O anjo ancorado , de José Cardoso Pires:

ideologia e subversão em tempos de ditadura

 

 

Francesco Jordani Rodrigues de Lima

Mestrando em Literatura Brasileira/UFRJ

 

 

Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente um velho cravo para mim
Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente n'algum canto de jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, como é preciso, pá
Navegar, navegar
Canta primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente algum cheirinho de alecrim.
(Chico Buarque, Tanto mar )

 

 

1 - Introdução:

 

O presente ensaio tem por objetivo demonstrar como José Cardoso Pires se insere no relevante painel narrativa neo-realista portuguesa com o romance O anjo ancorado (1958). Trataremos a questão em função do estabelecimento de diálogos entre estudiosos da obra. A fim de favorecer a clareza da exposição, subdividimos o texto nos seguintes itens: Cardoso Pires e a ditadura salazarista , a técnica narrativa e a palavra em O anjo ancorado , o(s) narrador(es) cardoseano(s) , personagens ancorados – Guida, João e “os outros” , curto espaço, curto tempo narrativos e considerações finais . Ao longo do estudo nos posicionaremos a respeito das análises dos autores, procurando apontar os elementos de convergência e divergência entre as interpretações e, por fim, descreveremos algumas reflexões suscitadas pelo debate.

 

 

2 - Cardoso Pires e a ditadura salazarista:

 

 

O escritor Paulo Castilho definiu o autor de O anjo ancorado com as seguintes palavras: “uma voz de coragem quando ter coragem não era cômodo. José Cardoso Pires, um homem igual à sua escrita: a verdade”. Soma-se a esta definição a análise de Eduardo Prado Coelho no que tange ao estilo de escrita cardoseano: “marxista e revolucionária, é esta uma escrita mitificadora e cética” (Coelho, 1986, p.XVII). Certamente, ser um corajoso marxista, enunciador de um discurso de crítica à hegemonia do Estado Novo que tanto perseguiu e matou os inimigos do regime salazarista não era tarefa fácil, tampouco “cômoda”.

Mais segura fora, sem dúvida, a posição contemplativa e alienada da grande maioria da burguesia portuguesa (não cito a população pauperizada, já tão oprimida em diversos campos). Esta postura, obviamente, contém em si medo, descrença e frustração, até certo ponto, compreensíveis. Cardoso Pires, entretanto, manteve-se ativo. Como representante da geração que prolongou a estética neo-realista marcada pelo forte compromisso ideológico e por denúncia de cunho político-social, o autor tinha como firmes pressupostos, entre outros: “desmontar o fenômeno da alienação, definindo-o, investigando-lhe as causas e (...) insinuando caminhos e propondo aberturas para sua superação” (Torres, 1977, p.39).

 

 

3 - A técnica narrativa e a palavra em O anjo ancorado :

 

 

A narrativa cardoseana mescla várias práticas ficcionais. A de caráter neo-realista (que não descarta a experimentação com o nouveau-roman ) e a alegórica são as mais presentes na obra aqui analisada. Estas “práticas ficcionais” ora denominadas “técnicas narrativas” de Cardoso Pires foram extremamente inovadoras dentro do contexto estético-pragmático neo-realista; por motivos diversos: pela “descoberta de outros universos culturais e novas sensibilidades artísticas” (Petrov, 2003, p.283) após a 2ª Guerra Mundial; pela originalidade, conseqüente das experiências recém adquiridas, “[empreendidas] com uma nova intencionalidade na literatura portuguesa” (Torres, 1977, p.187) e no próprio estilo cardoseano com: “a adoção [de uma linguagem] descomplexada em termos socioculturais” e a criação “de um novo modo de observação e representação [de seu tempo]” (Petrov, 2003, p. 283 e 285, respectivamente).

Assim “contextualizados”, partiremos para os exemplos ocorridos em O anjo ancorado baseados nas técnicas narrativas supracitadas: a neo-realista experimental e a alegórica (que por estarem separadas não deixam nunca de interagir).

