disso, poderíamos dizer tanussianamente: não existe poesia sem olho, e olhar é antes de tudo uma certa maneira de pensar e conhecer.
Diria o mesmo, embora de outro forma, Ezra Pound, para quem uma das modalidades do poético é a fanopéia , ou seja, a “projeção de uma imagem visual sobre a mente” . De modo que, no lugar de “a imagética funda-se pelo e no olhar”, poderíamos escrever: “a imagética funda-se pela e na mente”. E se falamos em pensamento do olhar e pensamento no olhar, teríamos, enfim, o olhar no pensamento .
Por tudo o que foi exposto, seria ingênuo aplicar à poética tanussiana a crítica elaborada pelo filosófo-poeta Gaston Bachelard a respeito do vício da ocularidade no pensamento ocidental . Para ele, nosso vocabulário herdou uma predominância de metáforas visuais aplicadas ao conhecimento: evidência, perspectiva, enfoque, leitura, ponto-de-vista, teoria, idéia (em grego, eidos , forma visível), intuição (do latim intuere , “olhar atentamente”), inteligência (do latim intus legere , “ler dentro”), visão-de-mundo etc.
A tradição filosófica – e aqui, em nosso caso, parece também ser uma questão de poética – tem dado preeminência à visão como sentido co-extensivo ao próprio pensar. A tese de Anaxágoras de que o homem é o mais inteligente dos animais por possuir mãos é invertida pela corrente contemplativa e visual de matriz aristotélica.
A fenomenologia bachelardiana da imaginação não vê as coisas com os olhos. Um pensamento que vê com os olhos está preso à contemplação do espetáculo, haja vista que a filosofia não deve primar pela ociosidade, mas pela atividade, pela aplicação e pela matéria. No domínio da poesia, Bachelard combate o que chama de reprodução, ou seja, os reflexos ou as aparências, as superfícies e os objetos, e mostra que tudo é movimento (contínuo élan ).
Nesse sentido, a poética vem a ser um caminho para a descoberta das forças vivas da natureza, razão pela qual o filósofo estudou o conceito de imaginação material , que pensa e sonha a matéria, que vive na matéria e consiste num trabalho de mãos, isto é, que solicita a intervenção ativa e modificadora do homem. A imaginação formal, ao contrário, caminha para a abstração e fundamenta-se na visão e, logo, numa espécie de formalismo e passividade. O poeta da mão – continua Bachelard – seria o demiurgo a serviço das forças felizes. E o próprio Tanussi, em sua poesia ocular, ratifica: “é a mão que desfaz o poema / não o riso das estrelas / mas o ímã dos ouvidos” . Não é o espetáculo – “o riso das estrelas” que define a poesia – mas o que resulta de sua interação com as mãos e ouvidos interventores (inter-inventores) do poeta.
O mesmo depreendemos em versos do poema “exercício do olhar”. O olho poetizado e poetizante de Tanussi Cardoso – “o olho sem algemas”, conforme já transcrevemos – aproxima-se de um olho tido como operante e sinestésico pelo poeta Ossip Madnelstam, a caracterizá-lo como “órgão dotado de acústica, que cria o valor da imagem e multiplica as suas conquistas por ofensas sensoriais” . É o “olho dentro da hipérbole e do espanto”, como se escreve ainda no mesmo poema. É o “olho na lâmina afiada”, que dialoga com aquilo que Gilles Deleuze denomina de função háptica do olhar: a existência de uma certa percepção táctil na visão.
Em poesia, portanto, olhar é isto: ouvir, tocar, manusear, sentir o aroma. É “colher a palavra onde ela possa ser semente. / semeá-la para que seu fruto tenha cheiro (...) / para que ela seja poesia nos ouvidos” . Os versos de “sobre todas as coisas” confirmam: “os olhos ouviam tudo” . E daí novamente se justifica a analogia entre o cego e o poeta, já que o primeiro também vê por meio de seus outros sentidos. De seu tato, olfato, audição. De sua intuição.
Por esse viés, a poética do olhar seria um exercício do corpo inteiro, em que “o espírito, o olho e a mão concentram nossa espera sobre essa pequenina superfície onde jogamos nosso destino” : “minha mãe lê o mundo pelo sorriso” (diz o eu lírico, articulando sinestésica e corporalmente um termo relacionado aos olhos – o verbo ler – com a boca). A poesia nasce do corpo, no corpo, pelo corpo: “quando na palavra / o osso se revela” , continua o poeta. E novamente um dos versos de “exercício do olhar”, a compreender o olho como metonímia corporal: “o olho da carne dentro da pele” ou “o olho de Clarice”, pois conforme avisa a personagem Ângela, de Água Viva :
...escrevo-te com o corpo inteiro, eu corpo a corpo comigo mesma. (...) E se aqui tenho que usar-te palavras, elas tem que fazer um sentido quase que só córpore. Não se compreende música: ouve-se. Ouve-me, então, com teu corpo inteiro .
Ouvindo os ecos de Clarice, o verbo de Tanussi falaria deste lugar onde pensamento e corpo se encontram, corroborando para a idéia desenvolvida por Merleau-Ponty de que o pintor pinta (pensa) com todo seu corpo, num trançado de visão e movimento . O poeta, tal qual o pintor, seria traspassado pelo mundo, de modo que este não mais consistiria em algo em torno daquele, exterior, independente e, sim, algo que só existiria a partir do corpo e do pensamento. Diz Merleau-Ponty: “ser uma consciência, ou antes, ser uma experiência é comunicar interiormente com o mundo, com o corpo e com os outros, ser com eles em lugar de estar ao lado deles” . O fenomenólogo francês abole o cogito e define o olhar como algo que foi comovido por um certo impacto do mundo, restituindo-o ao visível através do gesto da mão.
A partir dessas premissas, podemos voltar ao poema “exercício do olhar”, em que assistimos a uma multiplicidade de olhos encontrados dentro e fora do corpo. Em nosso raciocínio merleau-pontiniano , o fora romperia a fronteira com o dentro e, por isso, o poeta sugere que todo seu redor tem olhos. Não porque queira simplesmente humanizar os objetos ou dar vida à matéria morta, mas porque o olho presente em cada uma das imagens assinaladas é, de fato, o próprio o olho do poeta descentrado, projetado, transfigurado. Como descreve Octavio Paz, “sem nos mover, quietos, nos sentimos arrastados, movidos por um grande vento que nos leva até fora de nós. Nos leva fora e, ao mesmo tempo, empurra-nos em direção a nós mesmos” .
Na citação do poeta mexicano, recupera-se a metáfora do sopro, freqüente nos grandes textos religiosos. A criação como um sopro divino. Em Tanussi, o sopro divino não prescinde de um exercício do olhar, humano, que se arrasta de si para as alteridades, de maneira que ver nelas um sem-fim de olhos é admitir: elas também olham o poeta criador, criam-no, faz dele criatura. Prossegue Paz:
O homem põe em marcha a linguagem. Não se pode falar em faculdades psíquicas – memória, vontade – como se fossem entidades separadas e independentes. A psique é uma totalidade indivisível. Se não é possível traçar as fronteiras entre corpo e espírito, tão pouco o é discernir onde termina a vontade e começa a pura passividade. Em cada uma das manifestações a psique se expressa de modo total .
E uma vez articulada poesia com o divino e é Deus palavra recorrente no livro de Tanussi, acrescentaríamos ainda a noção metafísica de nirvana , que oferece a mesma combinação de passividade ativa de movimento que é repouso. Na palavra de Paz e de acordo com a fenomenologia de Merleau-Ponty, “os estados de passividade – desde a experiência do vazio interior até a oposta congestão do ser – exigem o exercício de uma vontade decidida a romper a dualidade entre objeto e sujeito” .
Desse modo, se corpo e mundo estão atados, deduzimos que corpo e tempo vivem em igual interseção e relação de indiscernibilidade. O verso do poeta concorda: “o tempo se cola ao / corpo” ; “o corpo se deteriora com o vento” , “a mãe guarda o tempo nos bordados” ; “ata-o em linhas / aprisiona-o em panos” ; “inexorável / o relógio do corpo afia” ; “o tempo / vem dos pés e das mãos / (...) e do fruto do ventre das mães” . Por outro lado, o poeta também diz que o tempo vem “das árvores primevas / da paz que faísca em sua casca / nasce da pureza do sangue das areia / (...) / das escrituras dos pássaros / (...) da sede das abelhas / do encontro da aranha e sua rede... / (...) nasce da memória da poeira...” .
Contudo, diriam os filósofos existencialistas que ser no tempo é característica exclusivamente humana. A tradição preexistencialista imaginava o tempo como algo anterior e posterior ao homem, visto que ele nasce e morre no meio do tempo . No existencialismo (dentro do qual encontramos as figuras de Sartre, Heidegger, Jaspers e Kierkegaard), considera-se a impossibilidade do homem imaginar um tempo em que ele não esteja presente, no passado e no futuro, deduzindo-se daí que não faz sentido falar sobre tempo como algo fora e independente do homem. Tecnicamente falando, só o homem existe. Uma pedra, por exemplo, não existe . É, no máximo, um ente.
