ANTONIO JARDIM
Introdução
O propósito
deste trabalho que aborda prioritariamente a Electra de Eurípedes é, além de
desenvolver uma tentativa de compreensão do texto em questão, poder
experimentar uma tentativa de compreensão do texto em relação à dois conceitos
fundamentais, que ao longo do nosso estudo acerca da semiologia do mito
estiveram sempre em posição de destaque: um, o próprio conceito de mito; o
outro o conceito de tragédia. Esses dois conceitos centrais são, a nosso ver
aqueles que podem possibilitar uma compreensão da Electra num contexto mais
amplo e mais interessante que o de mais uma mera história. Cremos mesmo que o
fato dessa obra permanecer ainda hoje dentro da tradição dramática ocidental,
se deva mesmo a que esteja contextualizada por uma compreensão capaz de tomar
as dinâmicas expressivas de mito e tragédia como referenciais e, desse modo, se
fazer, também ela Electra, de alguma forma, referencial.
Ora, uma
tragédia da dimensão artística e existencial de Electra, pode ser lida das mais
diversas maneiras e com as fundamentações mais várias, é óbvio, e assim tem
sido ao longo dos tempos. Isso, ao mesmo tempo que nos facilita, nos dificulta,
na empresa de trabalharmos não só sobre este, bem como sobre qualquer texto
desta dimensão. Pelo lado da facilidade, temos descortinadas diante de nós uma
série de informações relativas ao texto as quais podemos utilizar visto que se
encontram à nossa disposição . Essa facilidade é a um tempo a maior
dificuldade: como dizer algo a respeito de uma obra acerca da qual, ao menos em
princípio, quase tudo já foi dito? Como perceber novos sentidos onde, ao menos
aparentemente, todos já se apresentaram? A dificuldade de lidar com este tipo
de questão emperrou por algum tempo este trabalho e, ainda que isso não possa
se configurar relevante para quem neste momento possa estar iniciando a sua (do
trabalho) leitura, para nós é importante aqui falar a respeito. Um pouco talvez
ao modo do mito, falar sobre o problema parece ajudar a encontrar alguma
possibilidade mesmo que esta possa não ser exatamente uma nova possibilidade.
Por fim, deixando de lado o pavor advindo da possibilidade da impossibilidade
da empresa, resolvemos toma-la de frente. Encara-la como desafio, significa:
não mais fiar-se, tirar o fio, instigar, propor um combate, quase uma guerra -o
início de todas as coisas, já dizia Heráclito de Éfeso. Nesse sentido enfrentar
as impossibilidades deste trabalho é já de si des-afio.
Ao se abordar
Electra e tentar dizer algo de novo, na proposta do novo reside a proposição de
des-afiar-se, desenlear-se de uma abordagem de costume, de uma abordagem
fundada no senso comum e no bom senso. Disso podemos depreender que não há a
pretensão desta abordagem se localizar numa comunidade de sentidos, em geral e
em primeira instância atribuídos à obra em questão, bem como pode-se talvez
deduzir a ausência de um mínimo de bom senso de nossa parte.
A presença e a
exigência do novo tem, para nos um sentido de rompimento com o bom senso e com
o senso comum. É essa a nosso ver a possibilidade deste trabalho ter alguma
relevância tanto para quem o está escrevendo quanto para quem, eventualmente,
possa vir a lê-lo. Desse modo, uma abordagem nova é já de si uma tentativa de
romper com a cristalização de alguns conceitos, com algumas idéias nas quais
estão assentadas uma boa parte das abordagens da tragédia. Romper com a
cristalização é: romper com aquilo que tem face precisa e é capaz de refratar,
quer dizer: tem o mero poder de modificar as direções sem que, no entanto, nada
se altere substantivamente. Romper a precisão nos diz: romper soluções, romper
regularidades e invariâncias, romper com as representações facilitadoras, sendo
assim, não se trata, é preciso destacar, de mais uma tentativa de re-condução
ou re-definição dos rumos de um acercamento tradicional da tragédia, mas
trata-se sim de envidar esforços numa outra tentativa; romper com a precisão é,
todo o tempo, des-afio, significa: não é mudar o fio de lugar, mas é, como foi
dito, des-afiar o fio cortante da prescrição apriorística. No fim de contas é a
tragédia, ela mesma, que em última instância se vê constrangida a dizer o que
outros pensaram, e o que é pior, sem ter nada além da substantividade do seu
texto para opor.
Uma outra abordagem, diversa dos chavões psicanalíticos por exemplo, é o
apresentar-se de outras relações, e implica que nesse apresentar-se seja
imperiosamente necessária a exigência de um des-atrelamento de um sistema
apriorizante e caduco. Numa outra abordagem, a palavra outra, é que impõe o
novo como constância do libertar-se dos significados já pre-supostos, pela
operação de um re-articular-se com o mundo do texto em questão a partir da
possibilidade de viver a con-vivência da superação constante de limites, quer
dizer: instituição de uma dinâmica de sentidos. Para tal, faz-se, no nosso
entender, necessário que se invista na busca do princípio do fio para, só
então, des-fiá-lo, des-afiá-lo. Quando não se tem como afiar o fio, é aí mesmo
que se estabelece, se instaura des-afio.
Desta forma, o desafio é problematizar Electra a partir das seguintes
questões: Porque é legítimo se afirmar a presença de uma estrutura mítica em
Electra?
Quais as condições de possibilidade do mito, de que forma elas incidem
nesta obra de Eurípedes?
Porque é legítimo se dizer que Electra é uma tragédia?
E, conseqüentemente, que condições de possibilidade vigem no texto em
questão que nos permitem afirmar isso?
Onde procurar senão no texto mesmo e nas contingências de vigência
deste, os índices dessas condições?