No que diz respeito à narrativa, Cardoso Pires introduziu novas formas de expressão que acabaram por caracterizar a identidade seu texto, como:

 

O aprofundamento da técnica cinematográfica pela larga exploração de travelling, com a deslocação do olhar/câmera sobre os espaços, palco de diferentes ações: acentuando aproveitamento da linguagem oral , não só posta a serviço das personagens, mas utilizada também pelo narrador; (...) organização seqüencial por alternância, com o abandono do princípio de causalidade, a delinear uma complexa montagem narrativa. (Petrov, 2003, p.286)

 

Deste modo, apresentaremos um exemplo deste “olhar” tal qual uma câmera em O anjo ancorado quando se dá a descrição do angulo de visão da mãe de Ernestina em relação a única rua por onde passariam os turistas em São Romão:

 

“Daquele ponto era impossível ver-se o descampado porque a rua era torta, cheia de cotovelos. Mas via-se a taberna ou, pelo menos, parte da taberna donde se alargava uma vista que era o fim do mundo sobre o descampado, as falésias e o mar.” ( O anjo ancorado , 1977, p.132)

 

Ou, este prisma cinematográfico em forma de “cenas” que se sucedem regularmente, acentuando assim a brusca diferença social entre os personagens, como observamos nos capítulos XV, XVI, XVII e XVIII. Repare no exemplo a seguir, como, estrategicamente, o narrador opõe por meio de alternância o velho que caça um perdigoto por sobrevivência enquanto João desbrava o mar à procura de prazer pessoal e afastamento do mundo real:

 

XV

Correu-lhe no encalço. Em menos de nada, velho e perdigoto encaravam-se, tolhidos de medo , na ponta de uma falésia.

XVI

Pelo carreiro a prumo, o caçador [João] do oceano carregava às costas o peixe fabuloso . ( O anjo ancorado , 1977, p. 93-95) (grifo nosso)

Em seu recente estudo acerca de O anjo ancorado , Monica Figueiredo toma como ponto de partida de seu trabalho, o conceito de “latência” para analisar a narrativa de Cardoso Pires no que ela conserva de sutil suspense, de tensão iminente, enfim, do que é “esquecido na esfera subliminar da consciência, donde [pode] surgir.” (Dicionário Aurélio, 1971, p.828) Podemos, com base no estudo de Figueiredo, deduzir que a narrativa cadoseana apoia-se em três tipos de esfera subliminar: a do narrador, a dos personagens e a do leitor/sujeito receptivo.

A secura ou o abuso no uso das palavras, o comedimento das frases, o ambiente árido (das falésias), as parcas ocorrências dramáticas e o reduzido tempo cronológico da narrativa (a história se passa em não mais que uma tarde) encerram propósito de “afastar” o leitor do “objeto representado”, levando-o à uma interpretação profunda do texto, baseada no seu conhecimento precedente, da perspicácia/simulação do narrador e do que está embutido no discurso dos personagens.

Nesta lógica, a questão da ausência/presença da palavra é fundamental na abordagem analítica de O anjo ancorado . Reparamos que duas autoras se atém com maior preocupação a este tema: Mônica Figueiredo e Maria Lúcia Lepecki. Suas análises, “a priori” divergentes, são na verdade face e contra-face de uma mesma moeda e, por isso, complementam-se, já que notam que a pujança do recurso expressivo da narrativa pode se dar tanto no silêncio quanto na exacerbação verbal. Figueiredo, por sua vez, afirma:

 

[a palavra é] justamente aquilo que é menos valorizado pela narrativa, seja pela impossibilidade de usá-la, seja pelo uso esvaziado e abusivo que dela fazem alguns personagens. De uma maneira ou de outra, dolorosamente, aqui a palavra não é capaz de comunicar. (Figueiredo, 2003, p.4)

Lepecki avalia, em seguida, o uso da palavra em O anjo ancorado :

 

No romance de Cardoso Pires é de todo indiscutível o peso poético da palavra, a energia pela qual o verbo cria contraditórias propostas de significação. Não menos real é o produzir-se de significado pelos vetores semânticos contidos na própria estruturação da narrativa, sobretudo no que concerne à problemática do ponto de vista e da deambulação de Narradores. (Lepecki, 1977, p. 41.)