No caso da poesia e na compreensão de um corpo (de um olho) atado a um mundo, o poeta fala do nascimento do tempo nas coisas ao redor como se, na verdade, se referisse à percepção do movimento das coisas nele mesmo, descobrindo o tempo dentro de si próprio. Descobrir como as coisas se percebem no seu corpo, como elas se passam diante dos olhos é, enfim, deixar-se à vista delas. Nelas lançado, é o corpo do poeta (sua totalidade física, biológica, cultural, social, espiritual) que, de fato, inaugura o tempo. E se inaugura. De novo, Octavio Paz alinhava o pensamento: “O tempo não está fora de nós, nem é algo que se passa frente aos nossos olhos como os ponteiros do relógio: nós somos o tempo. O tempo possui uma direção, um sentido, porque ele é nós mesmos.
Dessas proposições, Paz extrai outras, como a de que “a poesia não é nada senão tempo, ritmo perpetuamente criador” e a de que “ritmo não é medida, mas tempo original . De acordo com o poeta e pensador mexicano, ritmo em poesia não diz respeito à métrica, uma vez que não consiste em uma medida vazia de conteúdo. Ele traz um sentido, uma direcionamento, ainda que não saibamos aonde nos levará. Não é, pois, algo que está fora da gente. Somos nós mesmos que nos vertemos em ritmo. Aquilo que dizem as palavras do poeta já está dizendo o ritmo em que elas se apóiam.
Na encruzilhada entre a poesia tida como um pensar por imagens e a poesia como tempo pensado pelo ritmo, estão o verbo de Tanussi e, mais uma vez, as classificações de Ezra Pound. Até aqui, temos salientado tudo o que vibra como força intelectual da palavra (o que em Pound se chama logopéia ) e se faz segundo o caráter imagético da poética (a fanopéia ). Ao trazermos a noção de ritmo, o trinômio de Pound se completa com aquilo que batiza por melopéia , isto é, a pulsação melódica do verso, que, em Tanussi, possui a mesma freqüência que os caracteres plásticos e intelectivos:
as palavras
e suas
receitas de nêutrons elétrons eletricidades e seus
aparentes mistérios e oráculos e seus
rios de riscos e rimas e choques e sua
pele de esgrima e trapézio e seus
espasmos delírios veludos e suas
escamas de topázio e seus
jogos de dardos e seus
engenhosos crimes de criação e seus
escárnios risos assobios e suas
mortes súbitas e suas
fênixes repentinas
em suas
noites aziagas como tecê-las? em sua
luminosidade de estrelas como temê-las?
O poema transcrito, chamado “as palavras”, ilustra bem a existência de um pensamento tecido pela imagem e pelo ritmo, na imagem e no ritmo, e de um ritmo compreendido fora dos atributos meramente métricos. Observemos que quase todo o texto se constrói sem o uso de verbos, fazendo com que as imagens apontadas por cada palavra conjuguem o pensar sem que necessitem de orações. As palavras-imagens sobrepõem-se umas às outras. Não há vírgulas, pontos finais. Os versos parecem nascer num fluxo contínuo e, na mesma ânsia e velocidade, o próprio título do poema já é seu primeiro verso.
Ao optar pelo minimalismo dos verbos e pontuações, o poeta maximiza a estrutura fônica e melódica. Convida-nos a uma leitura num só fôlego, incitando-nos a perceber, no ritmo textual, seu ritmo corporal. Temos a sensação de que o eu lírico é tomado de modo avassalador pelas palavras, que vão brotando de suas mãos, de seus olhos num sem-fim de “eletricidades”, de choques nervosos, dos nervos ao cérebro. Uma tensão provocada pelos enjambements instaurados com o uso dos pronomes possessivos (“seus”, “sua”, “suas”) e pelo revezamento entre versos mais longos e mais curtos, impregnados de assonâncias (“súbitas e suas”), aliterações (“nêutrons elétrons eletricidades”, “rios de riscos e rimas”), acentuações agudas (“oráculos”, “mistérios”, “topázios”, “escárnios”, “súbitas”) e rimas internas e ricas (“estrelas” com “tecê-las” e “temê-los”).
Esse tipo de construção em que se percebe uma irregularidade métrica relaciona-se com o fato de que “o universo é um sistema de ritmos contrários, alternantes e complementares” , percebido como união, separação e re-união de ritmos diversos. A poesia de Tanussi traz em seu bojo a consciência de que todas as concepções cosmológicas do homem brotam da intuição de um ritmo original e, por isso, o poeta usufrui ao máximo da união entre ritmos díspares, dissonantes, imagens discrepantes, pensamentos conflitantes na amorosa arena de seus poemas.
Esta, a grande diferença deste Exercício do Olhar : como nos livros anteriores, a poesia de Tanussi Cardoso mostra-se novamente empenhada em versar sobre o tempo (e o que nele nos inquieta e a inquieta: o amor, a morte, a linguagem), mas agora por um novo caminho. Pela via de uma poética do olhar, de um olhar poético a projetar no mundo o corpo inteiro.
Paradigmático dessa leitura, o poema transcrito “exercício do olhar” oferece, nos versos “o olho paradoxal da contradição ”, “o olho de Deus no centro do furacão”, “o olho da cidade fragmentada”, “o olho da morte anunciada” e o “o olho que parte de mim para o outro / ou vice-versa” a possibilidade de articular aquilo que estruturamos como faces da poesia tanussiana (qual delas se chama / amor? / quem em nós se diz a / morte? / qual acende a vela do / templo? ) com a temática da ocularidade e da corporeidade até aqui desenvolvida.
3. Corpo e totalidade: “o olho paradoxal da contradição”
Razão e emoção, corpo e mente, corpo e espírito, bem e mal: na história do Ocidente, fomos educados a pensar(-nos) sob a forma de dicotomias. Mas ao tentar nomear, classificar, separar – para ordenar – as coisas e o mundo, a linguagem produz sempre o inclassificável, o desordenado, o não ordenável, a própria desordem. “A ambivalência é uma desordem específica da linguagem, uma falha da função nomeadora (segregadora) que a linguagem deve desempenhar”, diz o sociólogo Zygmunt Bauman , atento à contemporaneidade. Para ele, a modernidade seria a busca da ordem, quando, ao contrário, a condição de seres ambivalentes – desordenados – é o que nos definiria:
A ordem é o contrário do caos; este é o contrário daquela. Ordem e caos são gêmeos modernos . Foram concebidos em meio à ruptura e colapso do mundo ordenado de modo divino, que não conhecia a necessidade nem o acaso, um mundo que apenas era , sem pensar jamais em como ser (...) Podemos pensar a modernidade como um tempo em que se reflete a ordem – a ordem do mundo, do habitat humano, do eu humano e da conexão entre os três.
Consciente de que a ambivalência é o alter ego da linguagem e sua companheira permanente (e, com efeito, sua condição normal), o poeta Tanussi Cardoso pensa o fazer poético pela lógica – ou melhor, pela falta de lógica ou, ainda, segundo um para além da lógica – das ambivalências e contradições. Uma vez que, para ele, a poesia é um exercício do olhar (e do corpo inteiro, conforme atentamos), pensar a ambivalência do poético é confundi-lo com a ambivalência da própria imagem poética, da própria percepção visual criadora.
O poeta mexicano Octavio Paz escreve que “a imagem resulta escandalosa porque desafia o princípio da contradição: o pesado é leve. Ao enunciar a identidade dos contrários, atenta contra os fundamentos de nosso pensar” . Desse modo, ao salientar os paradoxos da condição humana e da própria língua, o poeta busca resgatar a desordem originária em que estamos mergulhados, submetendo a pluralidade do real a uma unicidade. Relembrando o fragmento transcrito de Bauman, a poesia de Tanussi volta-se para “um mundo que apenas era ”, isto é, para uma desordem na qual qualquer ordenação possível viria, única e exclusivamente, de uma estância divina. E daí se justificaria, mais uma vez, a relação, marcante em seu trabalho, entre poética e Deus.
No poema “a casa”, por exemplo, vislumbramos a aproximação de realidades opostas que, enfim, desaparecem em favor de uma terceira realidade, sem jamais romperem com as duas primeiras imagens (realidades) originais:
o quarto
frestas no porta-retratos
cabides/hiatos
peixes em desova
ranhuras/raízes
eis o quarto
ou a cova?
a sala:
tintas extintas
rasuras/chãos/diques
plantas nos cabelos
valsas/espelhos
eis a sala
ou a jaula?
a rua:
luz em órbita/pele
lama/luz/degredo
cal/cão/pó
tartaruga/enterro
eis a rua
Na construção desse poema, Tanussi novamente opta pelo uso quase exclusivo de substantivos, imagens substantivas, com quase nenhum apoio verbal (nota-se apenas o recurso enfático de “eis”) e isento de adornos adjetivos. O uso de barras entre as palavras (elas mesmas cênicas no texto, tão imagéticas quanto os nomes que a apóiam ) permite que os significantes se confundam. Instauram ora uma aproximação fônica (percebida entre “retratos” e “hiatos”; “tintas” e “extintas”; “cabelos” e “espelhos”; “desova” e “cova”; “degredo”; “medo” e “enterro”; “cal” e “cão”, entre outros exemplos de assonâncias e aliterações), ora uma aproximação e identificação semântica, não necessariamente previsível (como entre “luz” e “lama”; “cabides” e “hiatos” e como se dá, de fato, em todo o poema, já que todas as palavras e sentidos se confundem, multiplicando-os na torrente rítmica das imagens).