É, dentro das nossas possibilidades, nesse percurso que a presente
tentativa de estudo pretende se colocar.
Condições de
possibilidade do mito
Dentro do percurso por nós traçado, tornou-se indispensável desenvolver
uma pequena reflexão sobre as condições de possibilidade de mito ser, de mito
de dar. Para tal nos baseamos em três autores e deles tentamos retirar, sem
nenhum tipo de comprometimento com suas escolas, aquilo de que necessitamos
para desenvolver nosso trabalho.
O primeiro desses autores é Mircea Eliade, para o qual o mito relata:
"um
acontecimento ocorrido num tempo primordial -o tempo fabuloso do
"princípio"-, o mito narra como uma realidade passou a existir, seja
uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento. É sempre, portanto, a
narrativa de uma "criação": ele relata de que modo algo foi produzido
e começou a ser. O mito fala apenas do que aconteceu efetivamente, do que se
manifesta plenamente." 1
O mito seria a partir desta acepção uma forma de viver e de pensar que
tenta alcançar a totalidade, e que tem por objetivo sempre o experimento dessa
totalidade. Além disso é decisivo destacar na concepção de Eliade a dimensão
temporal do mito, o tempo do mito é um tempo primordial, dessa forma tempo e
espaço no mito são apenas alcançados pela memória, que desse modo se configura
como integrante essencial do mito. É a memória que, em sua dinâmica,
possibilita a gama vária das versões. Mito assim, via memória, atualiza um
tempo e um, conseqüente, espaço primordiais.
Num outro sentido Max Müller, citado por Cassirer nos diz:
"Tudo a
que chamamos mito, é, segundo deu parecer, algo condicionado e mediado pela
atividade da linguagem: é, na verdade, o resultado de uma deficiência
linguística originária, de uma debilidade inerente à linguagem. Toda designação
linguística é essencialmente ambígua e, nesta ambigüidade, nesta
"paronímia" das palavras, está a fonte primeva de todos os mitos."
2
Com Müller nos
deparamos aqui com o que se poderia chamar uma outra dimensão do mito, este é
compreendido como integrante essencial da linguagem. Como uma
"deficiência" da linguagem, só que essa, por assim dizer deficiente
é, por outro lado, uma dimensão vigorosa desta. Sua debilidade se configura
como seu maior poder: o de não se deixar aprisionar nas malhas da univocidade.
Mais adiante
Müller volta a dizer:
"A mitologia é inevitável, é
uma necessidade inerente à linguagem, se reconhecemos nesta forma externa do
pensamento: a mitologia é, em suma, a obscura sombra que a linguagem projeta
sobre o pensamento, e que não desaparecerá enquanto a linguagem e o pensamento
não se superpuserem completamente: o que nunca será o caso." 3
A dinâmica
mito e linguagem na verdade acaba por demonstrar, na concepção de Müller,
"o poder que a linguagem exerce sobre o pensamento". Ao contrário do
que afirma Cassirer não vemos na concepção de Müller o mito como uma
"obscura sombra que a linguagem projeta sobre o pensamento", Müller
apresenta, a nosso ver, o mito como ocupante dos vãos, dos espaços não
pré-enchidos pelas realizações. Assim, o mito é transcendente e capaz de
prorromper pelos interstícios deixados pela impossibilidade de relacionamento
mecânico entre linguagem e pensamento. Quer nos parecer que o problema de
Cassirer em relação à compreensão da concepção de Müller diz respeito a acepção
negativa em que toma "obscura sombra". No entanto, cremos que a
obscura sombra que a linguagem exerce sobre o pensamento não deva ter sentido
necessariamente negativo. A obscura sombra diz, na verdade, de um
relacionamento de presença e ausência, significa: o mito, mesmo quando
inexplícito, não deixa de estar presente, sua presença é a um tempo ausência, o
mito fala mesmo ausente, dispõe de uma densidade própria do ausente, do
inexplicitado nas realizações. Ele vive e se configura realidade na
impossibilidade de um absoluto pre-enchimento da realidade a partir, e por
parte, das realizações. Aliás no final de seu "Linguagem e Mito" o
próprio Cassirer parece concordar com Müller quando afirma: "o mito recebe
da linguagem, sempre de novo, vivificação e enriquecimento interior, tal como,
reciprocamente, a linguagem os recebe do mito".
Por fim
chegamos a Levi-Strauss, e é com ele que passamos a pensar o modo de
relacionamento de mito e linguagem:
"o mito faz parte integrante
da língua; é pela palavra que ele se nos dá a conhecer, ele provém do
discurso... Se queremos perceber os caracteres específicos do pensamento
mítico, devemos pois demonstrar que o mito está, simultaneamente, na linguagem
e além dela. Esta nova dificuldade não é, também ela, estranha ao lingüista: a
própria linguagem não engloba níveis diferentes? Distinguindo entre a língua e
a palavra, Saussure mostrou que a linguagem oferecia dois aspectos
complementares: um estrutural, o outro estatístico; a língua pertence a um
domínio de um tempo reversível, e a palavra, ao domínio de um tempo
irreversível. Se já é possível isolar estes dois níveis na linguagem, nada
impede que possamos definir um terceiro.
Acabamos de definir a língua e a
palavra por meio dos sistemas temporais aos quais cada uma pertence. Ora,
também o mito se define por um sistema temporal que combina as propriedades dos
dois outros. Um mito diz respeito, sempre, a acontecimentos passados:
"antes da criação do mundo", ou "durante os primeiros
tempos", em todo caso "faz muito tempo". Mas o valor intrínseco
atribuído ao mito provém de que estes acontecimentos, que decorrem supostamente
em um momento do tempo, formam também uma estrutura permanente." 4
Na sua
caracterização do mito Levi-Strauss, avança em relação a Max Müller, sem dúvida
já que além de compreender o mito como presença constante na linguagem,
demonstra que além disso, essa presença pode ser tanto estrutural quanto
estatística. O mito pode ainda apresentar um terceiro nível, segundo
Levi-Strauss:
"Esse terceiro nível possui
também uma natureza linguística, mas é, entretanto, distinto dos outros dois...