 

É importante ressaltar que neste período ocorreu o que se chamou “realismo dialético” (daí a variedade de tipos de narrador, de recursos estético-expressivos empregados, de vozes de personagens, alternativas de leitura, etc.) que objetivava ampla variedade de maneiras de se reproduzir a realidade; por isso, estes dois pontos (a técnica narrativa e a palavra) estão destacados de forma resumida e se conectam com outras características da estética cardoseana que ainda surgirão neste trabalho.

 

4 - O(s) narrador(es) cardoseano(s) em O anjo ancorado:

 

 

Cardoso Pires renova profundamente as clássicas estruturas narrativas, procurando com isto, é claro, não abalar a comunicação autor/leitor, mas antes abrir um leque de alternativas de leitura. Em O anjo ancorado notamos alguns tipos de narrador que contribuem para ampliação do entendimento da obra em vários níveis. Ressaltaremos, respectivamente, dois tipos básicos que, a nosso ver, divergem da “narrativa convencional”. Primeiro o narrador que torna os personagens sujeitos da enunciação (que desliza sua voz às figuras dramáticas) e, após, o narrador que “joga” com elementos estruturais da cultura clássica, fazendo menções à passagens bíblicas, mitologia, fábulas até constituintes da escrita científica e tradicional, como: a precisão temporal, notas de rodapé e inserção de referencias do “mundo real”, etc.

Na narrativa portuguesa contemporânea constata-se significativa tendência ao destaque dos personagens e seus conflitos em detrimento da ação dramática e, sobretudo, do narrador. Maria Luiza Scher Pereira faz uma arguta observação a este respeito:

 

Cardoso Pires renuncia à prerrogativa da onisciência, própria do narrador convencional em terceira pessoa. A limitação do horizonte de percepção e conhecimento do narrador, decorrente de sua inserção no mundo das personagens, implica justamente na diminuição do seu poder na narrativa . (Pereira, 2003, p.2) (grifo nosso)

 

Cardoso Pires vale-se, a nosso ver, deste recurso estético-expressivo para denunciar o poder ditatorial que detém a voz dominante e que procura, assim, dificultar outras apreensões e difusões da realidade. Deste modo, o narrador cardoseano engendra um texto polifônico que dá relevo aos pontos de vista das mais diversas classes sociais (da alta roda burguesa de Lisboa aos camponeses espremidos contra as falésias), aos antagonismos e até às divergências, inclusive, “no mesmo grupo social” (Petrov, 2003, p.284). Em O anjo ancorado , notamos certos instantes em que personagens “apropriam-se” da voz narrativa ou pelo menos “confundem-se” com o narrador (dada sua proximidade).

Neste exemplo, temos Guida questionando-se, a sua maneira, sobre a situação dos habitantes das falésias:

 

“Porque é que as casa não hão-de estar de mal com o mundo, como as pessoas?” perguntou então a jovem. Observando com mais demora percebeu que sim, que estavam. Estas pelo menos. De mal com a terra, pior ainda, com o mar.” ( O anjo ancorado , 1977, p.37-38)

 

 

Nota-se que o “tom” de Guida persiste na seqüência da narrativa, desvalorizando, por meio do discurso indireto livre, a possível voz absoluta de um narrador onisciente (característico, aliás, do pragmático início do Neo-Realismo português em 40 e negado por Cardoso Pires) e criticando, por conseguinte, a voz estabelecida e opressora da ditadura. Além disso o monólogo solitário ou o olhar específico do narrador sobre dado personagem potencializam suas situações de alienação e abandono. No entanto, discutiremos este aspecto no próximo tópico.

