Grande sertão e universo urbano

 

Danielle Corpas [1]

 

 

 

 

Em meados dos anos 1990, começaram a aparecer em revistas acadêmicas brasileiras ensaios de Willi Bolle que serviram de substrato ao seu cuidadoso estudo sobre o romance de Guimarães Rosa publicado em 2004 ( grandesertão. br . São Paulo: Duas cidades; Ed. 34). O primeiro desses textos a sair no Brasil foi Grande sertão: cidades ( Revista USP , nº 24, dez./fev. 1994/95). Já então o crítico assegurava que Grande sertão: veredas constitui um “retrato do Brasil”. O artigo firma as bases que sustentam a visão final de Bolle a respeito da narrativa de Riobaldo: a suposição de que esta pode (e deve) ser decifrada como romance urbano; o recurso às categorias da historiografia benjaminiana como “meio heurístico” para revelar o retrato do país no século XX inscrito no texto ficcional – no qual são identificadas contradições do processo de modernização e uma forma de pôr em cena “o discurso dos vencedores e dos vencidos, lado a lado”; a estruturação da abordagem calcada na comparação entre Grande sertão: veredas e Os sertões ; a caracterização da “estrada-texto” que é o romance de Rosa como um “labirinto”, onde o “perder-se” é condição sine qua non para que se constitua um conhecimento sobre o país pela via da ficção, o que configura a proposta de “um novo modelo de escrita da história”.[2]

Tais direcionamentos são mais decisivos para os movimentos feitos por Bolle em sua leitura do trabalho do escritor do que o primeiro livro que lhe dedicou ( Fórmula e fábula: teste de uma gramática narrativa, aplicada aos contos de Guimarães Rosa , de 1973). São também expressões das prioridades que o crítico havia assumido para sua reflexão em geral. Fisiognomia da metrópole moderna: representação da história em Walter Benjamin , estudo publicado meses antes de Grande sertão: cidades, termina com um “esboço de comparação” entre os escritos de Benjamim e o “projeto literário de Guimarães Rosa”, ao qual é atribuído o titulo de “mestre na representação do imaginário social”.

 

O trabalho do escritor nasce do diálogo com a cultura dessa multidão rural analfabeta, na qual mergulha por inteiro, reforjando-a como um demiurgo e projetando-a numa inaudita “escrita de trânsito universal”. Diferentemente de Benjamin, que realizou seu projeto de escritor diante do fundo de massas urbanas, o engenho de Guimarães Rosa é arcaico, “ctônico”; sua obra é dedicada a uma sociedade que vive longe das metrópoles, na periferia da periferia. Contudo, essa dimensão extrema é o exato complemento da benjaminiana “proto-história” da Modernidade. A obra de Rosa oferece uma visão ao mesmo tempo “arqueológica” e “pós”-moderna das relações entre as grandes cidades e o que é o seu avesso, o sertão (...). [3]

 

Willi Bolle começa Grande sertão: cidades afirmando que o livro de Guimarães Rosa, na seqüência de Os Sertões e Macunaíma , “questiona uma posição canônica na qual a história da literatura brasileira se acomodou: a separação entre literatura urbana e literatura rural ou regionalista”. [4] Em sua avaliação, àquela altura, a crítica ainda não havia cumprido a tarefa de decifrar Grande sertão: veredas como romance urbano, hipótese que ele se propõe a experimentar.

Bem, sabemos que, desde o primeiro momento da recepção de Guimarães Rosa, embora as preocupações dos críticos estivessem de fato bastante pautadas pelas questões do regionalismo, percebeu-se que sua literatura ultrapassava os limites da região. Macunaíma foi referência para Antonio Candido já em 1946, na resenha sobre Sagarana – e justamente como marco de um trabalho com a linguagem que buscava a mediação entre a cultura letrada (urbana) e a cultura popular rural. [5] A dicotomia contestada por Bolle não foi seguida como parâmetro inescapável pelos intérpretes de Guimarães Rosa.

Por outro lado, de fato, se em meados dos anos 1990 a fortuna crítica de Grande sertão: veredas já acumulava indicações de que a narrativa se articula numa terceira margem entre moderno e arcaico, rural e citadino, realmente não contávamos com reflexões voltadas especificamente para o modo como se apresenta no livro aquilo que é próprio da experiência urbana em um país onde a maioria da população gradualmente se concentrou nas cidades justamente ao longo das décadas que nos separavam de sua publicação. O título do ensaio de Bolle bem como suas primeiras palavras parecem prometer algum esclarecimento a respeito da representação da metrópole brasileira no Grande sertão . Porém, não é nessa direção que segue o texto. A prioridade, logo se nota, é demonstrar que a composição do romance é orientada por uma lógica de expressão urbana lato sensu , e em termos bem pós-modernos. O foco recai sobre um aspecto da forma narrativa, a “estética do fragmento urbano” que o ensaísta procura analisar por meio de conceitos benjaminianos. É por aí que se estabelece a paridade Grande sertão: cidades.