Entretanto, gostaríamos de chamar a atenção para a conjunção alternativa “ou” que eclode em cada uma das três perguntas-chave do poema. Ao indagar “ eis o quarto / ou a jaula? ”, “ eis a sala / ou a jaula? ” e “ eis a rua / ou o medo? ”, o eu lírico deixa a resposta em suspenso precisamente porque as cenas propostas são semanticamente imprecisas. Não há como optar, nas imagens poéticas flagradas, entre “quarto” e “jaula”, entre “sala” e “cova”, entre “rua” e “medo”, haja vista que cada um dos campos de significação se embaralham e remetem-se a uma unidade dentro da multiplicidade sígnica que indicam. O “quarto” passa a ser “jaula”; a “sala”, uma “cova”; a “rua”, o “medo”. Contudo, “quarto” ainda continua a ser “quarto”; “sala” não deixa de figurar como “sala”. Nem “rua” perde sua característica de “rua”. Consoante Octavio Paz, na imagem poética, “isto é isto e aquilo é aquilo; e ao mesmo tempo, isto é aquilo” . O mexicano defende que negação e afirmação ocorrem simultaneamente na poesia e em função complementar de seu oposto.
Por isso, em Tanussi – a exemplo de toda poesia – cada verso é desejo, já que aspira à supressão das distâncias. Não compara nem mostra semelhanças e, sim, revela – provoca – a correspondência última de objetos e sentidos que nos pareciam irredutíveis.
Tal concepção de mundo e de fazer poético aproxima Tanussi, ainda na pista de Paz, do pensamento oriental, ao invés do dicotômico pensar ocidental assinalado por Zygmunt Bauman. No Oriente, não se decide entre isto ou aquilo , mas se ratifica uma conjugação entre isto e aquilo . Conta-nos Paz: “Já no mais antigo upanixade se afirma sem reticências o princípio da identidade dos contrários: ‘Tu és mulher. Tu és homem (...) Tu és o pássaro azul-escuro e o verde dos olhos vermelhos'” . Logo, se o poeta parecia desconfiar da conjunção “ou” no poema “a casa”, passa a sublinhar, no emblemático “certas respostas”, a dimensão conjugadora da linguagem, na qual os contrapontos se abraçam num gesto de inclusão irrestrita:
pelo prazer, pelo desprazer
para experimentar e doer
para de amor não morrer
para ficar de bem comigo, pra ficar de mal comigo
pra ficar comigo
(...)
por tudo que é certo e que medra
por tudo que é bom e se enterra
(...)
pela aventura, pela desventura
pela descontrução da morte,
pela arquitetura da vida
pelo humano
pelo que está por trás do pano
pelo sagrado, pelo profano
por deus e o diabo-a-quatro
pelos santos sem pecado
pelo pecado
pelo absurdo, pelo susto
porque acredito no sexo e no parafuso
pela inútil beleza do nome
porque creio no pai, na mãe e no lobisomem
porque invento o que digo e inverto o que sinto
porque existe o osso e o paradoxo
porque tenho culpas ancestrais
porque acredito em Deus, e não
pela insônia
porque respiro o sono dos injustos
pela estultícia
pela agonia de sobreviver a tudo
porque sou funcionário público
pelas notícias do rádio
pelo concreto querer, pelo poder abstrato
pela explosão do desejo, pela intimidação do ego
por dinheiro, por sucesso
pela máquina que forja o que vomito e piro
porque suspiro
pelo que está à margem, na igreja,
na prisão e no hospício
porque lírico
porque cínico
porque perverso
porque mar
porque deserto
por ser único
e ser primevo
porque escravo
porque liberto
A começar pelo título, “certas respostas” explode em ambivalências e atenta para o fato de que o “poema é linguagem em tensão: em extremo de ser e em ser até o extremo” . Ao conceber “certas” como pronome, a expressão “certas respostas” significa “algumas respostas”, “determinadas respostas”, mas também pode sugerir “certas” como adjetivo e antônimo de “incertas”. Afinal, o poeta se impinge ao desafio de responder o motivo pelo qual escreve sem, na verdade, oferecer qualquer razão fixa, estável, consolidada. Desse ponto de vista, mesmo o título já seria uma contradições, pois suas respostas não são “certas” e, sim, incertas sempre – “incertas respostas”, poderíamos reescrever – na medida em que suas causas e motivações se encontram sempre em processo de elaboração, re-elaboração, inacabamento. Cada resposta contradiz a outra, somando cada uma por meio de paradoxos e antíteses complementares: “pelo prazer, pelo desprazer”; “pela aventura, pela desventura”, “pelo sagrado, pelo profano”, “pelos santos sem pecado / pelo pecado”, “pela insônia / porque respiro o sono...”, “pelo concreto querer, pelo poder abstrato”, “porque mar / porque deserto”, “porque escravo / porque liberto”.
Entre os poetas que refletem ou refletiram ensaisticamente o fazer poético, o português António Ramos Rosa se destaca enquanto pensador da poesia como retorno à essência humana. Para ele, tal regresso dar-se-ia com a aliança entre sonho e realidade, bem como entre qualquer par de sentidos aparentemente contrários um ao outro: “É aceitando esta contradição básica, em que se funda o processo de humanização, que será possível entender a verdadeira semelhança do poeta com a fundamental condição do homem humano ”.
No poema de Tanussi, não se trata, portanto, de responder à pergunta por que escrevo? e, sim, exclamar a dificuldade – e mesmo a impossibilidade – de dar nome a todas as coisas, de justificar todos os atos, haja vista que a conciliação de contraposições resultaria em silêncio: “a verdade é uma experiência pessoal. Portanto, em sentido estrito, é incomunicável” .
Em algum momento de sua obra, Paul Valéry já teria salientado que o poema é o desenvolvimento de uma exclamação. Octavio Paz retoma a afirmativa e acrescenta que, entre as noções de exclamação e desenvolvimento, reside uma tensão contraditória que seria, em última instância, o próprio poético:
Poema: orelha que escuta uma boca que diz o que não disse a exclamação (...) A realidade apontada pela exclamação permanece não nomeada: está aí, nem ausente nem presente (...) É uma iminência. O desenvolvimento não é uma pergunta nem uma resposta: é uma convocação. O poema será a revelação daquilo que a exclamação assinala sem nomear. Revelação e, não, explicação Se o desenvolvimento for uma explicação, a realidade não será revelada, mas elucidada e a linguagem sofrerá uma mutilação; teremos deixado de ver e ouvir para somente entender.
Ao criar (recriar) o homem pela imagem, a poesia revela a condição paradoxal humana, levando-o a ser o que é, ou seja, à sua totalidade, sua natureza não disjuntiva. E uma vez que, em nós, “existe o osso e o paradoxo”, a própria referência ao divino, tão marcante no livro, torna-se vítima da contradição: “porque acredito em Deus, e não” talvez seja o verso mais instigante de todo o poema. Sobretudo porque põe também em suspensão e impasse a idéia de que buscar a totalidade humana é encontrar o divino. Ou o inverso: buscar o divino é encontrar a totalidade humana. Como se o poeta, dentro deste único e potente verso, pudesse contradizer todos os outros (e sua própria poesia, seu próprio livro) que remetem à figura de Deus e do elo irrecusável do divino com a vida e a criação: “quando a idéia de um Deus queimava os olhos” , escreve o eu lírico em “fiat lux”, incendiado pela hipótese da existência, no universo, de uma força transcendental e criadora.
Quando relaciona o divino não somente com a totalidade, mas com a condição contraditória em que estamos todos imersos (uma vez que estar relacionado com a totalidade é reunir os paradoxos), o poeta Tanussi aproxima-se ainda mais do Oriente. Dissemos que sua poesia pensa conforme os orientais e agora novamente arriscamos a crer que seu conceito de religiosidade e de Deus também se aproximam das premissas taoístas e budistas. Teria sugerido Gilberto Mendonça Teles no prefácio: “o seu Deus não possui (...) a dimensão respeitosa de um Deus cristão, é muito mais um Deus humano” . Eis o ofício tanussiano, profanamente sagrado (para endossar a contradição) “de como corromper a noite” , “onde os olhos abertos / não vislumbram o Deus” . Onde vislumbrar o Deus é fechar os olhos, caminhar para dentro, silenciosamente, buscá-lo no vazio. Alcançá-lo como um estado, pleno, de vazio. Atitude búdica?!
4. Totalidade e religiosidade: “o olho de Deus no centro do furacão”
O furacão: o caos, a polissemia, a linguagem, a contradição. Deus no centro, descentramento do Deus, diluído no todo, instaurado nas partes, dentro do humano, entre os humanos: Deus tanussiano. Um exercício – também – do corpo inteiro. De re-ligação. De religião. Diz o poeta, religiosamente , no segundo poemeto do grande poema “sobre todas as coisas”:
no início era a Vida.
depois aprenderam os cães
a ladrar
e os homens a chamar o
nome das coisas
e os dedos a cruzar
em nome de
Os versos de Tanussi nos remetem a um tempo anterior à fala, anterior à palavra, a um silêncio original que, para ser concretizado, precisou ser por ela rompido. Em nome de Deus, os dedos cruzam. Acrescentaríamos: em nome de Deus, a palma das mãos se unem em oração, os braços se erguem ao céu, os homens se ajoelham no chão. O corpo inteiro a falar com Deus, a falar Deus, da mesma forma que criar, escrever, é um exercício corporal, de mobilização de todos os nossos sentidos que, enfim, condensam-se e concentram-se no sentido da palavra – matéria gráfica e orgânica, co-extensiva ao existir/sentir/pensar.
Se nos referimos a Deus dentro de um pensamento que conflui as forças contrárias rumo a uma unidade , temos de novo a significação divina na tensão antitética entre o dizer e o calar, no não-dito que está no dito e no dito que se ouve no não-dito : “o que / sem palavras / fala // ou o que / sendo vista / cala” .