O narrador que “joga” com sem-número de formas narrativas (desde as clássicas até às tradicionais) representa simbólica e metaforicamente o Portugal das crenças enraizadas e da modernidade lenta. O texto é a própria metáfora da contradição portuguesa que reside na tradição cultural provinciana e agrária em confronto com os novos costumes e valores da cidade vindos, sobretudo, com o pós-guerra.

Assim, as referências à passagens bíblicas: na figura do anjo/Guida, em “cão de Lázaro” ou em “a larva que estuda à espera que o vento tombe a maçã.” ( O anjo ancorado , p. 13 e 44, respectivamente) e à fabulas, como a do crocodilo e o bode, quando postas em analogia à exatidão temporal de “Num dia de Abril de 1957” ou à descrição esmerada em forma de nota de rodapé: “Guida Sampaio, vinte e três anos, licenciada, salvo erro , em Filologia Germânica pela Universidade de Lisboa.” ( O anjo ancorado , p. 9 e 15, respectivamente) (grifo nosso), revelam a ambigüidade da realidade portuguesa, a dicotomia entre mito/realidade e ficção/documento como formas de representação de Portugal e, sobretudo, a desconstrução de imagens idealizadas e do discurso instituído pelo regime.

Estes recursos acabam, como precisamente aponta Monica Figueiredo: “[revestindo o texto] de tom de fábula para escamotear o discurso social” (Figueiredo, 2003, p.7) já que, para além do compromisso estético-ideológico, longe do registro panfletário colocava-se (e só assim, dada a censura intelectual) a verve narrativa de Cardoso Pires.

 

 

5 - Personagens ancorados - Guida, João e “os outros”:

 

 

A romancista brasileira Marilene Felinto deteve-se, principalmente, ao estudo das personagens em O anjo ancorado . Sua pesquisa divide-se em “faces”, isto é, “em partes do romance”, tendo em vista que para a autora: “João e Guida [estão] de tal modo separados que é como se tivéssemos uma história de João e uma história de Guida, além de que os vínculos que os unem são poucos e débeis.” (Felinto, 1983, p. 98) Logo no final da análise, a autora inaugura uma “terceira face” na qual comenta os personagens secundários (os habitantes das falésias e os da Casa da Parede).

Lepeck demonstra que, de certa maneira, a hierarquia de personagens (sua presença, maior ou menor, na narrativa) e a quantidade de texto dada a cada um deles não difere muito da do romance tradicional. Afirma a autora: “lembre-se: o romance tradicional, geralmente faz equivaler a qualidade da personagem à quantidade de texto que ela ‘merece'”. (Lepecki, 197, p. 28) Deste modo temos, a nosso ver, em O anjo ancorado , no que diz respeito às personagens, dois grupos principais: o primeiro formado por João e Guida (co-protagonistas que possuem drásticas diferenças) e o segundo constituído pelos camponeses de São Romão e os convidados da Casa da Parede (personagens secundários).

Importante salientar que este subtítulo “Personagens ancorados: Guida, João e ‘os outros'” não expressa, em relação aos personagens não citados nominalmente, qualquer grau de diminuição qualitativa ou de falta de “merecimento”, antes é por fins de agrupamento analítico, para demonstrar o confronto estabelecido na narrativa entre “outros”/João e Guida e como, numa leitura mais atenta, todos, sem exceção, como escreveu recentemente Monica Figueiredo, vivem “em um Portugal ancorado com todos os seus anjos, inocentes ou não.” (Figueiredo, 2003, p.5)

Sobretudo pela voz das personagens, surge um dos aspectos mais corriqueiros da narrativa portuguesa contemporânea - a exploração de temas característicos da realidade portuguesa: a soberba da burguesia, “a falta de motivação, o ócio, a hierarquia sócio-cultural, o posicionamento social feminino” (Figueiredo, 2003: Curso de Lit.Port.III), entre outros. Assim temos, como exemplo, Guida, “anjo ancorado”, personagem representante da segunda geração sob regime salazarista: prolixa, alienada, dona de desejos vagos que não se sustentam entre a decepção com o passado e a falta de perspectivas futuras (realçadas por Cardoso Pires na maneira fechada com que encerra o romance).