A substância do mito não se encontra nem no estilo, nem no modo de narração,
nem na sintaxe, mas na história que é relatada. O mito é linguagem; mas uma
linguagem que tem lugar num nível muito elevado, e onde o sentido chega se é
lícito dizer a decolar do fundamento linguístico sobre o qual começou rolando."
5
Assim o mito
se caracteriza por um modo peculiar de presentação. Ele é latente em todos os
proferimentos do mundo e se situa em relação ao mundo das realizações, de certa
forma, como o outro desse mundo, o mito é condição de possibilidade que por
contradição instaura o outro, ele estabelece sempre e mais um espaço de
proferição a cada proferição. Ele é, no seu modo de presentificar-se,
presentificador de uma estrutura sempre possível de se manifestar, uma vez que
é revelador de um novo limite no espaço do discurso, uma vez que ele se
configura realidade justamente a partir da impossibilidade do discurso tudo
dizer. Ele é diferença virtual presente na tensão característica entre qualquer
instância da realidade e a realidade mesma. Ele é o inesperado que
intermitentemente permite e conduz à percepção da experiência da espera. É
intermitência. O mito é um tipo especial de síntese que não é capaz de dar
conta da resolução de uma contradição, ao contrário, o mito é síntese-tensão na
medida em que se localiza num espaço onde é sempre fator de diferença, e se
revela na impossibilidade da dedução analítica: "Tudo pode acontecer num
mito; parece que a sucessão dos acontecimentos não está aí sujeita a nenhuma
regra de lógica ou de continuidade." Tendo por características a
intermitência e a dualidade presença-ausência, a repetição acaba por ser, no
mito, o meio de manifestação de sua estrutura própria.
Uma última
característica devemos destacar no mito o seu caráter de exemplaridade. O mito
é exemplar.
Chegando a
este ponto e contando com as caracterizações acima podemos tentar um
entendimento do mito que possa nos servir como meio de análise da Electra de
Eurípedes, objeto deste trabalho. Para isso, segundo as caracterizações acima,
dividiremos o mito em duas instâncias: a narrativa mítica, que obedece a uma
estrutura segundo nos mostra Levi-Strauss; e a dinâmica mítica, segundo nos
apresenta Max Müller. É óbvio que essas duas instâncias do mito estão
interligadas, a necessidade de as diferenciar surge aqui em função de que a
presença do mito, sendo co-presente em qualquer enunciação revela uma dimensão
determinada do mito. A narrativa outra. Queremos dizer: numa narrativa trágica,
por exemplo, existem uma série de características que a peculiarizam enquanto narrativa
trágica, a presença da dimensão mítica se dá então de uma forma diversa daquela
presente numa narrativa mítica. Como afirma o próprio Levi-Strauss a substância
do mito não se encontra no estilo, nem na sintaxe, nem no modo de narração.
Sendo assim, a possibilidade do mito "decolar" de uma narrativa
qualquer é que ele tenha uma dimensão de presença-ausência no espaço de
qualquer forma narrativa. Uma coisa é contar um mito, outra é perceber a
dinâmica pirilampejante, presença-ausência, do mito numa estrutura narrativa
outra que não ele mesmo. Onde, em que ínfima brecha procurar? Esse parece ser o
desafio maior numa tentativa de análise que persiga a presença do rastro mítico
em qualquer tipo de enunciação. Perceber presença numa densidade tão presente e
ao mesmo tempo tão silenciosa e tão intersticial é a dificuldade. Como tornar o
pequeno vazamento turbilhão? Poderia ser essa a forma de tentar traduzir a
tarefa que se impõe quando se trata do mito.
Condições de possibilidade do
trágico
Dentro da estrutura
pensada para este nosso trabalho, da mesma forma que fizemos com o mito
tornou-se igualmente necessário para nós desenvolvermos uma reflexão sobre as
condições de possibilidade do trágico. Do mesmo modo que anteriormente fizemos
vamos nos basear em algumas citações sem que isso queira significar qualquer
tipo de adesão às escolas esposadas por qualquer autor.
Começaremos
com Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet, que no livro Mito e Tragédia na
Grécia Antiga, num artigo "Édipo sem complexo" propõem uma
caracterização do trágico:
"... o efeito trágico não
reside em uma matéria, mesmo onírica, mas na maneira de dar forma à matéria,
para fazer sentir as contradições que dilaceram o mundo divino, o universo
social e político, o domínio dos valores, e fazer assim aparecer o homem como
um qauma, um deinon, uma espécie de monstro incompreensível e
desconcertante, ao mesmo tempo agente e paciente, culpado e inocente, dominando
toda a natureza por seu espírito industrioso e incapaz de governar-se, lúcido e
cegado por um delírio enviado pelos deuses. Contrariamente à epopéia e à poesia
lírica, onde jamais o homem é apresentado enquanto agente, a tragédia situa,
logo de início, o indivíduo na encruzilhada da ação, face a uma decisão que o
engaja por completo; mas essa inelutável escolha opera-se num mundo de forças
obscuras e ambíguas, um mundo dividido onde "uma justiça luta contra outra
justiça", um deus contra outro deus, onde o direito nunca está fixo, mas
desloca-se no decorrer mesmo da ação, "vira" e transforma-se em seu
contrário. O homem acredita optar pelo bem; prende-se a ele com toda a sua
alma; e é o mal que ele escolheu, revelando-se, pela polução da falta cometida,
um criminoso.