O ponto de partida é o livro que Willi Bolle considera precursor de Grande sertão: veredas , Os sertões . Para o ensaísta, se o “choque entre cultura citadina e cultura sertaneja” manifestou-se na obra de Euclides como uma questão crucial – “onde está o centro e onde está a periferia da barbárie?” –, Guimarães Rosa procurou “novos procedimentos de mediação” para lidar com ela. O principal deles seria a figura do jagunço letrado que narra sua vida ao ouvinte da cidade. Na avaliação de Bolle, por meio dessa “imagem dialética”, que encarna um “ponto de vista oscilante” – ao mesmo tempo próximo e distante do discurso do poder, e também próximo e distante “da perspectiva rasteira dos medos e dos sofrimentos das vítimas” –, o romancista consegue repensar a oposição civilização x barbárie (e seu correlato, cidade x sertão), fornecendo com a “representação do sertão um retrato do Brasil”. Nesse ensaio, a hipótese trabalhada com mais ênfase é: a busca por mediações entre sertão e cidade que viabilizam a revelação do país na representação literária do sertão corresponde à tentativa do escritor de elaborar “uma nova escrita da história”. O crítico, nesse momento, está preocupado em “transpor o procedimento da historiografia alegórica para a leitura de Grande sertão: veredas ”. [6]

A análise do romance propriamente dita começa por sua “epiderme”, o título, lido “como hieróglifo profano, um sinal de trânsito: ‘Grande Sertão – dois pontos – Veredas”, “resposta dialética” ao modo como são representadas as tensões da realidade sertaneja em Os sertões .

 

Grande Sertão amplifica ainda mais, talvez até com uma conotação parodística, a hipérbole euclidiana; Veredas , como um recolhimento, marca o contraponto.

(...)

Valoração: o Grande Sertão. Isto é, a história dos jagunços, estilizada em gesta da jagunçagem, epopéia do sertão, romance de cavalaria. É o grand récit , o estilo “elevado”, o “enaltecimento mítico”, de que falam vários intérpretes.

(...)

Desvalorização. (...) As “veredas” constituem o contraponto do grand récit . No título se concentra a teoria de uma nova escrita da história. As “veredas” são as frestas abertas pelo escritor, para interromper o discurso que martela uma visão idealizada do país.

(...)

As “veredas” ou “passagens” do Grande Sertão configuram uma história do cotidiano, uma micro-história do dia-a-dia em contraposição aos feitos da historiografia monumental ou dos ministérios de propaganda. Como resposta à desvalorização do cotidiano sertanejo pelo olhar de quem olha de cima para baixo, as “veredas” representam uma inversão de perspectiva. Trata-se do olhar sóbrio de quem não idealiza a realidade sertaneja. O olhar de baixo, a perspectiva rasteira, a fala dos humildes. [7]

 

Não vem ao caso agora pôr em questão as ilações que Willi Bolle formulou a partir da “dialética entre o estilo grandiloqüente e o sermo humilis ” que identifica na narrativa. [8] O que interessa aqui é observar especificamente como, nesse ensaio inicial, o crítico defendeu a hipótese de que a relação sertão-cidade desempenha um papel decisivo no romance e no retrato do Brasil no século XX que enxerga nele.

A contraposição com Os Sertões é fundamental em sua argumentação. Na trilha de Antonio Candido, M. Cavalcanti Proença e Walnice Nogueira Galvão, Bolle aborda o sertão rosiano a partir do paradigma cunhado por Euclides da Cunha. Com uma diferença: enquanto os críticos que o antecederam tomaram as vinculações entre os dois livros como ponto de partida necessário, a partir do qual desenvolveram algumas hipóteses sobre Grande sertão: veredas , na visão de Bolle essa confrontação integra o centro do prisma – tanto que um dos tópicos de Grande sertão: cidades se intitula Guimarães Rosa, autor dos Sertões. “ Grande sertão: veredas é uma retomada minuciosa do livro precursor”, “uma releitura intensa e um ‘reescrever'”, “um contraponto”. [9] É digno de nota o fato de que a tentativa de especificação do caráter urbano do romance de Guimarães Rosa – perspectiva que valoriza seu potencial de representação do moderno universal – destaque as “matrizes bíblicas” que Walnice Nogueira Galvão apontou em Os sertões .