Nota-se na narrativa, a nosso ver, como pontos a favor de Guida, resquícios de crítica à realidade em: “O erro, João, o crime, está em nos terem ensinado desde pequenos a renunciar à vida. Contrariar, dominar o desejo natural” e no seu posicionamento, ainda que muito questionável, como mulher burguesa numa sociedade machista que se manifesta em: “Tinha a voz áspera, de mando. Guida, e quase toda a gente de boas famílias, num tom áspero de voz” e defende sua posição de mulher em relação a João: “[Diz Guida:] (...) ‘Gracejam como se as mulheres não passassem dumas peças de caça.' ‘E são. Em muitos casos são.' ‘Oh, cale-se.'” ( O anjo ancorado , 1977, p. 31 e 61, respectivamente)

Fechando o que denominamos “primeiro grupo” temos João, personagem solitário, amargo, dono de sorrisos “de canto de boca”, “ex-camponês” que carrega a pesada armadura de cidadão burguês acomodado e pacato, cujo desencanto é em grande parte respondido por um sentimento de desejo não-cumprido quando resistira contra o regime salazarista nos tempos de Faculdade. Este desalento, a nosso ver, potencializa-se quando João ouve o discurso de ideologia vazia de Guida, como se tivesse culpa por ter legado às gerações seguintes um país ainda em ditadura: “[Diz João à Guida:] Por nada. Talvez me sinta um pouco culpado por si. É possível. Nesta altura tinha eu vinte e poucos anos.” ( O anjo ancorado , 1977, p. 75)

Por fim, gostaríamos de lembrar o final do romance como resumo do descaso, da alienação e da perda de sensibilidade humana de João e Guida (em analogia à burguesia portuguesa) em relação aos habitantes de São Romão numa cena impactante, rápida, seca. Atente para a conotação sugerida pelo vocábulo “mordia”: “No automóvel, a caminho de Lisboa: ‘Que faz você amanha?' ‘Não sei. E você?' O carro mordia a estrada, aos uivos nas curvas.” ( O anjo ancorado , 1977, p. 148)

No segundo grupo abordaremos o que chamamos de “os outros”. Os habitantes das falésias são: o “cão”, o velho, o menino, o dono da taberna, Ernestina, sua mãe e seu marido. Todos lutam pela sobrevivência, vivendo em condições de inércia e pobreza em clara oposição aos da Casa da Parede, principalmente, Gatucha, a dona da casa, e o escultor-crocodilo. Ambos representantes da burguesia de Lisboa, fúteis, de discurso exagerado e sem base ideológica, mas, ainda assim, sendo o escultor-crocodilo dono de um registro bem mais politizado.

Nos habitantes de São Romão reparamos na pobreza, no abandono, na estagnação reforçada pela situação social de Portugal simbolizada metonimicamente na região erma das falésias, sem atrativo algum além da pesca marítima:

 

“Um vulto que atravessava a rua esgueirou-se lá para dentro e os dois viajantes, como seguiam devagar, tiveram tempo de ver no fundo da loja uma fila de pessoal alinhada contra o balcão mas de olhos na porta. Quedos, mudos e de olhos na porta.” ( O anjo ancorado , 1977, p. 13)