O mesmo encontramos no zen-budismo, que se resolve em paradoxos e em silêncio. No taoísmo, por exemplo, a experiência do Tao implica um regresso a uma espécie de consciência elementar em que os significados relativos da linguagem figuram inoperantes, isto é, um retorno aonde onde os nomes não são necessários, ao lugar onde os nomes e as coisas se fundem e são a mesma coisa. Ao lugar, portanto, da poesia, esta “ontologia do nada” , para usar a expressão do português António Ramos Rosa em intertexto com Mallarmé. Em um poema, a palavra se desvincularia de todo preciso significado para ser apenas a expressão do silêncio e do nada, uma pura vibração: “Mas mesmo aqui a significação não foi anulada. O que desapareceu foi a univocidade significativa que passou a ser substituída pela infinita potencialidade da linguagem” . Malarmaicamente falando: dizer nada não é o mesmo que nada dizer. Trata-se do silêncio anterior ao silêncio:
quando caminhávamos
na areia,
os nomes não havia.
havia o mar sem nome.
o céu, as frutas,
as pegadas dos pássaros
e o sonho havia sem nome.
tudo era simples.
simples os homens
O fragmento, que integra mais um dos onze poemetos de “sobre todas as coisas” endossa a busca do poeta pelo antes da palavra, numa espécie de reformulação da genesis bíblica. No Evangelho São João, lemos que “no princípio, era o Verbo” . Em Tanussi não. O Verbo não está no início, mas no meio. Está no durante, no hiato entre um silenciar primevo e um silenciar concomitante e posterior ao que se diz. Silêncio como gesto inaugural, de partidas e chegadas, conforme temos no poema “genesis”:
no princípio foi o Gesto:
o olhar cravado no branco olhar do outro.
olhar de dúvida – nervoso arcordar.
no princípio foi o Gesto:
as mãos alargando-se longas, compridas,
sem qualquer escrúpulo, lassidão ou pudor.
braços fazendo-se mar em busca de areia,
descompromissados de sol, de ar, de lua.
pés pisando em terras inexploradas e nuas.
corpos de músculos incansáveis,
confiante na caça. nos rios, nas matas,
em si, nas águas.
no princípio foi o Gesto:
o amor pela fêmea, mulher ideal e única.
sexo em grutas e frutas: gosto de maçãs.
no princípio foi o Gesto:
a boca subitamente aberta em susto.
o riso frio e brutal do medo do mundo.
O gesto fundador: criação. Tanussi Cardoso em mais um empreendimento metapoético no qual o diálogo com o sagrado se manifesta. Nas referências ao encontro entre corpos, ao sexo, à inquietação e ao movimento dos músculos, ratificam-se vida e poesia como exercícios corporais, quase indiscerníveis entre si, do “olhar cravado no branco olhar do outro”, do “corpo de músculos incansáveis”. Saturado de silêncio, o corpo ganha som e sentido na “boca subitamente aberta em susto”. No grito, na exclamação, na palavra. No poema.
Se a poesia é esta integração erótica (no sentido etimológico de Eros , amor divinatório, cosmogônico ao mesmo tempo que corpóreo, humano), o poeta expande sua percepção para além do próprio corpo. Retoma o pensamento de Merleau-Ponty, no qual se voltar para o mundo ao redor é, a um só tempo, descobri-lo em si mesmo, atado, copulado com o humano, com os “braços fazendo-se mar em busca da areia”.
Por outro lado, é a figura do mar bastante presente nos poemas tanussianos. Nos dois últimos poemas mencionados e transcritos, o universo marítimo é evocado numa espécie de devir do poeta. Conforme no fragmento de “sobre todas as coisas” anteriormente citado, “havia o mar sem nome”, ou seja, havia o homem sem nomes, sem língua, apenas como linguagem gestual, silenciada ou acompanhada por rabiscos, rituais, imagens, grunhidos.
Dessa vibração entre o silenciado e o ruído, o audível e o visível, vivem as ondas. De seu encontro com seu contrári – a areia, a costa. Água e terra em aliança. Na multplicidade de sentidos, ancora o sentido da onda, a linguagem marinha. Vive e ancora, ainda, nesse barulho e desse calar em que resulta a experiência de comunhão entre nós e o entorno, entre nós e nós mesmos:
dizem do mar: barulho
ondas, ressacas, marés, maremotos, marulho
mas o mar que sei
são flores e peixes e brincos e brinquedos
e segredos e sol e seixos e sedas e cores
o mar tem alma doce de amada e pescadores
é verbo quieto
primevo
pegada de romeiros e santeiros
pouso dos olhos dos faroleiros
palavra
levando barcos a mundos que não podemos
é de adeus, o mar
de inventos, de estrelas e de lenços
não é barulho, o mar
Conforme é costumeiro em seus poemas, o poeta revela em “sobre o mar” o pensamento no ritmo, o pensamento sobre a água, na água. Pensamento como água. O devir-mar no devir-poema: repleto de polissíndetos, aliterações, assonâncias e intercalares entre versos longos e curtos, zigue-zague dos sons e imagens. Lemos como se estivéssemos diante do barulho e do silêncio das ondas. Como se estivéssemos diante da imagem-ritmo do mar, de sua plasticidade musical.
Na obra de Tanussi, a figura do mar dá conta deste universo do desconhecido no qual mergulha (“levando barcos a mundos que não podemos”). Universo de mistério (“e segredos e sol e seixos e sedas e cores”), daquilo que está sub-reptício e escrito na cena (“é verbo quieto / primevo”), mas que se remete ao que não é possível ser dito (“não é barulho o mar / : é silêncio”).
A pontuação no último verso sublinha a própria contraposição apresentada pelo poeta. Ao retrucar que o mar “não é barulho” e, sim, “silêncio”, o eu lírico termina seu poema contrariando a expectativa do leitor, rompendo com o caminho original iniciado no primeiro verso. Afinal, até o último momento, um turbilhão de palavras, vozes e barulhos nos singra, até que, ao fim, todo esse ruído se converte no silêncio de seu próprio enigma.
Ao transpor para o último verso os dois pontos – que deveriam, a princípio, figurar no penúltimo –, o artesão lingüístico Tanussi enfatiza materialmente, graficamente, musicalmente, tal desvio de rumo, recobrando o que Theodor Adorno ressaltou acerca dos sinais de pontuação na lírica: “Se a música está obrigada a manter nos signos de pontuação a linguagem, é muito possível que a linguagem está obedecendo à sua semelhança com a música quando desconfia dos signos de pontuação” . O pensador refere-se a uma função musical atribuída a eles, em paralelo aos sinais da partitura, que se autonomizam da sintaxe comum e reestruturam aquilo que se diz. O resultado seria a produção de novas modulações.
O mar, enfim, apresenta a experiência da natureza, vivificadora, meditativa, comungadora e divina. Se não é barulho, mas silêncio, traz nesse pensamento o olho e o espírito de Merleau-Ponty:
O enigma reside nisso: em que meu corpo é ao mesmo tempo vidente e visível. Ele, que olha todas as coisas, também pode olhar a si e reconhecer, no que está vendo então o “outro lado” do seu poder vidente. Ele se vê vidente, toca-se tateante, é visível e sensível por si mesmo .
Nosso pequeno mundo interior e o grande mundo ao redor são apenas um. Nessa unidade, sabemos (Tanussi sabe): não estamos sozinhos. Logo, falar no mar é também olhar para si e reconhecer, no outro lado, nosso poder vidente. Tal qual o mar, somos e não somos barulho. Somos silêncio. E daí resultaria nosso mistério, nossa humanidade e nosso deus, humanizado em nós, dentro de nós e em nossa relação com os outros:
porque todos os mistérios são santos,
não nomearemos o nome das
coisas.
ainda que os desertos floresçam
e o caos das chuvas transborde,
deles, o sangue
Quando o homem percebeu a importância do significado do silêncio, criou a linguagem para segurá-lo e retê-lo. Falar é separar, distinguir e, dialeticamente, vislumbrar o silêncio, evitando-o. Ao individualizarmos o silêncio como algo significativamente discernível, estabelecemos o espaço da linguagem. Se verbo é palavra, é pensamento e se pensamento é silêncio, verbo também é silêncio. Nessa complementaridade que poderia soar apenas como contradição, está o exercício tanussiano de dizer e pensar. Mediante o silêncio, o homem entraria em contato com Deus e, pela palavra, comunica a outros a razão de ser da conversa com Ele, descoberta em cada detalhe do mundo. O poema “oração” revela: “meus olhos buscam / o instinto do silêncio / esvaziam-se / e ajoelham-se / diante das coisas pequenas” .
É pela fala que tornamos as coisas palpáveis. Pelo discurso materializamos o não-dito. Aí residiria a necessidade de poetar, de escrever, de falar, de ecoar em Tanussi, na medida em que essas ações estão sempre resgatando o ausente, o que não está no nome, embora seja indicado por ele. E o eco também é vazio. Se gritamos em uma casa vazia ou em um vale, ele responde. O eco é nada e, ainda assim, fala. E nisso está a literariedade, a palavra não-dita, a atitude zen do budismo . Do tanussianismo. De sua compreensão do que seja o poeta: “aquele que diz o indizível” .
Tanussi parece escrever porque a vida carece do calar para que se torne realmente vida. Afinal, vivemos nossos anos somente imersos no “ruído”, conforme sinaliza a epígrafe de Isabel Allende que abre o primeiro bloco do livro: “Silêncio antes de nascer, silêncio depois da morte, a vida é puro ruído entre dois silêncios insondáveis” .