 

Euclides projeta o martírio sobre a condição do homem condenado a viver nos desertos do sertão e nas solidões da Amazônia. O sofrimento de Jesus se desdobra aí numa maldição, que recaiu sobre uma figura humana arquetípica, condenada a errar pelas estradas durante a vida inteira: Judas Ahasvérus.

A profissão do sertanejo, ligada à vaquejada e à arribada, é nômade. (...) Ao encontro dessa condição socioeconômica vai a religião. O personagem histórico de Antônio Conselheiro, com suas peregrinações e martírios, torna-se, como mostra Euclides, a figura por excelência de identificação para os sertanejos. [10]

 

Na seqüência do raciocínio exposto no ensaio, o sentido proposto para a referência religiosa encontrada no romance de Euclides da Cunha conduz, por analogia, a uma caracterização da condição jagunça em Grande sertão: veredas . São ressaltados nesta os mesmos traços de movimento nômade, itinerante, o “errar sem rumo pelo sertão". O crítico projeta tal mobilidade para a situação narrativa, que descreve como “marcada por esse movimento dialético entre cidade e estrada: o conforto material de uma pessoa instruída, sedentária, e a inquietude do homem itinerante, para quem a vida é um sofrido caminhar pelo labirinto”. Daí conclui que é tendo por guia o livro de Euclides que Guimarães Rosa abre sua “estrada-texto”, leva adiante o “projeto literário de representação da sociedade, da mentalidade e do imaginário sertanejos”. [11]

O tópos da viagem geográfica e narrativa, antes abordado por Benedito Nunes, é retomado em outros termos, aportando outras decorrências à interpretação. Para Nunes, o movimento pelo sertão ganha a amplitude de busca existencial do sujeito, percurso individual que, no momento da narrativa, resulta em “desvendamento do mundo”. [12] Para Bolle, a fala de Riobaldo também é tentativa de auto-entendimento, “uma reflexão permanente sobre o modo de narrar a história de sua vida”, mas se desdobra na “problematização, por parte do autor João Guimarães Rosa, de como apresentar a história do seu país”, e esse questionamento se reflete na construção de “um vasto tableu etnográfico apresentando os caracteres sociais do sertão e a sua história cotidiana”. Willi Bolle faz questão de sublinhar que “não se trata só da problemática de um ‘eu' narrativo individual, mas da representação de uma coletividade, do conjunto de uma cultura”.

Em síntese: conforme Grande sertão: cidades, o caráter urbano de Grande sertão: veredas estaria radicado no projeto de um “novo modelo de escrita da história”, pautado pela justaposição entre o discurso idealizador dos poderosos e os fragmentos que registram o cotidiano da gente miúda, “contraponto do grand récit ” que vem à tona em um “contar torto”. Assim como a metrópole de Benjamin, o sertão de Guimarães Rosa é apresentado por meio de uma “composição fragmentária, onde as ‘passagens' ou ‘veredas' constituem trilhas de informação”. Não é espaço que se deixe mapear com traçados contínuos, mas labirinto. “O sertão como labirinto, como lugar por excelência do errar”; “o perder-se no sertão”, “essa perda, que é a chave da construção do romance”, leva o protagonista (e o leitor) a encontrar-se diante de “‘passagens' da vida”, as quais formam “uma constelação de detalhes aparentemente irrelevantes que, no entanto, representam as juntas e os parafusos que mantêm funcionando a gigantesca máquina social”: as veredas “representam o próprio movimento da história”.

No fim do ensaio, o autor analisa, a título de exemplo, três dessas “veredas-passagens”. Todas são retomadas em grandesertão.br , e vale mais a pena levar em conta, para a discussão específica das proposições, seu formato final. Aqui, basta a síntese dessas interpretações de episódios do romance em sua primeira formulação, apenas para observarmos aonde conduz a estratégia de leitura que parte da percepção do sertão como espaço similar à metrópole em sua conformação labiríntica.

A primeira passagem tem como mote o episódio no qual o bando de jagunços chefiado por Zé Bebelo, logo depois de se deparar com os catrumanos do Pubo – a gente mais desprovida de tudo no romance – passa pela fazenda de seu Habão, próxima ao povoado do Sucruiú, cuja miséria havia sido acentuada por uma epidemia. Riobaldo percebe então, conforme as palavras de Bolle, “como funciona a economia” e qual a “sua situação social verdadeira”.

 

Falta mão-de-obra na agricultura, porque os habitantes do lugar estão inutilizados pela doença. Quando Riobaldo sente o olhar do fazendeiro avaliando a ele e aos seus companheiros – “cobiçava a gente como escravos” – nasce uma nova forma de consciência.