Mas notamos, também, um personagem em movimento (mesmo que sem grande destaque, até para realçar a estagnação social) de busca pelo valor de seu trabalho o que encerra cunho ideológico, certamente. Este personagem é a rendeira, Ernestina, que assim define Lepecki: “única personagem que em toda a narrativa, ‘vive' exclusivamente em função da venda da força de trabalho, a rendeira transita por força do conteúdo semântico, para o primeiro plano do narrado.” (Lepecki, 1977, p. 39) Dito isto, aqui segue um exemplo da dedicação e valor que a rendeira dava ao trabalho: “Esnestina manejava os bilros com toda a alma. Faltava-lhe duas aranhas e um cheio; meia hora de trabalho, pelo pior.” ( O anjo ancorado , 1977, p. 131)

Na Casa da Parede, a situação é de pretensa festa, de encontro social; porém o que se vê é, por meio do discurso prolixo “o esvaziamento da palavra” (Figueiredo, 2003, p. 8), a alienação e a falta de interação entre os participantes: “[A João] acontecia-lhe deixar de os ouvir por momentos e então apanhava-os como vultos no aquário, envolvidos numa fumarada de cigarros” ( O anjo ancorado , 1977, p. 46). O escultor-crocodilo por meio da fábula do bode e do crocodilo em óbvia referência a forte censura salazarista direcionada aos que se manifestavam contra o regime: “[Diz o bode ao crocodilo:] – Pois é verdade. Vão lançar uma lei que manda matar todos os animais de boca grande.” ( O anjo ancorado , 1977, p. 50)

 

 

6 - Curto espaço, curto tempo narrativos:

Maria Lúcia Lepecki define o espaço em que se dão os poucos acontecimentos de O anjo ancorado da seguinte maneira: “Dois grandes espaçoso opostos surgem o da cidade, correspondente a João e Guida e o da aldeia (velho, menino e rendeira, basicamente)” (Lepecki, 1977, p.36). Concordamos com este arranjo, ressaltando que umas das notórias oposições presentes na narrativa se dá justamente quando um grupo (Guida e João) invade os limites geográficos do outro (dos aldeões): “Já alguém tinha dado por ele quando ainda vinha à distância, roncando pela estrada fora. De longe, como era vermelho, lembrava uma chama de rastilho a romper no asfalto por entre mar e cabeços .” ( O anjo ancorado , 1977, p. 9) (grifo nosso) O espaço, portanto, é ressignificado e valorizado, não se apresenta apenas como mero pano de fundo da narrativa, antes é um ambiente “extra-literário da história.” (Figueiredo, 2003, p. 7) Neste exemplo notamos como a representação espacial pode ser estendida à situação psicológica dos personagens: “Entre o dia e a noite, o farol de Peniche piscava tristemente.” ( O anjo ancorado , 1977, p. 130)

O reduzido espaço geográfico em que se passa a narrativa de O anjo ancorado (tanto a cidadezinha de São Romão quanto a Casa da Parede) é figura de linguagem, metonímia, referente a um Portugal “pequeno” para os que pretendem a liberdade e o trânsito livre, “virado de costas” para a modernidade e fechado em suas fronteiras, o que, sobretudo, reforça a condição social dos “ancorados” agora também presos a um espaço mínimo e opressor. Deste modo, diz Monica Figueiredo: “(...) ancorados estão os habitantes de São Romão à miséria e à paralisação; bem como os convidados da Casa da Parede estão presos à alienação e à futilidade.” (Figueiredo, 2003, p.7)

Por fim, a temática do tempo ocorre também como alicerce da narrativa cardosena. O tempo é “curto” (a história de O anjo ancorado não perpassa mais que uma tarde): “‘Que faz você amanhã?' Não sei. E você?'”( O anjo ancorado , 1977, p.148); “subjetvo” e “poli-temporal”, dado que por muitas vezes aparece na narrativa de acordo com os desígnios dos diversos personagens, por “flash backs”, por lembranças ao acaso, etc:

 

[Guida] passeando ia esmiuçando recordações, e esmiuçando recordações surgiam-lhe , entre várias, a do companheiro depois do serão de amigos, na Parede. Revia-se ao lado dele, no mesmo carro aberto que estava ali agora encalhado entre cardos e ventania. (...) Já tinham distanciado um bom par de léguas da casa dos tais amigos e Guida ainda continuava revoltada com o dito do escultor-crocodilo. ( O anjo ancorado , 1977, p. 61-62) (grifos nossos)

