O Rei apalhaçado de Bumba-meu-boi:

 

 

O circo é magia que nasce e morre na noite do espetáculo. Desde a infância, Ariano Suassuna tem verdadeiro encantamento pelos circos sertanejos que passam pela cidade de Taperoá. Infância que vivia no encontro entre o riso do circo que passava pela cidade e a religiosidade do colégio protestante onde estudava. Ambos reconciliadores em sua vida. Tal paixão o faz construir o seu próprio circo, erguido com a lona e as estacas de suas palavras, de sua arte: a literatura. “A literatura é a minha festa: é lá que eu canto e danço”, diz Suassuna.

Através de sua obra, Suassuna mostra o mundo como um vasto picadeiro onde o palhaço é o homem, é a alma do circo. No artigo O Teatro, o Circo e Eu da Folha de São Paulo de 23 de outubro de 1977, ele diz o seguinte:

 

O Circo é, portanto, uma das imagens mais completas da estranha representação da vida, do estranho destino do homem sobre a terra. O Dono-do-Circo é Deus. A arena, com seus cenários de madeira, cola e papel pintado, é o palco do mundo, e ali desfilam os rebanhos de cavalos e outros bichos, entre os quais ressalta o cortejo do rebanho humano – os reis, atores trágicos, dançarinas, mágicos, palhaços e saltimbancos que somos nós.

 

 

 

O palhaço está no centro do picadeiro desse circo em metáfora; é o mediador do trágico e do cômico da vida e representa as dicotomias da alma humana nas figuras do palhaço augusto e do palhaço branco . O branco é sério, autoritário e dominador. O augusto é, sobretudo, anárquico.

O cineasta italiano Federico Fellini num artigo sobre seu filme “Palhaços” (I Clowns – 1970) diz que o augusto é o adulto e o branco é a criança. Nesse sentido, Ariano, através do narrador Quaderna, em movimento pendular (adulto-criança, parafraseando Fellini), monta, pesa, desconstrói (em cambalhota) e ri do seu próprio discurso e das reverberações que ele causa. É que branco e augusto vivem lado a lado no Palhaço-Suassuna . É também Fellini que lembra que o branco “é a elegância, a graça, a harmonia, a inteligência, a lucidez, que se propõem de forma moralista, como as situações ideais, únicas, as divindades indiscutíveis” . Então, o augusto vê no branco , lantejoulas cintilantes e se encanta com tais perfeições e brilhos, não fossem elas ostentadas com tanto rigor e vaidade. E como, assim, esse brilho se torna um fardo pesado e inalcançável, o palhaço augusto , que é a criança, entra em cena, revolta-se ante tanta “perfeição”, e “rola no chão e na alma”. Nas palavras de Fellini: “essa é a luta entre o orgulhoso culto da razão – onde o estético é proposto de forma despótica – (...) e a liberdade do instinto (...) São, em suma, duas atitudes psicológicas do homem, o impulso para cima e o impulso para baixo, divididos, separados” .