É todo esse jogo complexo de
conflitos, de reviravoltas, de ambigüidades que é preciso apreender através de
uma série de distâncias ou de tensões trágicas: tensões no vocabulário, onde as
mesmas palavras tomam um sentido oposto na boca dos protagonistas que as
empregam, segundo as diversas acepções que a língua religiosa, jurídica,
política, comum, ora projetada no longínquo passado mítico, herói de uma outra
época, encarnando toda a desmedida dos antigos reis da lenda, ora vivo na época
da cidade, como um burguês de Atenas, no meio de seus concidadãos; tensão no
interior de cada tema dramático, todo ato, como desdobrado, desenrolando-se em
dois planos: de um lado, no nível da vida quotidiana dos homens; de outro, no
nível das forças religiosas, que obscuramente agem no mundo." 6
Observamos que
o trágico, no entender dos autores acima citados, está comprometido com a
tensão, e a manutenção da tensão é o fator determinante. A tensão entre o
sabido e o desconhecido, entre o vigente e o porvir. Configurar-se nessa tensão
e na impossibilidade de resolvê-la é um traço revelador do sentido trágico. No
trágico a tensão é estrutural, se ela desaparece, desaparece com a própria
tragédia. É ainda na mesma fonte acima citada que encontramos um
desenvolvimento do sentido trágico:
"Para que haja consciência
trágica, é preciso, com efeito, que os planos humano e divino sejam bastante
distintos para se oporem (isto é, que se tenha destacado a noção de uma
natureza humana), sem deixar, no entanto, de aparecer inseparáveis. O sentido
trágico da responsabilidade surge quando a ação humana já é o objeto de uma
reflexão, de um debate interior, mas não adquiriu uma ainda uma posição
suficientemente autônoma para bastar-se plenamente. O domínio próprio da
tragédia situa-se nesta zona fronteiriça, onde os atos humanos vêm articular-se
com as potências divinas, onde eles revelam seu sentido verdadeiro, ignorado
por aqueles que tomaram a iniciativa e carregam a responsabilidade deles,
inserindo-se numa ordem que ultrapassa o homem e lhe escapa. Toda tragédia
desenrola-se, portanto, necessariamente sobre dois planos. Seu aspecto de
investigação sobre o homem, como agente responsável, tem apenas valor de
contraponto em relação ao tema central." 7
Visto dessa
forma o trágico carrega consigo um componente de destinação, significa: o
querer ainda não se separa do dever. A configuração trágica se confecciona
conjunção-disjunção todo o tempo.
Enquanto que
no mito, por exemplo, "tudo pode acontecer", no trágico vigora uma
determinação-tensão que precisa ser cumprida. Este cumprimento, por sua vez,
não se apresenta como cumprimento de um dever moderno, de forma rotineira,
mecânica, habitual. O dever é dotado de um carga de excepcionalidade; o
assassinato trágico não é, por exemplo, um assassinato de dia a dia, a morte
também não, a tensão gerada por esses acontecimentos, de certa forma mantém
vivo aquele que morre. A morte trágica é um tipo peculiar de revivescência, não
é puro e simples extermínio, pura e simples supressão. A dilaceração está
sempre implícita na ocorrência trágica, e isto se deve a que na trama trágica a
disjunção ao ocorrer provoca uma fratura, uma quebra extraordinária em uma
inquebrável conjunção prévia.
Desse modo,
está presente de forma muito marcada as dimensões sacrificiais e rituais. O
acontecimento trágico, do mesmo modo que tudo na tragédia, tem necessariamente
que se assumir como ritos. Ritos de morte e de vida. Nos ritos, nas
celebrações, a constante é a presença do sacrifício. A cada momento ritos e
sacrifícios preparatórios tomam a cena, até que o clímax é alcançado no
sacrifício final onde o rito principal é celebrado.
A própria
palavra tragédia traz em si a presença ritual e sacrificial. Na medida em que
significa "canto ao bode". Para alguns autores, segundo Sílvia de
Moraes,
"... a tragédia recebeu este
nome porque se sacrificava um bode a Dioniso. Este bode era um animal sagrado,
identificado com o próprio deus, nas festas religiosas, por ocasião da colheita
da uva. Dioniso, em uma de suas aventuras, transforma-se em bode, para fugir da
perseguição dos Titãs, mas apesar disso foi devorado. Dioniso ressuscita porém,
na forma de um farmako" - bode imolado para a purificação da
"pólis"... Gostaríamos de chamar atenção ... farmako" é um
termo de dupla ambigüidade: ao nível do significante, relaciona-se com farmakon -toda
substância através da qual se altera a natureza de um corpo, de modo benéfico
ou maléfico; tanto cura quanto mata; ao nível do significado, enquanto é puro e
sagrado recebe os males, a violência; depois de impuro, purifica; a vítima
sacrificial é sagrada porque vai purificar toda uma comunidade -é kaqarma, porém torna-se kakon
um mal e deve ser expulsa e/ou morta, porque fez convergir para si todos os
malefícios de outrem." 8
Como se pode
constatar o sentido sacrificial está, de uma forma ou de outra, na tragédia,
dentro da própria etimologia da palavra. Mais uma vez somos obrigados a
destacar a permanência da tensão como uma característica essencial da tragédia,
no rito, no sacrifício, na imolação do bode expiatório, não há nada que
assegure a expiação, o farmako" altera um
estado anterior para melhorar ou piorar. Pode ser remédio ou veneno. O
sacrifício trágico se reveste com características semelhantes, ele deve ser
realizado, mas só depois de realizado é possível se compreender a sua dimensão.
A conseqüência pode ser tanto a graça quanto uma desgraça ainda maior. Muitas
vezes por detrás da aparente expiação se instala um movimento ainda mais
deletério, mais fragmentador, que impossibilita que a conjunção por vir seja
alcançada. No remédio mesmo habita o irremediável, e o sentido trágico se
coloca exatamente nesse fio que, invisível, não é capaz de estabelecer a
medida. O trágico [1] é
desse modo risco por não poder determinar a demarcação deste, e é nessa
impossibilidade que a tensão se instala como caracterizadora essencial do
sentido trágico.