“Tinha certeza”, ia concordando ao mesmo tempo o companheiro. “Nada resolve seja o que for se o que se pretende é segurar o dia a dia. Os burgueses refastelados e seguros dos quadros de Van Dick acreditavam no dia de amanhã. Tinham o tempo a favor deles, jovem amiga (...)” ( O anjo ancorado , 1977, p. 114)

 

7 - Considerações Finais:

 

Este ensaio possibilitou-me tecer e aprofundar uma descoberta simples, mas não por isso menos importante. Após a leitura dos autores que, com precisão e argúcia, discutiram O anjo ancorado, de José Cardoso Pires, avaliamos que não haveria muito a ser acrescentado no âmbito teórico. A partir daí, perguntamo-nos em que poderíamos contribuir, ainda que nos limites deste texto, para fomentar o debate acerca da valiosa obra cardoseana. Concluímos que deveríamos enfatizar a interlocução entre vários estudiosos, a fim traçar um panorama a respeito de como é um texto literário é interpretado, e indicar, a partir daí, algumas similitudes, distinções e complementaridades entre as análises.

Durante a realização deste, demo-nos conta da diversidade de interpretações sobre a obra e nestas considerações finais pretendemos refletir acerca de suas possíveis razões. Consideramos que isto se deve ao fato de que estes autores possuem experiências, visões de mundo, projetos pessoais, acúmulos e filiações teóricas distintas que acabam por condicionar suas formas de ver, interpretar ou dialogar com O anjo ancorado . Reside nestas possibilidades a marca fundamental da sociedade contemporânea, que é sua diversidade social, sua extrema complexidade, o que a torna difícil de ser decifrada pelos olhares tendentes a homogeneização e a fixação “a priori” de rumos e destinos sociais de forma descolada da dinâmica da realidade – sempre mais larga e mais profunda do que se é capaz de alcançar.

Gostaríamos de finalizar este trabalho com uma citação de Georg Lukács a este respeito quando indagava-se como a arte evocava o prazer estético da juventude soviética: “Acreditamos que resida no fato de que neles [jovens] é revivido e feito presente precisamente o próprio passado, e este passado não como sendo a vida anterior pessoal de cada indivíduo, mas como sua vida anterior enquanto pertencente à humanidade.” (Lukács, 1981, p. 195)

8 - Referências bibliográficas:

 

 

FELINTO, Marilene. O anjo ancorado – um romance de cara e coroa . In : Estudos portugueses e africanos, n° 2, São Paulo, UNICAMP, 1983.

 

FIGUEIREDO, Monica. A latência verbal em O anjo ancorado de José Cardoso Pires . Faculdade de Letras/UFRJ.

 

KOTHE, Flávio R. A alegoria . São Paulo: Ática, 1986.

 

LEPECKI, Maria Lúcia. Ideologia e imaginário – ensaio sobre José Cardoso Pires . Lisboa: Moraes Editores, 1977.

 

LUKÁCS, Georg. Sociologia. São Paulo: Ática, 1981.

 

PEREIRA, Maria Luíza Scher. Espaço em questão: Portugal no romance de José Cardoso Pires . Disponível em:<http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/semiar_html>

 

PETROV, Petar. O realismo e os “realismos” da obra de José Cardoso Pires . In: O realismo na ficção de José Cardoso Pires e Rubem Fonseca. Lisboa: Difel, 2000.

 

PIRES, José Cardoso. O anjo ancorado . Lisboa: Moraes Editores, 1977.

 

TORRES, Alexandre Pinheiro. Sociologia e significado do mundo romanesco de José Cardoso Pires . In: O anjo ancorado. Lisboa: Moraes Editores, 1977.

voltar