Diz Suassuna que a alma humana é dividida em quatro vertentes: o Rei, o profeta, o poeta e o palhaço. Quando o Rei e Profeta pesam nos ombros, o poeta e palhaço dão uma cambalhota. Ao levar em consideração essas “vertentes da alma humana” encontradas em sua obra podemos sugerir que o branco é o Re-profeta , o augusto é o Poeta-palhaço . Branco e augusto oscilam em impulsos “para cima e para baixo” no narrador Dom Pedro Diniz Quaderna de O Romance da Pedra do Reino e príncipe do sangue do vai-e-volta . Obra que ilustra este artigo. Durante a narrativa, Quaderna se diz não o “Pierrô bufo e belo, filho de Cassandrino ou de Polichinelo!” mas sim, se assume “Mateus de vermelho e de preto”, palhaço mediador da festa de bumba-meu-boi - é a voz que brinca com as tensões de pensamento provocadas por seu criador Suassuna. É como se Quaderna, esse narrador bibliotecário e memorialista, jogasse conscientemente a isca, e deixasse depois que as tensões, elas próprias, se batessem – “bumba-meu boi”! Segundo Câmara Cascudo em seu Dicionário do Folclore Brasileiro , Bumba é interjeição, zás , valendo a impressão de choque, batida, pancada. Bumba-meu-boi será “Bate! Chifra meu boi!”, voz de excitação repetida nas cantigas do auto mais popular do Nordeste, que aparece tanto em noite de Reis, fazendo parte do ciclo do Natal, como no carnaval (apesar da contrariedade dos tradicionalistas). E, na Máscara do Mateus, palhaço apresentador desse auto “religioso-pagão”, Quaderna então ri. E carnavaliza. E grita o “bate-meu-boi” em palhaço-cavaleiro, montado em seu magro Pedra-Lispe, galopando seu sonho: “(...) Sou o Diabo-Encourado, o Sangue-do-Esqueleto que procura espargir pelo Mundo tristonho, no sangue e ao pó da Morte, o Galope do sonho (...)”. Isso porque transparece uma voz de autor que sabe do que traz de enriquecimento ao discurso “popular” - que por mais que seja “inútil” à modernidade - não é ingênuo e incorpora sim estetizações que enriquecem esses retratos das miragens que transfigura de sua janela de gabinete. Essa “inutilidade” se diz em muitas críticas porque “o avanço da modernização desenraiza, desloca, [muitas vezes] destrói, desvia, absorve, integra, muda de sentido, folcloriza” esse discurso popular. Então, a não ser pelo viés que toca o populismo idealista , não se pode manter essa cultura intacta, isolada dos processos de mudança que atinge a sociedade como um todo em acelerações diferentes tanto no campo quanto na cidade. Ariano sabe disso, então discursa com a máscara do Palhaço alternada com a do Rei (idealista) e bate essas tensões de pensamento, rindo para se proteger do sofrimento. É a representação do bater dessas tensões, é esse grito de bumba o que acontece, por exemplo, no folheto XLII – “O Duelo”, onde os seus dois “mestres e rivais de literatura”, o advogado e filósofo de esquerda Clemente e o promotor e poeta de direita Samuel, se enfrentam a penicadas – de “penicos iguais e de mesmo peso” - num duelo regido pelo próprio Quaderna. No regrado papel de narrador de influência popular e erudita age como os cantadores, contadores e repentistas; como os apresentadores circenses, como o palhaço de bumba; mas também como os narradores do teatro Grego em ação de parábase :

 

Aqui, para que os nobres Senhores e belas Damas que me ouvem não pensem que o ordálio ia ser brincadeira, devo esclarecer que as armas escolhidas por Clemente eram realmente perigosas. Não eram penicos comuns, mas uns penicos especialíssimos, desses que o Povo sertanejo chama de “cubas”, no masculino, “os cubas”. Eram enormes e pesados, com cerca de setenta centímetros de altura. (SUASSUNA, 1971: 291)

 

 

Suassuna conta que, a cada má crítica que recebe, cria um novo personagem. E, talvez seja Pedro Beato, em uma das possíveis interpretações, além de Clemente e Samuel, um desses personagens que em A Pedra do Reino criam chances de interlocução para os desabafos do autor. E dentro de sua obra, Suassuna incorpora, ao mesmo tempo, o riso que reconcilia, e a religiosidade que supera os trágicos de sua vida. O narrador Quaderna, ao descrever a casa onde mora, diz que sua biblioteca se confunde com ela, e quando autor e narrador se confundem, algumas questões são resolvidas ou no ambiente da biblioteca ou diante da parede divisória em que casa-biblioteca se encontram - “(...) a Biblioteca e minha casa pegada a ela por uma porta larga que fazia dos dois casarões um só (...)” (SUASSUNA, 1971: p.320) - Como que representação de encontro autor-narrador que propicia a voz do próprio autor por trás da máscara do personagem. Pedro Beato, o velho marido de Maria Safira (esposa, então, de Quaderna), está sentado no chão, encostado à parede, entre uma estante e a porta que ligava a Biblioteca à casa, quando dá início a um diálogo que transparece o encontro das tais duas vozes em confissão. Vide fragmento:

 

- Dinis, estão dizendo na rua que você vai ser processado pelo juiz novo que chegou. É verdade? (...)

- Você acha que eu estou errado, Pedro? Acha que quem tem razão são os meus inimigos? Sou mesmo um homem de mau caráter e de maus bofes como eles parecem pensar? (...)

- É difícil dizer assim, Dinis, sem pensar tudo com cuidado e sem explicar tudo direito! Para mim, tudo isso que lhe aconteceu, vem de muito antes. Não foi a denúncia deles [os homens com quem Quaderna havia brigado na rua de Taperoá] que meteu você no processo, nem seus aperreios apareceram só por causa disso! Tudo é a maldita questão de honra, Dinis! (...)

(...) Aquela frase me atingia com a força das revelações, iluminando zonas secretas e subterrâneas do meu sangue, zonas de sombras, ocultas até ali, mesmo por mim. (...)