Essa consciência é histórica e social. Vem à tona o caráter fantasmagórico da condição de jagunço – até então encoberto pela romantização e a retórica. (...) Se deixasse as armas nesse momento, não seria mais que um simples peão, recaindo no anonimato da plebe rural.

Tornam-se visíveis os elementos ideológicos da jagunçagem. Desfaz-se a ilusão de estar acima das diferenças de classes, a idealização da liberdade e da independência garantida apenas pela prática da violência. [13]

 

A segunda passagem refere-se ao pacto com o Diabo, interpretado como revelação da “mola psicológica e social que faz os sertanejos entrarem na jagunçagem”: o “desejo coletivo” de gozar dos benefícios individuais oferecidos pela inserção em uma ordenação da convivência regida pela violência, pela prática do crime. O pacto de Riobaldo com o Diabo seria, desse ponto de vista, metonímia de um princípio regulador da ordem social, o pacto entre chefes e chefiados.

 

Sem disfarces, o escritor registra a motivação real dos que optam pela jagunçagem. Chefe e chefiados optam conscientemente pela prática do crime. Eis o pacto. E eis o ponto para se questionar as interpretações metafísicas, como também a tese de Walnice Nogueira Galvão de que o romance de Guimarães Rosa seja “a mais profunda e mais completa idealização da plebe rural brasileira”. [14]

 

O terceiro ponto eleito para análise agrupa várias situações vividas pelo bando de jagunços chefiados por Riobaldo. É ressaltado o fato de que, tal como é narrada, essa história da jagunçagem “põe em cena os que praticam a violência ou sonham com ela e os que sofrem a violência”, o que “desautoriza as interpretações idealizadoras do romance”.

Recapitulando os movimentos do ensaio: parte-se da postulação da possibilidade (e da necessidade) de ler Grande sertão: veredas como romance urbano, condição para decifrá-lo como retrato do Brasil no século XX. Para isso, recorre-se a uma estratégia de duas faces. De um lado, para ressaltar a singularidade da mediação entre cultura citadina e cultura sertaneja efetuada na narrativa de Riobaldo, por meio do contraste com alguns procedimentos de Euclides da Cunha em sua apresentação do sertão e dos sertanejos. De outro lado, são empregados como recursos metodológicos conceitos benjaminianos ligados à historiografia alegórica e à representação da metrópole moderna (“imagem dialética”, “passagem”, “estrada-texto”). Daí emerge a caracterização do teor urbano desse romance de ambientação rural: urbano é o modo como o escritor, explorando as brechas no discurso grandiloqüente de seu precursor, faz do sertão um espaço labiríntico, no qual o leitor se depara com fragmentos de vida muito significativos dos movimentos da história do país.

Acontece que toda essa armação teórica parece um tanto desconectada das três análises finais. Parece faltar no ensaio uma ponte mais sólida entre os problemas percebidos nas passagens da história sertaneja e as peculiaridades da experiência urbana brasileira. Se a forma de labirinto é o como que vincula o sertão ao universo urbano, se “perder-se” no sertão é, nas palavras de Willi Bolle, “a chave da construção do romance”, que aspectos da sociedade brasileira no século XX esse romance ilumina? As três passagens analisadas evidenciam bem o potencial que tem a narrativa de desmascarar a idealização da jagunçagem, mostrando a crueza tanto do sistema econômico a que ela serve quanto dos impulsos de violência e dos sofrimentos que alimenta. Mas a jagunçagem é, a princípio, um problema sertanejo. Que relação tem com o universo urbano moderno o sistema de trabalho no sertão, a violência que anima os jagunços, as condições de vida da plebe rural?

O último episódio do romance comentado por Willi Bolle enfatiza, na conclusão do ensaio, um ponto de fuga para o qual converge a perspectiva do crítico: a função desempenhada pelo intelectual na ordem social brasileira.

Na Fazenda dos Tucanos, chefiado por Zé Bebelo, Riobaldo recebe ordem de escrever uma carta na qual o líder do bando jagunço que ele integra tenta um acordo com as autoridades: visando a um apoio para o ingresso no esquema político-institucional, o chefe revela o paradeiro do bando, termina o ditado com fecho formal – “Ordem e Progresso, viva a Paz e a Constituição da Lei” – e assina “José Rebelo Adro Antunes, cidadão e candidato”. [15] A mensagem estratégica é pautada por motivação pessoal – a carreira política, “engordar com o Governo” [16] – e rompe simbolicamente com o dever de honra assumido no contexto do sistema jagunço por aquele que havia adotado o nome de guerra Zé Bebelo Vaz Ramiro. O jagunço letrado chama atenção para isso quando questiona a opção pelo nome civil. Para Bolle, o questionamento de Riobaldo, ao pôr em xeque a retórica do chefe, tem caráter exemplar com relação à “função do intelectual: interromper o discurso dominante”. Há na avaliação do crítico um indisfarçado elogio à atitude de Riobaldo, análogo à valorização da criação de Guimarães Rosa como reescrita ou nova escrita da história capaz de trazer à tona a micro-história dos vencidos.