Transcrição das seqüências
Nesse ponto de
nosso trabalho passamos a fazer as transcrições das seqüências. Em princípio
pensamos em fazê-las apenas da Electra de Eurípedes, no entanto optamos por
fazer as transcrições das duas obras-referência, isto é: das Coéforas de
Ésquilo e da Electra de Sófocles. Queremos crer que desse modo o estudo da obra
de Eurípedes pode se apresentar mais completo, além de, para nós tornar mais
fácil a apresentação das diferenças entre as versões dos três tragediógrafos.
Não
obedeceremos, no entanto, à ordem cronológica. A Electra de Eurípedes aparecerá
primeiro, pois é o objeto principal deste estudo, sendo seguida pela obra de
Ésquilo, vindo por fim a de Sófocles.
1. Seqüências
da Electra de Eurípedes
1.1 O
assassinato de Agamêmnon. A cena é aberta com o trabalhador, esposo imposto à
Electra, narrando a trajetória que precede os acontecimentos que se estão por
iniciar. Retornando vitorioso da guerra de Tróia, Agamêmnon chega a Argos onde
é recebido por Tíndaris (Clitemnestra). Esta o atrai para uma cilada onde
Egisto, seu amante, o mata. Orestes escapa de ser morto ao ser salvo por um
velho que havia sido preceptor de seu pai. Electra é dada em casamento ao
trabalhador como uma forma de evitar que pudesse gerar uma descendência nobre
que viesse tomar a si a vingança de Agamêmnon.
1.2 O encontro
de Orestes e Electra. Orestes nota a aproximação de Electra, toma-a por uma
escrava. O coro comunica a Electra que algumas festividades deverão se realizar
e apela no sentido de que ela participe das festividades, quando dois homens se
aproximam, são Orestes e Pílades ainda incógnitos. Orestes aproxima-se e sabe
de Electra que esta está casada com um trabalhador que, em verdade, não a toma
por esposa por não reconhecer o direito de quem a deu a ele, por esposa, de o
fazer. Electra afirma que mesmo que visse Orestes seria incapaz de
reconhecê-lo, e que só o velho que o salvou da morte o reconheceria. O
trabalhador, esposo de Electra retorna e é enviado por esta a chamar o velho
preceptor de Orestes para que este também tenha notícias dele através do
desconhecidos. O velho ao chegar informa ter visto no túmulo de Agamêmnon um
sacrifício em sua homenagem e madeixas de cabelo louro e exorta Electra a
fazer um reconhecimento das pegadas comparando-as aos seus pés. Orestes se
junta a eles e reconhecido pelo velho, e o encontro se converte em
reconhecimento.
1.4 Orestes
retorna do campo. Orestes chega à casa de Electra trazendo o corpo de Egisto.
Electra faz um longo discurso insultando o cadáver que é transportado para o
interior da casa.
1.7 Aparecem
os Dióscuros. Em meio às lamentações de Orestes e Electra, surgem os Dióscuros.
que reordenam as coisas, recomendando que Orestes dê Electra como esposa a
Pílades, e que Orestes se vá de Argos para Atenas, para se por a salvo das
Eríneas que se aproximam. Os dióscuros prevêem a absolvição de Orestes no
Aerópago e atribuem às culpas ancestrais a desgraça dos dois.
2. Seqüências
das Coéforas de Ésquilo
2.1 O retorno
de Orestes. Orestes e Pílades chegam ao túmulo de Agamêmnon. Orestes rende
homenagem ao pai, e percebe a aproximação de algumas mulheres que vêm trazer
libações. Entre estas reconhece Electra, sua irmã e apela a Zeus que lhe
conceda a ventura de vingar a morte do pai.
2.2 Electra
vai ao túmulo de Agamêmnon. Ao derramar as libações sobre o túmulo do pai
Electra se depara com uma mecha de cabelo que lhe faz pressentir a presença de
Orestes. Percebe também um segundo indício nas pegadas encontradas junto ao
túmulo.
2.3 O encontro
de Orestes e Electra. Orestes aparece seguido por Pílades e o reconhecimento de
Orestes por Electra ocorre depois que Orestes apresenta à Electra o manto por
ela tecido.
2.4 O sonho de
Clitemnestra. Corifeu narra a Orestes o sonho
3. Seqüências
da Electra de Sófocles.
3.1 Orestes
chega ao palácio. Acompanhado por Pílades e pelo preceptor, Orestes chega ao
palácio. Se propõe a cumprir o oráculo e traça imediatamente os planos para
cumpri-lo. Escuta os lamentos de Electra, com esta ainda dentro do palácio.
3.2 Electra
renova seu compromisso. Electra sai do palácio, relembra o assassinato do pai,
e renova o seu propósito de não deixar esquecer o pai e vinga-lo.
3.3 Aparece
Crisótemis. Crisótemis, irmã de Electra, sai do palácio e depois de um áspero
diálogo com esta, lhe diz das intenções de Egisto e Clitemnestra de encerra-la
viva se Electra não reformular o seu comportamento com a mãe e o padrasto.
Informa também que Clitemnestra se viu atormentada por um sonho
3.4 Discussão
entre Electra e Clitemnestra. Clitemnestra sai do palácio e encontra Electra.
Um diálogo entre ambas se processa com Clitemnestra tentando justificar o
assassinato do marido.
3.7 O
encontro. Orestes e Pílades voltam à entrada do palácio e encontram Electra.
Esta lhes faz um longo relato de seus sofrimentos e de seu estado atual.