O olhar-pensar tanussiano sonda ambos os silêncios como se estivesse a criar um terceiro, o do entre , o do ruído, resultado da cópula entre os outros dois: o de nossa origem e o de nosso destino. Não estamos, a cada dia, sempre em recomeço, na origem, ao mesmo tempo que um dia a mais é uma nova direção, um novo destino ? Tal qual o mar dos poemas. Na profundidade das águas, nesse silêncio, nesse inacabamento, nesse inacabável do profundo, está o real do sentido. As ondas seriam apenas as palavras, seu movimento periférico, suas bordas, seu ruído.
Em Tanussi, a experiência do divino como experiência do vazio está também no seu diálogo com a água, na medida em que o poeta pensa a morte pela metáfora do afogado “dividido entre o mar e a secura” . Na medida em que “o suicida / antecipa-se a Deus / corta a natureza / manipula as horas / escreve seu destino” . Por isso, o calar tanussiano é ainda resgatar o deus que está no morto, o morto que está no deus. Morte como índice da existência de um Deus, já que, na poética de Tanussi Cardoso, morrer é continuar vivo. Presente. Em nós. Em nosso tempo e religiosidade, em nosso perpétuo gesto de re-ligamento: “ eles chegam / meus mortos / nunca se apartam” , celebra o poeta em “convite”, convidando-nos também a pensá-los.
5. Religiosidade e tempo: “o olho da morte anunciada”
Ressoa na poesia o filosófico, o re-ligioso. Nossa fala a respeito do livro Exercício do Olhar tem sido, até aqui, abastecida pelo combustível de grandes pensadores e poetas-pensadores, tais como Octavio Paz, Paul Valéry, Antonio Ramos Rosa, que, citados, sublinham o vibrátil casamento entre imaginação criadora, emotividade e reflexão.
Recorrendo ora ao Ocidente, ora ao Oriente, percebemos diversos momentos em que as filosofias se cruzam e misturam-se na poesia. Sobretudo nesta poética tanussiana de que participam. De Merleau-Ponty e Bachelard ao Taoísmo e Zen-budismo, passamos pelos que buscam, tal qual o poeta Tanussi, compreender a existência humana a partir da noção de tempo: os existencialistas.
Com Schopenhauer, pode-se dizer, por exemplo, que a morte é o gênio inspirador dos filósofos. Sem ela, provavelmente a humanidade não teria filosofado. O homem é o único animal metafísico (sabe, por antecipação, da própria morte, ao contrário dos demais animais) e, por isso, sofre para além do presente, nas dimensões do passado e do futuro e se pergunta pelo sentido da existência – exatamente porque sua única certeza é estar destinado a morrer. Mas bem antes, na Parte II do diálogo Fedro , Platão já teria antecipado, na voz de Cícero, que aqueles que filosofam, no reto sentido da palavra, se exercitam em morrer.
Mais do que a leitura de Exercício do Olhar , toda a obra de Tanussi Cardoso (e conhecendo a literatura dos verdadeiros poetas em todos os tempos) nos conduz à premissa de que a morte também seria o gênio inspirador da poesia. Por ser índice do tempo, por ser índice da vida, por afirmar a vida pelo contraponto, pela antítese, já que poesia é, etimologicamente pensando, uma geração, eclosão, ação, vivificação, vitalismo. Enfim: vida. Poesia como dialética sem síntese. Redenção das antíteses. Nunca morte ou vida, mas uma totalidade – “morte e vida num só instante de incandescência” .
Para além das conceituações existencialistas (morte compreendida como mera faticidade em Sartre; morte como principium individuationes em Heidegger; morte como situação-limite em Jaspers; morte como tragédia solitária em Kierkegaard), na poesia teríamos, simples e resumidamente, a morte como vida . Resumida e paradoxalmente, segundo a natureza (i)lógica, polissêmica e totalizante que lhe concerne.
Assim nos submetemos à morte na poesia de Tanussi Cardoso. Tomados por esse mesmo ímpeto de enxergar na finitude uma beleza vivificadora: “... os dias anoitecerão lentamente. / só eu estarei amanhecido, / vendo a junção das montanhas e dos rios. / pleno de auroras e sementes ” .
Justamente porque tudo é transitório e finito, devemos viver cada momento na intensidade; viver cada olhar como se diante do que não terá mais volta, fazendo seres e entes luzirem no seu breve ou longo instante de destaque e movimento: “porque não haverá segunda vez / meus domingos hão de ficar / plantados / na terra ou nos fios / onde se aninham os pássaros” .
No entanto, são a mãe, o pai, os parentes e amigos ausentes a grande motivação de sua mortis poiesis : “morto / meu pai planta árvores / no céu / e venta para que as folhas existam” , louva o poeta à permanência do vívido na morte, em “um poema cantando na noite”.
Não obstante, mais do que reencontrar a família e demais findos, o poetar de Tanussi é um reencontro com os mortos e queridos escritores que, ainda e sempre, agem sobre ele. Todo poeta vive sob influência destes que, em verdade, nunca morrem. Eternizam-se na palavra, no livro e numa espécie de insconsciente poético coletivo, talvez arquetípico, que perpassaria a poesia dos verdadeiros e grandes autores.
Em “A Tradição e o Talento Individual”, o poeta-crítico T. S. Eliot ressalta a criação como um fenômeno de cultura, um continuum destinado a reviver e a preservar a herança poética de épocas históricas anteriores:
... se abordarmos um poeta sem este preconceito, acharemos freqüentemente que não só os melhores, mas os passos mais significativos da sua obra, poderão ser aqueles onde os poetas mortos, seus antepassados, mais vigorosamente afirmam a sua imortalidde (...) A tradição é de significado muito mais amplo. Não pode ser herdada, e se a quisermos, tem de ser obtida com árduo labor. (...) o sentido histórico compele o homem a escrever não apenas com a sua própria geração no sangue, mas também com um sentimento de que toda a literatura da sua pátria, possui uma existência simultânea e compõe uma ordem simultânea. Esse sentido histórico, que é um sentido do intemporal bem assim como do temporal, e do intemporal e do temporal juntos, é o que torna um escritor mais agudamente consciente de seu lugar no tempo, da sua própria contemporaneidade.
Sem a ingenuidade de se querer tão-somente diferente de seus pares, Tanussi Cardoso entrega-se ao árduo labor de conquistar a tradição e afirma-se, no gesto inter e hipertextual, autor contemporâneo . No paradigmático poema “exercício do olhar”, o poeta reconhece em sua face “o olho de Clarice / (...) / o olho na mão de Gullar / o olho das 5 raízes / Cecília Bandeira Murilo Cabral Drummond” , sem contar o diálogo com os artistas plásticos (frisando, na poesia, o pensamento por imagens): “o olho da nudez escondida / das senhoritas de Picasso / o olho azul de Matisse / o olho das banhistas de Cézanne / o olho sonso do sorriso santo de Gioconda” .
Não é pequeno o número de vezes em que o intertexto com um autor morto é explícito. Tanussi recupera o sertão do “tamanho do mundo” em “cântico para Guimarães Rosa” ; o sertão apolíneo de João Cabral de Melo Neto, conforme indica a dedicatória póstuma de “o rio dentro de mim” ; e o social na escrita do já falecido e contemporâneo Moacyr Félix, em “sorte” . Mas não raro a homenagem se destina a escritores ainda vivos, companheiros de sua geração (Viviane Mosé, Salgado Maranhão, Marcus Vinicius e Luiz Horácio Rodrigues, para ficar em alguns exemplos).
Ainda com Eliot, avaliar um poeta é situá-lo entre os mortos. E por isso é possível vislumbrar a face de um Manuel Bandeira no olhar tanussiano, não raro repleto de alumbramento , a vestir o mundo com uma “beleza humilde e áspera”, para citar uma das expressões do crítico David Arrigucci Júnior a respeito da poesia de Bandeira. Um autor que, assim como Tanussi, sentiu a morte arder de perto ao longo da vida. Manuel conviveu com a tuberculose e Tanussi parece bastante afetado pela questão da finitude humana. E além disso, apesar do grande talento, sempre manteve e mantém – bandeirianamente – uma profunda humildade dentro de sua atitude artística. E uma bandeiriana “força calma” na realização de seus poemas, mesmo quando o assunto é áspero e se chama morte. Leia-se em “legado”:
o homem morreu
deixou
o cão / o câncer / o corpo/ o cofre/ os milhos
deixou
o hereditário ódio
para dividir entre
Forte, o poema. E comedido. Condensado. Com o máximo no mínimo. De imagens, palavras, pontuações, quase nenhum adjetivo. Carregado de significado está o pensamento nele articulado. Saturado de pensamento, seu silêncio. E a própria opção pelo uso estrito das letras minúsculas corrobora esteticamente para isso. Nos poemas de Exercício de Olhar , apenas a palavra Deus e nomes próprios vêm acompanhados por iniciais em letras maiúsculas. Por vezes, por uma questão de realce ou de sacralização, o poeta concede um tom maiúsculo a um substantivo comum. É o caso da palavra “Gesto” no poema já comentado “genesis”.
Deixar o texto em minúsculas cumpre com este ofício da contenção, agora em nível gramatical e gráfico, como se escrever dessa forma pedisse que falemos mais baixo, sussurradamente, de maneira que nos escutemos melhor. Como se as maiúsculas gritassem para um leitor cujo mundo já é maiúsculo, gritante, gritado, ruidoso e carecesse de um controle, um zelo, uma limpeza, uma sugestão de tranqüilidade na própria geografia da palavra. Lembremos da epígrafe de Allende: a vida é puro ruído.