- Você sabe melhor do que eu, Dinis! (...) Me diga uma coisa, por exemplo: por que é que você vive inventando essas histórias de Imperador do Divino, de Auto dos Guerreiros, vestindo-se de Rei e andando a cavalo pelo meio da rua, na frente de seus companheiros, de manto nas costas e coroa na cabeça?

(...) para surpresa minha, aquele fora o ponto de ataque sobre o qual o meu rival e opositor, que, pelo jornal de Campina, falara nas minhas “afetações de Rei apalhaçado de Bumba-meu-boi” e nas minhas “fanfarronices de Cangaceiro e valentão de arraial das festas de Reis”. (...)

- Mas Pedro, que mal faz aos outros que eu me vista de Rei, se isso não toma o lugar de ninguém (...) Essas coisas que eu faço são tão inocentes!

- Dinis, meu filho, me perdoe, mas não existe nada inocente, no mundo! (...) o que queima você por dentro, é o fogo de Deus e do Diabo. O que eu não sei é como esse fogo aparece em você por dentro, porque em cada pessoa é diferente! (...) Me diga uma coisa, por exemplo: você já perdoou os assassinos de seu pai? Já perdoou os assassinos de seu padrinho?

- Sei não, Pedro! – (SUASSUNA, 1971: p. 308 – 310)

 

Nesse momento, encontrado no folheto XLV – “As Desventuras de um corno Desambicioso”, Quaderna é máscara que justifica a obra do autor como arma de redenção. Como superação da morte do pai , por exemplo.

Portanto, pendulando entre religiosidade e riso, entre circo e auto, entre o trágico e o cômico, o popular e o erudito, o palhaço augusto e o palhaço branco , Suassuna corporifica em seu “palco literário” as tensões que o seu discurso causa. E com sua bufonaria desconstrói seu próprio entusiasmo exagerado e os tons que escapam de retórica empolada. Mais uma vez liberta-se esteticamente do peso do Rei , em máscara de bufão-Mateus. É importante aqui, então, lembrar de Antonio Candido no livro A personagem de ficção , em que observa que quem não for capaz de sentir vivamente todas as nuances dos valores não-estéticos – religiosos, morais, político-sociais, etc. – que sempre estão em jogo onde se defrontam seres humanos, não apreenderá esteticamente a totalidade e a plenitude de uma obra. Suassuna ao dizer que quando o Rei pesa nos ombros o Palhaço dá uma cambalhota, ele entende que “o valor estético suspende o peso “real” dos outros valores (embora os faça aparecer em toda a sua seriedade e força...); integra-os no reino lúdico da ficção [que em Suassuna é o seu Castelo Poético e o seu circo da vida], transforma-os em parte de sua organização estética, assimila-os e lhes dá certo papel no todo.” (CANDIDO (org), 1970: p.46-47). Então, quanto maior for o peso, mais amargo o sátiro. Quanto mais alta a escravidão, mais esmerada a bufonaria. Nesse sentido, então, não se perca de vista as possíveis críticas ao Professor-Suassuna e sua obra Armorial, representada em todo o romance que é o “primeiro romance armorial brasileiro”, não se perca de vista os discursos em tom regionalista que encaram o nordeste como protegido de influências e ao mesmo tempo essa sua sensação de emparedamento e de desconforto quando se refere ao tom cosmopolita. As ilustrações em xilogravura que percorrem todo o livro e os capítulos que defendem a beleza barroca popular como a representação de nacionalidade, a intertextualidade e a construção estética do romance baseada nos ciclos do Romanceiro Popular do Nordeste, enfim, toda uma ideologia que é rica se encarada como uma das vozes válidas de homenagem a uma das expressões populares nacionais. Mas, diante do que o Professor-Suassuna provoca o Palhaço-Suassuna, habilmente grita: Bumba!

 

Bibliografia:

 

BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento : o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi. São Paulo : HUCITEC ; Brasília : Editora UNB, 1996. 3ª edição.

 

BERGSON, Henri. O riso. Ensaio sobre a Significação da Comicidade. São Paulo : Martins Fontes, 2001.

 

BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo : Editora Unesp, 2003.

 

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro . Prefácio de Antônio Balbino. 3ª edição revisada e aumentada. Brasília : Instituto Nacional do Livro/ Ministério da Educação e Cultura, 1972.

 

FELLINI, Federico. Fellini por Fellini . Tradução : Paulo Hecker Filho. Porto Alegre- RS : L&PM Editores Ltda, 1974.

 

NEWTON JUNIOR, Carlos. O circo da onça malhada . Iniciação à obra de Ariano

Suassuna . Recife : Artelivro, 2000.

 

SUSSUNA Ariano. Romance d´A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta . 5ª edição. Rio de Janeiro : José Olympio, 2004.