Mas o que há em comum entre a “micro-história” dos sertanejos e a dos habitantes das grandes cidades?

Em um trecho de sua explanação a respeito do jagunço em Grande sertão: veredas , Antonio Candido deixou sugerida a possibilidade de realização do modo de ser jagunço em contexto urbano, em um parágrafo cujas linhas finais – a transcrição de uma fala de Riobaldo – abrem caminho para a aproximação entre sertão e cidade, apresentando o modo de ser jagunço como forma que pode ser, entre outras coisas, urbana:

 

[O jagunço] encarna as formas mais plenas da contradição no mundo-sertão e não significa necessariamente deformação, pois este mundo, como vem descrito no livro, traz imanentes no bojo, ou difusas nas aparências, certas formas de comportamento que são baralhadas e parciais nos outros homens, mas que no jagunço são levadas a termo e se tornam coerentes. O jagunço atualiza, dá vida a essas possibilidades atrofiadas do ser, porque o sertão assim o exige. E o mesmo homem que é jagunço (...) seria outra coisa noutro mundo . “A paz no Céu ainda hoje-em-dia, para esse companheiro, Marcelino Pampa, que de certo dava para grande homem-de-bem, caso se tivesse nascido em grande cidade”. [17]

 

O ensaio de Willi Bolle tem a ver com essa sugestão a respeito do modo de ser jagunço, mas não se refere a ela. Também certas observações registradas por Walnice Nogueira Galvão em As formas do falso , livro de 1972, poderiam trazer mais especificidade à reflexão a respeito da “condição nômade que marca o dia-a-dia” do vaqueiro e do jagunço abordada em Grande sertão: cidades. Ao analisar a sobreposição entre dependência e perspectiva de liberdade que o trabalho na pecuária extensiva aporta ao modo de vida da plebe rural sertaneja, Walnice reuniu muitos dados para se pensar a vida errante de jagunço, elemento tão importante na interpretação de Bolle. [18] Quando este refuta a tese de As formas do falso segundo a qual o romance idealiza a plebe rural brasileira (ver acima, p. 8), deixa de contextualizar a afirmativa da autora, que surge em meio à discussão da peculiar mistura entre popular e erudito, fala e escrita, lucidez e mitificação na linguagem de Guimarães Rosa. [19] A passagem do texto de Walnice Nogueira Galvão em que se encontra o trecho citado por Bolle remete à ambigüidade que a autora, na introdução de seu estudo, aponta como, “ao nível da prática, a raiz das demais” ambigüidades de Grande sertão: veredas : “a posição do escritor” – que é, afinal, ponto-chave na leitura de Bolle. Em As formas do falso , consta que:

 

(...) neste discurso oral que é escrito, sertanejo ao mesmo tempo que erudito, lúcido enquanto apanha o processo histórico e mitologizante quando o feudaliza, identificado ao homem pobre do sertão e dele distanciado, com uma concepção metafísica veiculada pelo espiritismo popular mas que tem a sofisticação do budismo e das idéias de Heráclito, que proclama sua fé na vida mas que faz do texto um fetiche, que apreende as tensões da realidade como ambigüidade sem radicalizá-las em contradições, é, afinal, a posição do intelectual brasileiro que se delineia. Preso a seus privilégios ,as sendo capaz, por treino, de experimentar imaginariamente outras situações de vida, convive no mundo dos valores, mas é tradicionalmente servidor do Estado; aqui existe e aqui produz, mas de olho na última moda das agências centrais da cultura. Ninguém ainda nos mostrou nosso retrato tão impiedosamente, mesmo através de tantas mediações, e talvez sem o saber, como Guimarães Rosa no Grande Sertão: Verredas . Nas páginas deste livro perpassa a sombra do letrado brasileiro. [20]