A poesia de Tanussi traz no seu bojo esse grande vigor crítico ao mundo contemporâneo. O poema “legado” não dialoga com Bandeira se pensado enquanto olhar crítico e até irônico perante os conflitos humanos. Virá de um arguto Drummond a sapiência ácida de Tanussi, ao mesmo tempo que lírica, ao mesmo tempo que – em outros tantos poemas – refinada imageticamente, ao modo de um Murilo Mendes, representante de uma espécie de “surrealismo à brasileira” . De uma “boca insone da noite mastigando o dia” , para citar o surreal exemplo encontrado em “sobre as horas”. Da “febre rindo dos umbigos” em “um poema cantando na noite”. Das sombras que “velam o sono dos pombos” em “as sombras são” e de tantas outras luzes flagradas no universo audaciosamente imagético de Tanussi.
À semelhança de Murilo, a imagem poética – e divinificada – da poesia de Tanussi Cardoso não consiste em mero visionarismo, em que “a plena fantasia e o mais vulgarmente cotidiano se entrelaçam” , a conceber o verso como “a maior exasperação sonhadora ou alucinada” que o leva à fuga do mundo concreto. Trata-se de uma poesia de ação, destinada a uma luta social, a fim de concretizar e materializar a esperança de acesso ao nosso ser: “que mundos oculturá / em sua textura / o véu incolor da Ísis? // por que crescem os cabelos / depois do corpo morto? // que idade tem o medo?” , pergunta(-se) reflexivamente, exaustivamente o poeta Tanussi em “sobre o humano”.
Tanussi e Murilo não deixam de enfrentar o mundo. Conforme nos demonstra José Guilherme Merquior , o verbo muriliano não é somente grito, indignação contra a miséria do século, mas uma compreensão crítica: “Visionário-observador, é capaz de desenvolver toda uma estratégia de atenção, de alerta e de alarma” . Também observador-visionário-militante é o Tanussi deste Exercício do Olhar , cujo realismo se evidencia na penetração com que escava seus objetos: “a mãe guarda o tempo / nos bordados. // móveis dançam / seus pés ao vento. // quadros nas paredes / se deslocam // vestidos e sapatos se entrincheiram” são versos escavados no penetrante poema “tempo de espera”, a transpor, para a imobilidade dos objetos no espaço, o dinâmica temporal da personagem “mãe”.
Tempo e espaço: dois termos que agora saltam à vista. Em Tanussi Cardoso, um se reflete no outro. Um aponta para o outro. O tempo percebido e re-inventado no espaço, nas coisas, na mutação dos objetos, no imaginário construído sobre as cenas. E a subversão espacial é bem característica da poesia moderna e contemporânea, da qual figura central é o poeta francês Baudelaire, observador não menos atento de sua época.
Tanussi, enfim, com algo de Baudelaire (quando, de fato, todo poeta contemporâneo teria, a seu modo, algo do luminar Baudelaire), também nos oferece “sua capacidade de ver no deserto da metrópole não só a decadência do homem, mas também uma beleza misteriosa” . E se destacamos a delicadeza com que Tanussi poetiza a morte, não menos bela é sua fala acerca da cidade, já que, pensando com o francês, “o maravilhoso privilégio da arte é que o espantoso, expresso com arte, torna-se beleza, e que a dor ritmizada, articulada, preenche o espírito com uma alegria tranqüila” . Mas essa alegria, a cidade e o mundo de hoje não vêem. A cidade não pára. A cidade, fragmentada, não tem tempo de ver. Vê, apenas, em fragmentos.
6. Tempo e espaço: “o olho da cidade fragmentada”
Sem tempo a cidade. Não há mais tempo para habitar a cidade, descobri-la. Walter Benjamin, por exemplo, nos fala da falta de experiência no mundo contemporâneo, no qual os meios de comunicação fazem da informação moeda corrente, flutuante, efêmera, que já nasce pronta para ficar velha e morrer . Retomado pelo italiano Giorgio Agamben, poderíamos ilustrar:
... o dia-a-dia do homem contemporâneo não contém quase nada que seja ainda traduzível em experiência: não a leitura do jornal, tão rica em notícias do que lhe diz respeito a uma distância insuperável; não os minutos que passa, preso ao volante, em um engarrafamento; não a viagem às regiões ínferas nos vagões do metrô nem a manifestação que de repente bloqueia a rua; não a névoa dos lacrimogêneos que se dissipa lenta entre os edifícios do centro e nem mesmo os súbitos estampidos de pistola detonados não se sabe onde; não a fila diante dos guichês de uma repartição ou a visita ao país de Cocanha do supermercado nem os eternos momentos de muda promiscuidade com desconhecidos no elevador ou no ônibus. O homem moderno volta para casa à noitinha extenuado por uma mixórdia de eventos – divertidos ou maçantes, banais ou insólitos, agradáveis ou atrozes –, entretanto, nenhum deles se tornou experiência .
Nesse sentido, a poesia torna-se uma crítica da sociedade e se esforça para interpretar o mundo, experenciar este “universo coletivo dos homens, e seus problemas não apenas a afetam – chegam a criá-la. A primeira pessoa do singular é hoje mais do que nunca uma primeira pessoal do plural” . E depreendemos essa pluralidade, a consciência coletiva de um nós em versos como este, “a cidade não vê, não pára / não há tempo para chorarmos nossos mortos” , do poema “urbe”:
uma louca corre pela rua
e ninguém ouve aquele corpo nu
ninguém sabe o que mostra o olho
faiscando insuspeitada luz
pés atravessam viadutos e dormem
em esquinas, subterrâneos, vãos
como um grito de Munch
pontes solitárias na cidade abandonada
a cidade não vê, não pára
não há tempo para chorarmos nossos mortos
uma dor viva sangra entre dentes e gargantas
vômito que se limpa com a lama dos sapos
tambores ecoam nos verdes montanhosos dos sonhos
corações secos nos desvios
alguém jogado do último andar suja o parapeito
a orquestra noturna dos cachorros
o horror poluído dos rios corta vielas
tudo dói na cidade que nos sustenta e vela
quem, o culpado pelo inverno dos homens?
agônica, uma flor colore um sol desesperado
O poeta descreve seu cenário de “sol desesperado”, luz que já não ilumina, pois vivemos tempos sombrios, de escuridão, de pessoas com fome, desabrigadas (que “dormem em esquinas, subterrâneos, vãos”), com os “corações secos nos desvios” e cuja condição já nem nos assusta, não nos choca mais, dada a banalização da própria pobreza tornada natural, parte de nossa rotina (afinal, “ninguém ouve aquele corpo nu”).
Mesmo assim, para o poeta, “tudo dói na cidade que nos sustenta e vela” e clama que se descubram os culpados pelo “inverno dos homens”, talvez para que paguem o preço. Mas os próprios homens se tornaram inverno. São os responsáveis pelo seu próprio inverno, pelo “horror poluído dos rios”, enquanto os cachorros latem e uivam à noite. Os cachorros é que protestam. Reclamam. Choram, decerto menos indiferentes à tragédia ao redor. No silêncio da noite, tantos outros choros. Inquietude, invernos, gritaria. Mas “as coisas que não diremos / habitam a cidade” e nos convocam, no verbo do poeta, a reencontrar a verdade por meio da busca do silêncio. Da paz original ou, aproveitando o contraponto com “inverno”, de uma possível primavera original.
Ao instaurar um novo andamento da linguagem, ao recriar a vida e movimentá-la dentro de estranhamentos semânticos, sintáticos, estilísticos, a poesia discute valores, aponta para a nossa alienação e se contrapõe a qualquer tipo de gesto opressivo:
os homens apressados
ásperos
angústia de chuva que não molha
os homens correm apressados
vai na frente a poesia
a poesia sempre na frente
Inalcançável a poesia, mas não porque caminha ainda mais depressa e, sim, porque exige um vagar com o qual não está mais acostumado o homem contemporâneo. Exige uma relação de intimidade e mergulho na linguagem, numa época que se esqueceu de como fazer isso. Num momento histórico em que a língua é apenas instrumento, ferramenta e não mais uma finalidade, rito, celebração.
O poético implica uma outra postura perante a vida, ao nos propiciar reviver a experiência neste sentindo benjaminiano, agambeniano, de perder-se na cidade para descobri-la. O próprio Tanussi, em nítido intertexto com Benjamin e Agamben, afirma:
perco-me na cidade
para encontrá-la
as pedras só elas
permanecem futuro
não cobro lugar
nas marquises sobre o sol
entender a cidade
No poema citado, “cidades”, temos de novo a percepção da temporalidade no dado espacial. Os versos “as pedras só elas / permanecem futuro” sugerem mais uma vez a brevidade do homem no mundo. Sublinham o tempo, que tem passado muito rápido para nós (porque não o vivemos realmente) e, com isso, não experenciamos o espaço plenamente. Assim como ocorre com a palavra, dentro da qual é preciso se perder para encontrar seu sentido. Ou seus sentidos. E também são muitos os sentidos da cidade. O título do texto vem no plural: “cidades”. Inúmeras as cidades dentro da mesma urbe. Infinitas as maneiras de entendê-la e buscá-la, procurá-la e encontrá-la. E serão sempre modos provisórios, transitórios de experimentar e conhecer, dada a volatilidade das coisas; dado que só as pedras (e demais entes, seres sem vida) permanecem futuro (não morrem). O eu lírico não cobra lugar “nas marquises sob o sol”, pois lugar algum é fixo, definitivo e infinito. Tornar-se-á passado, quando o que importa é vivê-lo profundamente em seu (breve) presente e como se o fenômeno – poético – consistisse num grande centro de presença e liberdade:
E assim a poesia se descobre na própria emancipação da espécie, como centro de liberdade, função primordial que compete em especial aos poetas defender e desenvolver a bem do homem, contra todas as alienações, contra todas as opressões, contra todas as formas de desumanização. Só assim a poesia é útil. Todo o verdadeiro poeta – esse ser “inutilizável” – o sabe.