Orestes se compadece e acaba por se identificar mostrando a Electra o anel de
Agamêmnon.
Exposição das diferenças
Dentro da
perspectiva de tentar responder às questões formuladas na introdução deste
trabalho, e conseqüentemente, tentar entender o relacionamento de Electra com o
mito e o trágico, passamos agora a expor as diferenças entre as três versões de
Electra, a de Eurípedes, a de Sófocles e a mesma temática exposta nas Coéforas
de Ésquilo, para isso, vamos nos utilizar da transcrição de seqüências que
realizamos nas três obras.
As diferenças:
Enquanto
Ésquilo dá de início a palavra a Orestes e este, acompanhado por Pílades, junto
ao túmulo de Agamêmnon lhe rende homenagem.
Sófocles
introduz Orestes na cena inicial mas sem lhe dar a palavra, já que é o
preceptor quem inicia um diálogo com Orestes indicando-lhe os lugares da cidade
que Orestes foi obrigado a deixar há muito tempo.
Eurípedes tem
necessidade de um narrador que informe com detalhes os precedentes da trama que
se vai seguir. Ainda que isto ocorra de uma forma ou de outra nas três versões,
é nítida a preocupação de Eurípedes de que sua narrativa tenha um encadeamento
lógico. Os pressupostos por isso são imediatamente apresentados.
Nas Coéforas o
encontro é preparado com Electra encontrando primeiramente uma mecha de cabelo
que ela acredita ser de seu irmão, bem como observa a semelhança das pegadas
encontradas junto ao túmulo com as suas,
Em Sófocles o
encontro se dá quando a narrativa já está bem avançada, o encontro ocorre bem
próximo da morte de Clitemnestra, a prova apresentada é um anel pertencente a
Agamêmnon para que Orestes se faça reconhecer.
Nas Coéforas a
morte de Egisto é precedida por dois momentos: Orestes toma conhecimento,
através de Corifeu, do sonho premonitório
Em Sófocles a
morte de Egisto sucede à morte de Clitemnestra e antes que isso ocorra é
introduzida a figura de Crisótemis, irmã de Electra, como aquela que sabe das
intenções de Egisto e Clitemnestra de matarem Electra. Crisótemis desempenha
ainda um outro papel relevante na trama pois encontra vestígios da presença de
Orestes e comunica-o a Electra, que não crê, pois acabara de ouvir o relato do
preceptor dando conta da morte de Orestes.
Em Ésquilo
Orestes, embora um tanto relutante ante os apelos de Clitemnestra, acaba por
mata-la quando lembrado por Pílades do oráculo de Delfos. Depois de matar a mãe
Orestes é perseguido pelas Eríneas e foge da cidade.
Em Ésquilo a
participação mais decisiva de um co-adjuvante é a de Pílades que recorda a
Orestes o oráculo que prescreve a vingança.
Já em Sófocles
pode-se destacar o preceptor e Crisótemis.
Em Eurípedes o
velho preceptor é decisivo tanto ao reconhecer Orestes quanto ao lhe fornecer
as informações para que este mate Egisto.
Enquanto nas
Coéforas Electra é aquela que vela pela manutenção do ódio e da necessidade de
vingança com referência aos assassinos de seu pai.
Em Eurípedes
vamos encontrar Electra reduzida a esposa de um trabalhador e podemos perceber
um tom um tanto ressentido nas falas da personagem. Esse fato altera o seu
papel e ao ódio devotado aos assassinos de seu pai se soma o ressentimento
proveniente da humilhação sofrida pela queda de sua posição social.
É evidente que
outras diferenças, talvez mais sutis aparecem num comparação mais detida dos
textos em questão, essas são as que destacamos nessa nossa primeira abordagem
dessas tragédias. Poderíamos mesmo localizar o objeto deste trabalho em apontar
outras diferenças, mas não optamos por isso. Essas diferenças, do mesmo modo
que a transcrição de seqüências tem para nós um sentido de mapeamento elementar
para que possamos a seguir desenvolver a análise que pretendemos de tragédia
Análise de
Electra: estabelecimento dos meios
Neste nosso
trabalho temos até aqui desenvolvido uma caracterização do mito, bem como uma
caracterização do sentido trágico. Essas duas caracterizações só agora, na
estrutura pela qual optamos passam a fazer sentido. A partir dessas
caracterizações é que estabelecemos uma primeira dualidade que nos servirá para
realizarmos a análise da Electra de Eurípedes. Nossa idéia original era a de
analisarmos um trecho da obra, porém no decurso do trabalho foi tomando forma
uma outra idéia a de analisarmos os personagens a partir do seu comprometimento
maior ou menor com os dois princípios que instituímos como pontos de partida: o
mítico e o trágico.
A essa
dualidade elementar superpusemos uma outra de forma ternária que pretende dar
conta do esquema funcional das personagens. Nesse sentido, então os personagens
da tragédia podem, numa relação com índices determinados tanto por
características essenciais deles próprios ou então por relacionamento com o
conjunto de acontecimentos da tragédia,
ser pensados com respeito ao seu papel na trama. Os acontecimentos, por
sua vez, se relacionam com essa estrutura elementar que se ordena em dois
eixos: o eixo dos princípios e o eixo das funções.
O eixo dos
princípios
Para
estabelecermos o que chamamos de eixo dos princípios partimos de alguns
pressupostos. O primeiro deles foi que mito e tragédia não eram a mesma coisa,
não poderiam, portanto, ser confundidos. Por outro lado entendemos que entre
mito e tragédia se desenvolvia, ao menos no contexto de nosso estudo, uma
oposição. Não exatamente uma contradição mas uma oposição com características
de complementaridade no âmbito da narrativa. Significa: a conjugação de mito e
tragédia dimensiona acontecimentos e personagens, estrutura narrativa e
estrutura das personagens.