A imagem do intelectual que Willi Bolle apresenta em sua leitura é, no fim das contas, muito mais luminosa, positiva, ressalta mais algo como a “dignidade da lucidez”, a que se refere Candido em Jagunços mineiros, [21] do que a “sombra”, as ambigüidades do retrato impiedoso enxergado por Walnice. Da ótica de Bolle, como diz ele em ensaio publicado em 1998, Guimarães Rosa é escritor que, falando “em código cifrado dos segredos do poder”, colabora para a construção de um “‘re[di]mir' da história” na medida em que dá voz efetiva ao povo, “não como dócil destinatário de mensagens populistas, mas como figura ficcional interna, discreta e soberana. Calado, ouve os discursos dos que falam em seu nome. E julga”. [22]

Voltando a Grande Sertão: cidades. Ainda que o ensaísta afirme que os ensaios de Antonio Candido e As formas do falso haviam sido, até o momento em que escreve, as únicas investidas no sentido de entender Grande sertão: veredas à luz da experiência brasileira no século XX; ainda que desenvolva, a partir da noção de jagunço letrado (cunhada por Walnice Nogueira Galvão), considerações relevantes a respeito do ponto de vista que rege a narrativa, chama atenção que a expressão de Walnice, já consagrada em 1994, seja um dos poucos resultados do trabalho dos precursores explicitamente convocado para construir a argumentação que pretende demonstrar a interpenetração entre Grande sertão e o universo das cidades contemporâneas. Nessa tentativa de ressaltar o caráter urbano do romance de Rosa como aspecto que constitui o retrato do Brasil no século XX, fica mais proeminente o diálogo com Walter Benjamin do que a retomada de hipóteses e conclusões específicas sobre a obra que levam em conta dados locais. Ao que tudo indica, as escolhas do ensaísta não são regidas apenas por um critério que priorize, na abordagem do texto literário, a observação de experiências sociais descartadas ou disfarçadas no discurso dominante, que tanto interessa à sua interpretação. Afinal, Candido e Galvão, como Benjamin – cada um a seu modo – souberam ressaltar o gênero de problemas a que Bolle se dedica: a inscrição de tensões sociais na criação estética. Por mais que o pensamento de Walter Benjamin possa contribuir para a reflexão a respeito do livro de Guimarães Rosa e de certos problemas expressos nele, fica uma pergunta: porque a inclusão dos termos benjaminianos na discussão sobre a representação da história brasileira em Grande sertão: veredas vem de par com o escasso aproveitamento de um acúmulo crítico diretamente relacionado à discussão de peculiaridades locais? A questão tem especial relevância porque Grande sertão: cidades constitui um marco na recepção recente do romance, junto com outros estudos que, a partir de meados da década de 1990, puseram em evidência as relações Grande sertão : Brasil.

Seria leviano emitir um juízo quanto ao procedimento do crítico considerando apenas esse ensaio, sem levar em conta o resultado integral dos muitos anos de pesquisa dedicados a Grande sertão: veredas , dos quais resultou o livro grandesertão.br . O importante é assinalar que, no artigo de 1994, já se manifestam duas propensões que pautam o trabalho publicado dez anos depois: 1) valorização (ou idealização?) do potencial de interferência que têm as manifestações estéticas ou intelectuais questionadoras de “discursos dominantes” e 2) abordagem dos vínculos entre forma literária e experiência social com o propósito de pensar as especificidades do Brasil no século XX, e com ênfase no contraste entre os problemas do país e o ideal de civilização fundador das modernas sociedades ocidentais. Tal ênfase se evidencia nos termos políticos muito genéricos como é tratada, em Grande Sertão: cidades, a questão da expressão das camadas populares na obra literária, a “fala dos humildes”: trazer à tona o discurso dos vencidos corresponde a papel de intelectual cioso de seu compromisso com as exigências da democracia.

As duas preocupações perceptíveis no texto de Bolle manifestam uma certa militância humanística, que poderia ser descrita a partir de termos que Antonio Candido utiliza em sua avaliação dos momentos decisivos da formação literária nacional na Introdução de Formação da literatura brasileira : trata-se de uma crítica empenhada . Como no caso dos escritores do Arcadismo e do Romantismo brasileiros estudados por Candido, é componente determinante no juízo de Willi Bolle um certo “sentimento de missão” de intelectual movido pela convicção de estar fazendo a sua parte no “esforço de construção do país livre”. [23] Obviamente, a noção de “país livre” já não é aquela que mobilizou os artistas dos momentos formativos – mas as prioridades civilizatórias de Bolle também não se distanciam tanto assim daquela visão.

Do ponto de vista do andamento da crítica literária brasileira, o que significam as preocupações de Willi Bolle e o modo como ele procura atendê-las em sua leitura de Grande sertão: veredas ?