 

SUASSUNA, Ariano . O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão – Ao sol da Onça Caetana. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1977.

 

SUASSUNA, Ariano. O Movimento Armorial . Recife : UFPE – Depto. De Extensão Cultural. Pró-reitoria para Assuntos Comunitários. Editora Universitária, 1974.

 

SUASSUNA, Ariano. Depoimento . In : SUASSUNA, Ariano. Seleta em Prosa e Verso . Rio de Janeiro : José Olympio Editor, 1974. p. 162 – 195.

 

SUASSUNA, Ariano. A Compadecida e o Romanceiro Nordestino . In : SILVA, Maximiniano de Carvalho (prefácio e supervisão). Literatura Popular em Verso . Rio de Janeiro : Ministério da Educação e Cultura/ Fundação Casa de Rui Barbosa, 1973. p. 154-164.

 

SUZUKI, Márcio. Quem ri por último, ri melhor – Humor, riso e sátira no « século da crítica » . In : TERCEIRA MARGEM – Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Letras e Artes, Faculdade de Letras, Pós-Graduação, Ano IX, nº 10. Rio de Janeiro : 7 Letras, 2004.

 

Palhaço e clown em nossa cultura têm tons diferentes. É o palhaço que traz o tom das feiras, dos populares, dos grotescos. E o clown o tom dos espetáculos de teatro, dos palcos, dos malabarismos. Como se o clown – pelo anglicismo – trouxesse tal tom erudito que palhaço – mais popular - não comportasse. Mas aqui, em Suassuna, palhaço inclui clown . Mesmo que não fossem sinônimos em tradução, seriam simultâneos em representação de alma. Clown é, em inglês, no entanto, palavra que quer dizer rude, torpe, rústico... Portanto ao tom do nosso palhaço se quiséssemos, por acaso, vê-lo apenas pelo viés grotesco. Mas não é esse o caso.

Fellini nasceu em 1920, em Rimini, pequena cidade litorânea da Itália e faleceu em 1993. Seus mestres no cinema foram Rossellini, para quem trabalhou em vários projetos (inclusive "Roma, cidade aberta" e "Paisà"), e Lattuada, com quem co-dirigiu seu primeiro filme. Tem inspiração neo-realista na primeira fase de suas obras, com muitos personagens populares, de fácil identificação e grande carga emocional. A partir de "Oito e meio" (1963), no entanto, estão presentes o sonho, a fantasia e o grotesco, que formariam a matéria-prima de sua carreira. Esse sonho e fantasia tem seu ponto alto em I Clowns.

In "Fellini por Fellini", L&PM Editores Ltda., Porto Alegre, 1974, págs. 1-7. Tradução de Paulo Hecker Filho.

Idem.

Referência ao Sermão de Quarta-feira de Cinza do Padre Antônio Vieira proferido em Roma na Igreja de S. Antonio dos Portugueses no ano de 1670. “... Os vivos são o pó levantado pelo vento, os mortos são o pó caído. Adão, feito de pó, recebendo o vento do sopro divino, torna-se vivo. Nas Escrituras levantar é viver, cair é morrer. (...) Deu o vento, levantou-se o pó; parou o vento, caiu. Deu o vento, eis o pó levantado: esses são os vivos. Parou o vento, eis o pó caído: esses são os mortos. Os vivos pó, os mortos pó; os vivos pó levantado, os mortos pó caído; os vivos pó com vento, e por isso vãos; os mortos pó sem vento, e por isso sem vaidade. Esta é a distinção e não há outra ...”

Raquel de Queiroz no Prefácio ao Romance da Pedro do Reino diz que Quaderna se quer um “retratista de miragens”.

In: BUENO, André. Formas da Crise – Estudos de Literatura, Cultura e Sociedade. RJ: Graphia Editorial, 2002. p.165.

No antigo teatro grego, parábase é a parte da tragédia ou da comédia em que um ou mais atores recobravam suas verdadeiras personalidades e se dirigiam aos espectadores, com observações, opiniões, esclarecimentosou apelos, o que também pode ser feito pelo próprio autor. (Dicionário Aurélio Buarque de Holanda. Na Pedra do Reino é ainda Quaderna o autor-narrador em ação de parábase, não Suassuna.

O encontro de vozes de Suassuna remete à Mário Quintana: Bem! Eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. (In: http://www.ccmq.rs.gov.br/novo/mario/mario2.php Acesso em 18/07/2006)

Suassuna é filho do ex-governador da Paraíba João Suassuna que foi morto na década de 30 por desavenças políticas com João Pessoa.

 

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