O eixo das
funções
Estabelecemos
o eixo das funções partindo de uma espécie de modo de produção dos efeitos, que
também pode ser entendido como modo de produção dos acontecimentos ou dos
comportamentos, ou ainda dos compromissos. Enfim esse modo de produção se
articula a partir do processo desenvolvido, processo este que é composto por
três instâncias fundamentais: a instância do agente, no sentido em que os
gregos compreendiam o verbo poiew, isto é, aquele que faz nascer a ação, dá
origem à ação; a instância do objeto, no sentido em que os gregos compreendiam natikeimai, isto é, o
que está situado em face de, e o que se presenta como um modo de opor
resistência; a instância do efeito, no sentido em que os gregos compreendiam ergon, isto é, o
resultado de ações, o produto de uma trama, aquilo que se concretiza, se
realiza. (Para verificar o esquema dos eixos ver anexo).
Os nomes e
seus significados
Além da
análise operada nos dois eixos acima prenunciados nos pareceu estimulante
tentar um percurso etimológico através dos nomes da obra de Eurípedes. Fomos
para isso estimulados pela possibilidade de depreender sob a representação do
nome traços que sejam capazes de dar aos personagens um comprometimento mais
estreito em relação ao seu comportamento. O nome em qualquer estrutura social,
e ao longo dos tempos tem se configurado, no mínimo, um extraordinário índice.
Segundo Cassirer, para os esquimós, o homem se compõe de três partes: seu
corpo, sua alma, e seu nome. Por outro lado é ainda o próprio Cassirer que nos
informa: "Sob a lei romana, os escravos não tinham direito a nome, porque não podiam funcionar
como personalidades independentes."
Dessa forma
pensamos poder realizar a análise da Electra de Eurípedes e conseguir aquilo
que seria decisivo para nós, isto é: acabar este trabalho de forma diferente da
que nele entramos, seja com respeito ao que é a obra em questão, seja com
referência à tragédia enquanto forma de expressão tão significativa da cultura
ocidental.
Electra mito e
tragédia -Análise
Neste ponto
realizamos a análise propriamente dita da Electra de Eurípedes e, como já
dissemos anteriormente, na obra o que será analisado serão as personagens em
relação aos dois eixos que estruturamos como forma de entender o papel
desempenhado na tragédia por esses personagens. No eixo dos princípios temos a
dimensão do mítico e a dimensão do trágico. No eixo das funções temos uma
estrutura ternária: a função de poiew, a
função de antikeimai, e a função de ergon, isto é: funções de agente, objeto
e efeito ou produto.
Procederemos a
análise da Electra de Eurípedes respeitando a ordem de importância das
personagem reservando para o final o quarteto Electra, Orestes, Clitemnestra e
Egisto.
A primeira
personagem a aparecer em cena é o trabalhador micenense. Este personagem
se apresenta como periférico aos eixos escolhidos para enfocar a obra, não se
pode dizer que sua participação seja a de um agente mítico ou trágico, não
chega a ser por outro lado objeto mítico ou trágico. É uma personagem de
encadeamento das ações. O seu papel é muito mais de configurar os pontos de
referência prévios para o entendimento da dinâmica da trama. É utilizado como
efeito de comunicação entre o autor e o público.
O ancião, ainda que não se caracterize como uma
personagem pertencente a nenhum dos eixos, desempenha um papel relevante no
interior da narrativa pois desempenha duas importantes: reconhece Orestes e
auxilia este a encontrar e matar Egisto, não chega a dar origem a uma ação o
que o caracterizaria como agente, mais é um meio de interligação dos
personagens.
O mensageiro é outra personagem que desempenha um papel de
interligação não apenas entre os personagens, mas dos elementos da própria
narrativa.
Pílades na tragédia de Eurípedes é um personagem
acessório, e em momento nenhum chega a ter qualquer intervenção direta na ação.
A ele é apenas reservado o papel de receber Electra de Orestes, permitindo
assim que se restabeleça o que Levi-Strauss chamaria de estrutura elementar de
parentesco e devolvendo a legitimidade da organização familiar desestabilizada
com o assassinato de Agamêmnon. Talvez numa análise que visasse investigar
essas relações na obra sua presença pudesse ser tomada em maior consideração.
O coro desempenha um papel relativo ao senso comum e
sua característica volatibilidade. Vaga do clamor à vingança até a condenação
desta mesma vingança. O coro é a presença do externo na trama e o seu
compromisso, como nem poderia deixar de ser, é tênue. Não é agente, não é
objeto, nem é efeito, trágico nem mítico.
Os
Dióscuros, estes são agentes
míticos. O tom oracular de sua intervenção põe de volta ordem às coisas, mas a
ordem re-instaurada é uma ordem transcendente, não é uma ordem com dimensão
meramente ôntica. Trata-se de uma ordem dos deuses e dos desígnios, uma ordem
na destinação, e é precisamente isso que os configura e confirma como agentes
míticos.
Egisto é um personagem que não se apresenta
Clitemnestra se apresenta como um objeto trágico,
exatamente por tudo aquilo que Egisto não o consegue ser, significa: ao se
apresentar como objeto da vingança dos filhos, Clitemnestra, chamada Tíndaris em
Eurípedes, se configura como uma personagem que evolui de agente trágico em
Agamêmnon para objeto trágico
Orestes é um agente trágico uma vez que é ele
responsável pela ação de maior grau de tensão e conflito da tragédia, a morte
de sua mãe. Enquanto agente sacrificial, imolando em rito sua própria mãe, é aí
mesmo que Orestes ganha a dimensão de agente trágico. A morte de Egisto, pura e
simplesmente seria insuficiente para lhe dar a função de agente e a dimensão de
trágico, a vingança da morte de seu pai nada mais seria do que o cumprimento de
uma lei, isto é, seria normal portanto. Sua ação é a de agente e sua dimensão
de trágico.