Uma hipótese: estamos diante de um esforço de demonstração de que o romance considerado por muitos o maior feito da literatura brasileira – ou até da língua portuguesa – no século XX tem (para não fugir ao vocabulário benjaminiano ) “afinidade eletiva” com algo da sensibilidade, da terminologia e da experiência da (agora, para dizer como Bolle em Fisiognomia da metrópole moderna ) “pós”-modernidade mundial.

Um exemplo de manifestação desse esforço do crítico no ensaio em questão aqui: sua reflexão sobre a “errância” [24] do jagunço e da narração parte das matrizes bíblicas que Walnice Nogueira Galvão demonstrou integrarem Os sertões , e desconsidera a minuciosa análise que a mesma autora faz dos fatores socioeconômicos implicados na condição “provisória” (palavra empregada pelo narrador do livro de Rosa) da plebe rural integrada pelos jagunços de Grande sertão: veredas . Por mais que a trajetória do personagem bíblico mencionado em Grande sertão: cidades (Judas Ahasvérus) tenha o tom doloroso de um martírio, a referência à mítica cristã (por sua universalidade, pelo caráter a-histórico de que se revestiu, pelo potencial de comoção que tem o heroísmo dos mártires) é muito mais palatável à cognição contemporânea do que os dados objetivos, mencionados em As formas do falso e radicados na formação do Brasil, que levam o homem pobre a errar pelo sertão – a correlação entre a natureza da pecuária extensiva e a dispensabilidade da mão-de-obra que a serve. A derivação que essa lógica sofreu na cidade brasileira é um fato a ser levado em conta para se refletir a respeito da abrangência urbana que tem o universo representado em Grande sertão: veredas .

 

1. Danielle Corpas conclui em agosto de 2006 o Doutorado em Teoria Literária (Programa de Ciência da Literatura da UFRJ) com a tese O jagunço somos nós: visões do Brasil na crítica de Grande sertão: veredas. Este artigo, com ligeiras modificações, corresponde a um trecho da tese.

2. Tudo isso se encontra sintetizado nos dois parágrafos finais do ensaio:

“O romance de Guimarães Rosa encena duas maneiras de narrar a história: o discurso dos vencedores e dos vencidos, lado a lado. Uma tensão já experimentada pelo seu precursor Euclides da Cunha. O autor de Os Sertões , militar e jornalista, representante do Brasil republicano e da fé no progresso, começou a duvidar dos valores em nome dos quais veio para documentar o fim de Canudos. Suas simpatias se deslocaram para o lado de lá. Esse ponto de vista oscilante é colocado por Guimarães Rosa dentro de um mesmo personagem. Riobaldo, o jagunço letrado – eis a imagem dialética que sintetiza o romance. Ele é mostrado ora no papel de vencedor, ora no papel de vencido. A história do sertão é iluminada a partir dessa dupla perspectiva, cambiante. Com isso, o romancista propõe um novo modelo de escrita da história.

As ‘veredas' são o contraponto do grand récit da história monumental. Não é um contar seguido, não é um contar linear. É contar torto, por linhas tortas, como Deus ‘que escritura os livros mestres' (...), linhas quebradas e sinuosas, como as que caracterizam as igrejas barrocas de Minas, e as esculturas, onde revive e ressuscita – escondida sob a pompa das alegorias, dos cultos religiosos e das mortificações oficiais – a physis bela e sensual. As veredas são os momentos de atenção da alma no Grande Sertão. Elas representam o próprio movimento da história, a ‘matéria vertente'”. ( Bolle , Willi. Grande sertão: cidades. Revista USP . São Paulo, nº 24, USP, dez./jan./fev. 1994/95, p. 93.)

3. Bolle , Willi. A Metrópole, vista da periferia. In: Fisiognomia da metrópole moderna: representação da história em Walter Benjamin . São Paulo: Editora da USP, 1994. p. 399. A nota junto à primeira expressão entre aspas no trecho citado remete à passagem do livro que assinala o “trânsito espiritual entre o moderno e o arcaico” como “afinidade eletiva” a aproximar Benjamin e Rosa.

4. Id. , Grande sertão: cidades, op. cit. , p. 80.

5. “ Sagarana nasceu universal pelo alcance e pela coesão da fatura. A língua parece ter atingido o ideal da expressão literária regionalista. Densa, vigorosa, foi talhada no veio da linguagem popular e disciplinada dentro das tradições clássicas. Mário de Andrade, se vivo fosse, leria, comovido, este resultado esplêndido da libertação lingüística, para que ele contribuiu com a libertinagem heróica da sua.” ( Candido, Antonio. Sagarana. In: Textos de intervenção . Org. Vinícius Dantas. São Paulo: Ed. 34/Duas Cidades, 2002. p. 186.)