Contra todas formas de opressão e alienação, a cidade poética de Tanussi a nos versar sobre a experiência do choque na metrópole brasileira e carioca, conforme ocorrera na França de Baudelaire e agora reemerge, com outro timbre, outra bravura. Exercício tanussiano de olhar o espaço com quem, na verdade, olha o tempo. E se re-conhece. Corpo emoldurado pelo urbano. Emoldurar-se: unir-se, atar-se, entregar-se – gesto inquestionável de amor.
7. Espaço e amor: “o olho que parte de mim ao outro ou vice-versa”
Na contra-corrente do que fizemos em cada tópico (recuperando, na abertura, sempre um dos versos do poema “exercício do olhar”), poderíamos ter simplesmente batizado este último de “conclusão”, já que se trata mais de um arremate do que, propriamente, de um item de desenvolvimento.
Porém, na contra-corrente da escrita acadêmica, optar por “conclusão” seria, no mínimo, contraditório num estudo em que o olhar é um exercício, ou seja, um movimento, um desvio contínuo de percepções – razão pela qual a poesia nada conclui, apenas suspeita, exclama, reclama, cala, indaga, inventa. E a crítica é também um exercício, uma ginástica, oxalá poética, com exclamações se desenvolvendo segundo um caminho re-criador, porque interpretativo.
Assim como as “cidades” de Tanussi, entender o fazer poético é buscá-lo. Sempre. E é sempre um recomeço essa busca em que nada é encontrado por completo, senão a sensação de que estamos ainda longe do misterioso objeto sobre o qual queremos nos debruçar. Se no espaço poetizado, cada metáfora inaugurada é um gesto de amor (de aproximação de universos distantes, de transporte e fusão de gêneros e espécies diferentes, de desejo de vida e fertilidade), também no espaço da crítica um campo poetizável.
Aqui misturamos o teórico e o poético na mesma amorosidade com que partimos à poesia estudada, fazendo dela nosso sujeito, permitindo que ela, na mão dupla, nos estude. Fenômeno copular do “olho que parte de mim ao outro ou vice-versa”, conforme citamos no título deste tópico (ou topos utópico?) que jamais quer parecer fechamento, mas permitir uma abertura.
Abrir e abrir-se estão, por excelência, na raiz de todo processo gerador, cognoscível, criador, sensível, intelectual. Conhecer-sentir-versar-gerar o mundo é instaurar, nele e em nós, uma abertura. É estar disponível para que ele nos conheça, nos revele, nos releve, gerando em nós a poesia, a abertura que nos fará infinitos para abri-lo infinitamente.
Por estar em sintonia com o infinito, com as múltiplas faces do homem e da vida (lembremo-nos, mais uma vez, dos versos “quantas faces temos? / qual delas se chama / amor? / quem em nós se diz a / morte? / qual acende a vela do / templo? ), Tanussi Cardoso concede ao exercício poético uma motivação biológica, porque o amor não é cultural e, sim, natural, ecológico, ecosófico, a atravessar toda a natureza: “imaginemos o ar solto na atmosfera // imaginemos o amor / assim como ar” .
Por conjugar o amor, no poeta se diz a morte e nela se diz o tempo, o templo. É o amor o silêncio pulsante nas reticências invisíveis de cada pergunta acerca de quantas faces temos, de cada desejo de saber o porquê da face das coisas, de desejar as coisas sem saber o porquê, de desejar sem ver a face: de desejar o desejo porque amar é amar o amor e nisso consiste o segredo. Sua “morada”, nossa “morada” e que é título de um dos mais belos poemas do livro:
ali, onde os girassóis aprendem a dor do sol
o mar salga as águas primevas
e os peixes aprendem guelras e escamas.
onde o primeiro homem sangra o primeiro dente
e sacia a sede do próximo.
ali, onde os jardins sonham suas texturas de seda
a primeira palavra se pronuncia
e a primeira lágrima mancha a face serena.
onde os insetos queimam peles e copulam flores, frutas e mel.
ali, onde se ouve o nome que será seu:
escolhido, o criado, o nome que será chamado Eu.
onde as estátuas morrem
pedra e amálgama
e se fazem alma.
ali, no morder das línguas, no arder das chuvas
onde se reproduzem sombras e auroras
e o silêncio se faz poema e ilumina a Terra.
onde Deus habita e dança,
bafeja o Seu Hálito
e alivia a Sua Febre.
ali, dentro dos umbigos, onde se ordenam Tempo e Movimento.
no oco, onde explode e vive – único – o azul.
no abismo, onde reverberam os instintos
é que o Amor – nascedouro
cresce belo – e a tudo inunda .
Os versos de “morada” são um bom exemplo de que “o poeta não quer dizer: diz . (...) O sentido do poema é o próprio poema. A imagem não explica: convida-nos a recriá-la e literalmente a revivê-la” . Por esse motivo, gostaríamos de estender o que o poema atribui ao amor à própria poesia de Tanussi; reinventar cada imagem como se a remetêssemos ao próprio fazer poético tanussiano. E, ainda, como se remetêssemos ao próprio Tanussi, unanimidade não apenas como poeta, mas – para quem o conhece – como ser humano. Por isso, não está livre de leituras que misturem vida e obra, de que julguem esta segundo aquela, na irradição-laço do amor que as aproxima e funde:
no oco, onde explode e vive – único – o azul.
no abismo, onde reverberam os instintos
é que a poesia de Tanussi (e o próprio Tanussi) – nascedouros
crescem belos – e a tudo inundam
.... inundados de tantas filosofias, pensares, vieses, caleidoscópios, incertas respostas, reticentes perguntas, falantes silêncios, cegos videntes que fazem desta poética do olhar uma das mais densas produções contemporâneas, ainda pouquíssima conhecida por boa parte do público e da academia. Que ambos possam, enfim, olhá-la neste ofício sempre saudável de exercitar o corpo, para que, até o sempre, sigam e sigamos perguntando: quantas, quantas faces temos?
* Poeta, jornalista, ensaísta, mestrando em Poética pela UFRJ eautor dos livros Transversais , Sete mil tijolos e uma parede inacabada e do premiado por uma gênese do horizonte .
CARDOSO, Tanussi. Exercício do Olhar . Rio de Janeiro: Fivestar, 2006, p. 136.
VALÉRY, Paul. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1999, p. 198.
Conforme já quis o crítico português Eduardo Lourenzo, “a Crítica reivindica o estatuto de uma função poética (...) a intenção visível que desde cedo me norteou foi a de apagar uma distinção ao mesmo tempo escolar e escolástica – mas bem sintomática da existência cultural burguesa interiormente cortada de sua profunda pulsão unitária – entre criação literária e crítica, entre filosofia e poesia”. (LOURENZO, Eduardo. Tempo e Poesia . Lisboa: Relógio d'água, 1973, p. 21).
O RioLetras , editado mensalmente pela jornalista Júlia Fraga, é distribuído gratuitamente em livrarias e centros culturais. Conta com a colaboração de diversos escritores da cidade do Rio de Janeiro, entre os quais se destacam os poetas Marcus Vinicius, Tanussi Cardoso, Laura Esteves, Elisa Flores, Victor Farinha, além de professores de literatura, como Déa Mesquita e Cléa Corrêa de Mello, entre outros.
WORDSWORTH, William apud MEQUIOR, José Guilherme. A razão do poema, Topbooks, 1996, p. 191.
CARDOSO, Tanussi. Op. cit., p. 19.
PESSOA, Fernando. Obra poética . Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1976, p. 144.
POUND, Ezra. O ABC da Literatura . 1ª ed, São Paulo: Cultrix, s/d.
BACHMANN, Ingrid. apud LINS, Vera. Poesia e Crítica: Uns e Outros. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 46.
CARDOSO, Tanussi. Viagem em torno de . Rio de Janeiro: 7Letras, 2000.
CARDOSO, Tanussi. Exercício do Olhar . Op. cit. p. 127.
A religiosidade da poesia de Tanussi se remete ao significado original do termo “religião”, do latim religio e religare : tornar a ligar. Carl Jung, por exemplo, via a religiosidade como função natural e inerente à psique. Religião mais como atitude da mente do que qualquer credo. O consciente e o inconsciente existiriam em estado de interdependência e o inconsciente pessoal estaria ligado a um inconsciente coletivo que revelaria as conexões do indivíduo com o todo. No âmago da psique se encontraria o arquétipo de Deus. Para Jung, sem a experiência vivida dos contrários, não seria possível a experiência da totalidade e do acesso interior às figuras sagradas.
CARDOSO, Tanussi. Op. cit., p. 50.