Electra é um agente mítico. É memória e verdade
(alétheia) de si mesma de Orestes e dos Atridas. Fator principal de
atualização, no sentido de tornar ato a maldição, já que não permite que o
esquecimento encubra a morte de Agamêmnon. Tem dimensão mítica, mas não chega a
ter dimensão trágica, embora, por vezes chegue perto dessa dimensão. Não é
casual portanto que quando se refira a um mito nesta história ele tenha o seu
nome.
Análise onomástica
Para encerrar
este trabalho, nos pareceu que uma análise etimológica dos nomes de Electra e
Tíndaris (Clitemnestra em alguns momentos da obra de Eurípedes) seria um bom
complemento e que poderia mesmo trazer maiores subsídios para análise acima
desenvolvida, além de nos auxiliar nas questões temáticas para nós apresentadas
no início deste trabalho.
CLITEMNESTRA
Tratada
inicialmente, no prólogo do trabalhador miceniense, por Tíndaris, que significa
aquela que deve, e precisa pagar, a personagem carrega consigo essa destinação
de ter que pagar, ter que expiar, ser o bode expiatório
Por outro
lado, Clitemnestra vem da junção de klitos + mnester, significa: desejo de
celebridade, desejo de ser célebre, bem como pode significar desejo de se
casar. Ambos os significados têm relação à personagem, a ambição e o desejo de
compartilhar novamente seu leito nupcial, de certo modo levam Clitemnestra a
traçar a sua destinação.
ELECTRA
Em primeiro
lugar devemos dizer que o nome originário de Electra era Laodice. O nome
Electra só aparece nas tragédias, o que tem coerência se analisarmos
etimológicamente os dois nomes.
O nome Laodice
é composto por Lao + dike, significa: justiça pública, justiça do povo,
portanto uma justiça pré-jurídica, uma justiça da tradição. Nas tragédias
contemporâneas da presença de uma justiça da pólis, uma justiça de tribunal,
parece ser este fato, um razoável indicador da preferência de Electra à
Laodice.
Por outro lado
o nome Electra deriva da mesma raiz que elctron que significa âmbar; por sua
vez âmbar é uma substância sólida de cheiro almiscarado, proveniente das
vísceras do cachalote; almíscar vem do persa mushk que significa
testículo, e também é uma substância odorífera de sabor amargo e cor amarelada
muito volátil e utilizada em perfumaria e farmácia..
Ora, a
personagem Electra tal como é enunciada na tragédia de Eurípedes carrega
consigo uma boa parte das características de sua raiz etimológica. Senão
vejamos: comecemos pela cor o amarelo embora não seja em momento nenhum
enunciado na obra pode ser caracterizador de uma personagem cotidiana e sem
brilho, corroída pelo ressentimento na qual foi convertida Electra na obra em
questão; por outro lado a proveniência intestina do almíscar de alguma forma se
aplica à visceralidade com que a personagem mantém presente a necessidade de
que a vingança se realize, e tenha continuidade a maldição dos Atridas -efeito
mítico- na morte de Egisto, bem como de sua mãe Clitemnestra -efeito trágico.
Na proveniência dos testículos o fundo comprometimento com o pai -compromisso
mítico. O sabor amargo da angústia acalentada por tanto tempo também é
presente.
Conclusão -Electra: tragédia e
mito?
Quando da
leitura que fizemos das três obras clássicas para a realização deste trabalho,
uma questão de início se apresentava com insistência, em especial quando da
leitura da obra de Ésquilo: Por que Electra? Por que Electra se quem pratica a
ação é Orestes? Talvez essa tenha sido a questão que acabou por tornar possível
esta tentativa de compreensão. A questão, ainda que algumas vezes se apresente
para nós mesmo como ingênua, algumas vezes parece fazer algum sentido, afinal,
no caso de Ésquilo não só a obra não se chama Electra, como se encontra dentro
de uma trilogia chamada Oréstia. Esse móvel inicial, no entanto, não gera agora
o mesmo incômodo gerado de início, com certeza, não sei se porque conseguimos
apreender melhor o sentido das tragédias ou se, ao contrário, as estamos
entendendo bem menos agora. O fato é que depois de operarmos a análise acima,
tornou-se mais claro para nós porque o mito nunca poderia ser mito de Orestes,
por outro lado mesmo que Electra, ainda que não tenha a mesma dimensão de um
Édipo, que a nosso ver consegue ser a um tempo agente mítico e agente trágico,
Electra dizíamos está situada na dimensão mítica, é nessa dimensão que sua força
maior se apresenta, e isto, de certa forma nos responde a questão anteriormente
formulada: Porque a tragédia de Ésquilo não se chama Electra.
A realização
das análises acima acabaram por nos apresentar uma justificativa razoável par
que Ésquilo não tenha nomeado sua tragédia com o nome do agente mítico, e ao
invés tenha preferido o nome do agente trágico para nomear não apenas uma obra
mas toda a trilogia.
A elaboração
deste trabalho, enfim, teve para nós uma grande relevância independentemente da
correção ou não do encaminhamento adotado e das conclusões alcançadas. Como já
foi aliás, afirmado acima saímos do trabalho de uma forma diversa daquela que
nele entramos, significa: a nossa relação com a tragédia efetivamente foi
transformada. Cremos que, ao menos sob o ponto de vista de quem realiza um
trabalho nada mais pode ser alcançado.
NOTAS
1. Ver M. Eliade, 1972, p.11
2. Ver E. Cassirer, 1972
3. idem.
4. Ver C. Levi-Strauss, 1975.
5. idem.
6. Ver J.P. Vernat e P. Vidal-Naquet, 1988.
7. idem.
8. Ver S. A. Moraes, 1986.
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