Depois, nas últimas linhas da resenha que dedicou a Grande sertão: veredas em 1956, Candido, identifica no romance de Rosa um momento de amadurecimento da literatura brasileira, mais uma vez tomando o livro de Mário de Andrade como parâmetro: “Refinamento técnico e força criadora fundem-se então numa unidade onde percebemos, emocionados, desses raros momentos em que a nossa realidade particular brasileira se transforma em substância universal, perdendo a sua expressão aquilo que, por exemplo, tinha de voluntariamente ingênuo na rapsódia dionisíaca de Macunaíma , para adquirir a soberana maturidade das obras que fazem sentir o homem perene”. ( Id ., No Grande sertão . In: op. cit., p. 192.)

6. Cf. Bolle, Willi. Grande sertão: cidades, op. cit., p. 80-82. A noção benjaminina de “historiografia alegórica” é apresentada nos seguintes termos:

“A ‘alegoria' é o conceito-chave em que se baseiam todas as demais categorias imagéticas da historiografia benjaminiana.

No sentido etimológico, a alegoria é o discurso através do ‘outro'. A partir daí é derivada a ‘historiografia alegórica', que consiste no estudo de uma época ou de um espaço diferente, para o historiador esclarecer aspectos do seu próprio espaço-tempo” (p. 82).

7. Ibid. , p. 83-84.

8. Isso é matéria do capítulo 5.3 da tese de onde provém o presente artigo (ver nota 1, acima), onde são comentadas as conclusões registradas em grandesertão.br .

9. Ibid. , p. 84-85. O modo como Willi Bolle opera com a relação entre Os sertões e Grande sertão: veredas em grandesertão.br também é comentado no capítulo da tese mencionado na nota anterior.

10. Ibid. , p. 86. Conforme a nota 17 do ensaio, o comentário de Walnice Nogueira Galvão mencionado logo antes do trecho transcrito foi pronunciado em uma Conferência sobre Os sertões , na Freie Universität Berlin, em maio de 1990.

11. Ibid.

12. Cf. Nunes , Benedito. A viagem. In: O dorso do tigre . 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1976.

13. Bolle , Willi. Grande sertão: cidades, op. cit. , p. 91-92.

14. Ibid. , p. 92. O trecho de As formas do falso citado na passagem encontra-se à página 74.

15. ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 288.

16. Ibid. , p. 325.

17. Candido , Antonio. Jagunços mineiros: de Cláudio a Guimarães Rosa. In: Vários escritos . 4. ed. reorg. pelo autor. São Paulo: Duas Cidades; Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004. p. 114.

18. Ver Galvão, Walnice Nogueira. As formas do falso: um estudo sobre a ambigüidade no Grande sertão: veredas. São Paulo: Perspectiva, 1972. Em especial, os capítulos 2 e 3 da Parte I.

19. “Se, de um lado, seu romance é o mais profundo e mais completo estudo até hoje feito sobre a plebe rural brasileira, por outro lado também é a mais profunda e mais completa idealização dessa mesma plebe. Se, por um lado, o falar sertanejo permite e justifica que o livro se arme como uma discussão metafísica sobre Deus e o Diabo, aceita-se essa discussão porque esses são os conceitos que estão ao alcance do narrador-personagem para efetuar a tentativa de demarcar os limites entre a liberdade humana e a necessidade imposta pelo sistema de dominação. Mas, por outro lado, o contingente erudito da linguagem usado pelo escritor permite e justifica que Deus e o Diabo sejam, ao fim e ao cabo, concepções muito mais requintadas e que derivam tanto de Heráclito como do budismo.” ( Ibid. , p. 74.)

20. Ibid. , p. 13-14.

21. “Com efeito, a experiência do mal que o jagunço lúcido deste livro possui, aguça o sentimento das complicações insolúveis do mundo, da impossibilidade de esclarecê-las. Mas aguça ao mesmo tempo o desejo de ver claro, de lutar contra a ambigüidade; e mesmo sem poder isolar em seu lugar respectivo as forças opostas, este esforço é a dignidade da lucidez.” (CANDIDO, Antonio. Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa, op. cit. , p. 122.)

22. Bolle , Willi. O pacto no Grande Sertão : esoterismo ou lei fundadora?. Revista USP . Dossiê 30 anos sem Guimarães Rosa. São Paulo, nº 36, USP, 1997-98. p. 44.

23. Cf. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos . Belo Horizonte: Itatiaia, 1997. v. 1. p. 26.

24. Termo empregado apenas em grandesertão.br que não seria dissonante no texto de 1994

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