Em “O Fim do Poema”, o filósofo italiano Giorgio Agamben defende que a existência do enjambement é o que define um poema e o difere da construção em prosa: “Pois o que é o enjambement senão a oposição entre um limite métrico e um limite sintático, uma pausa prosódica e uma pausa semântica? Portanto, será chamado poético o discurso no qual essa oposição for, pelo menos virtualmente, possível... Em outro trabalho, propus dar o nome de versura – do termo latino que indica o ponto no qual o arado faz a volta, ao final do sulco – a esse traço essencial do verso que, talvez mesmo por ser tão evidente, permaneceu inonimado entre os modernos”. (AGAMBEN, Giorgio. Trad. de Sérgio Alcides. p. 142-143).
Não bastasse a sugestão antitética dos signos verbais, o livro ainda vem acompanho por páginas de folha na cor preta e texto escrito em branco. Na própria semiótica visual da coletânea, temos o jogo entre claro e escuro, dia e noite, motivado pelo revezamento gráfico entre o branco e o preto.
O poema “óvulo I”, que abre o primeiro bloco “O Tempo”, já consiste em metapoesia: meu poema / larva: / que bicho se abrirá em / palavra? (CARDOSO, Tanussi. Op. cit., p. 37). Sublinhando a circularidade e organicidade do livro – e da unicidade identitária entre tempo e poesia –, o poeta fecha sua coletânea com “óvulo II”. Assinala, no bloco da morte, a força vivificadora do poético: “a cada poema / que se faz / adia-se a morte / até a manhã / de um novo / poema” (Id., ibid., p. 141).
Na própria raiz grega da palavra poesia, poiesis , está o verbo poïen , que significa fazer aparecer o que não havia antes, de modo que, no próprio aparecer, o fenômeno ainda resguarde um campo de forças de não aparecimento.
VINICIUS, Marcus. Manual de Instruções para Cegos . Rio de Janeiro: 7Letras, 2004.
CHKLOVSKI et al. Teoria da Literatura – Formalistas Russos . São Paulo: Ed. Globo, 1978, p. 3.9
POTEBNIA apud CHKLOVSKI, Ibid.
SIMÕES, Reinério. A imaginação material segundo Gaston Bachelard . Dissertação de Mestrado em Filosofia. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1999.
CARDOSO, Tanussi. Op. cit., p. 123.
MANDELSTAM, Ossip apud LIMA, Luis Costa. “Poesia e Experiência Estética”. Em: Intervenções . São Paulo: EdUSP, 2002, p. 53.
CARDOSO, Tanussi. Op. cit., p. 99.
VALÉRY, Paul. apud LINS, Vera. “Por outro lado”. Em: Poesia e crítica: uns e outros . Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 153.
LISPECTOR, Clarice. Água Viva . Rio de Janeiro: F. Alves, 1993. p.14-15. [Grifo nosso]
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito . Rio de Janeiro: Grifo Edições, 1969.
Id. Fenomenologia da Percepção . São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 142.
PAZ, Octavio. El Arco e la Lira . 3ª ed. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1990, p. 123. [Tradução nossa]
Id., ibid., p. 37. [Tradução nossa]
CARDOSO, Tanussi. Op.cit., p. 49.
PAZ, Ocativo. Op. cit. p. 57 [Tradução nossa].
Id., ibid., p. 26 [Tradução nossa].
CARDOSO, Tanussi. Op. cit., p. 107.
PAZ, Octavio. Op. cit., p. 59. (Tradução nossa)
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência . Trad. Marcos Penchel. São Paulo: Jorge Zahar, 1999, p. 9.
PAZ, Ocatvio. O Arco e a Lira. Trad. Olga Savary. São Paulo: Nova Fronteira, 1982, p. 120.
CARDOSO, Tanussi. Op. cit., p. 83.
Para Valéry, uma página já consiste numa imagem. Octavio Paz, por sua vez, caracteriza por imagem toda forma verbal, frase ou conjunto de frases que o poeta diz e que, unidas, compõem um poema (PAZ, Octavio. Trad. Olga Savary. p. 119).
PAZ. Ocatvio Paz. O Arco e a Lira . Op. cit., p. 121.
CARDOSO, Tanussi. Op. cit., p. 38-40.
PAZ, Octavio. O Arco e a Lira . Op. cit. p. 135.
ROSA, Antonio Ramos Rosa. Poesia, liberdade livre . Lisboa: Livraria Moraes, p. 24
PAZ. Octavio. O Arco e a Lira . Op. cit., p. 127.
PAZ, Octavio. El Arco e la Lira . Op. cit. p. 46. [Tradução nossa]
CARDOSO, Tanussi. Op. cit., p. 56.
Citamos Octavio Paz e, em outro momento deste estudo, Carl Jung para defender a concepção de um Deus como consciência da totalidade oriunda da experiência dos contrários. Muitos outros pensadores, porém, teriam refletido a partir de pressupostos semelhantes. O próprio Platão, que aparentemente estaria em contraposição às holísticas filosofias orientais, escrevera em seu diálogo Íon que a poética é holos , um todo, e que os rapsodos – assim como os poetas autores das epopéias – seriam seres inspirados, entusiasmados (cheios de um deus – de um deles, já que na Grécia são vários os deuses no Olimpo) a manifestar essa verdade originária, essa totalidade ou, ainda, usando o termo grego freqüentemente traduzido por “pensamento” (mas cuja tradução não dá conta de toda a sua dimensão holística, trans-espacial e trans-temporal), dianoia – potência cosmogônica que atravessa todos os viventes.
ROSA, Antonio Ramos. Op. cit., p. 42
CARDOSO, Tanussi. Op. cit., p. 44.
Bíblia Sagrada. Novo Testamento . São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, p. 99.
CARDOSO, Tanussi. Op. cit., p. 69.
CARDOSO, Tanussi. Op. cit., p. 72.
ADORNO, T. W. “Sinais de pontuação”. Em: Notas de literatura I . Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades, Ed. 34, 2003.
MERLEAU-PONTY, M. O olho e o espírito , Rio de Janeiro: Grifo Edições, 1969, p. 35.
CARDOSO, Tanussi. Op. cit., p. 41
Compreender o nada, o vazio no zen-budismo é entender o que os budistas chamam de quatro nobres verdades (tudo é dukkha , sofrimento; a origem do sofrimento é o tanha , o desejo, que se manifesta em tudo; cessar o sofrer é a nirodha , que busca compreender o sofrimento, por meio do magga , do caminho, senda que conduz ao saber, ao nirvana) . Ao vivermos, verificamos que tudo passa, tudo é transitório, é movimento. O vazio é a lei da impermanência, da mutabilidade de todas as coisas e que, por isso, elas nos convidam a fundamentá-las. A meditá-las. E zen (do japonês zen'na , que, por sua vez, deriva do chinês chan , oriundo do chinês arcaico chan'na , cuja correspondência em sânscrito é dhyana , de origem páli jhanna ) significa meditação. E meditação é silêncio. O meditar poético de Tanussi tem dessa busca por uma compreensão que nunca será uma trilha de dogmatização, mas de transitoriedade. Ao pensar o tempo, a efemeridade das coisas, a morte, o sofrer , o poeta recorreria ao silêncio, ao próprio estado de Buda, de Deus interior, que o tranquiliza e o leva ao nirvana – seu entrelaçar com todas as coisas do mundo, trazendo, mesmo nos poemas de dor, a delicadeza, a calma, seu zen tanússico, seu búdico caminho do meio, entre os paradoxos, na zona de permeabilidade e fusão de cada um deles.
CARDOSO, Tanussi. Op. cit., p. 88.
Paul Celan traz em sua obra esta aliança: poesia e pensamento se casam na premissa de que falar a verdade é falar a sombra, é se apoiar em inconsistências, na procura de um lugar que busque a identidade entre origem e destino: “Sempre quando dialogamos assim as coisas, estamos igualmente numa questão que leva a sua origem e a seu destino: uma questão que não termina, que permanece aberta, que faz sinal em direção ao aberto, ao vazio, ao livro – estamos longe” (CELAN, Paul. apud LINS, Vera. Op. cit., p. 31).
CARDOSO, Tanussi. Op. cit., p. 127
PAZ. Octavio. El Arco e la Lira . Op. cit. p. 156. [Tradução nossa]
CARDOSO, Tanussi. Op. cit., p. 135.
ELIOT, T.S. Ensaios de doutrina crítica . Lisboa: Guimarães Editores, s/d , p. 22-23.
CARDOSO, Tanussi. Op. cit., p. 90-91.
ARRIGUCCI, David. O Cacto e as Ruínas – A poesia entre outras artes . São Paulo: Editora 34.
CARDOSO, Tanussi. Op. cit., p. 131
CARDOSO, Tanussi. Op. cit., p. 55.
MERQUIOR, José Guilherme. “Murilo Mendes – ou a poética do visionário”. Em: A Razão do Poema . Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, p. 69.
CARDOSO, Tanussi. Op. cit., p. 139.
CARDOSO, Tanussi. Op. cit., p. 61.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna . São Paulo: Duas Cidades, 1978. p. 35.
BAUDELAIRE, Charles apud FRIEDRICH, Hugo. Op. cit., p. 41.
CARDOSO, Tanussi. Op. cit., p. 89.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas – Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
AGAMBEN, Giorgio. Infância e História; destruição da experiência de origem da história. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p. 21-22;
MERQUIOR, João Guilherme. Op. cit., p. 202
CARDOSO, Tanussi. Op. cit., p. 85.
ROSA, Antonio Ramos. Poesia, liberdade livre . Lisboa: Livraria Moraes, 1962, p. 56.
CARDOSO, Tanussi. Op. cit., p. 90.