Marquês de Sade, Nelson Rodrigues e o poder do gozo.

 

 

Autor: Anderson Brandão é doutor em Literatura Comparada - UFRJ.

 

 

En soi-même, en vérité, parler de Sade est de toute façon paradoxal . Il n'importe pas de savoir si nous faisons ou non, tacitement ou pleinement, oeuvre de prosélyte: le paradoxe est-il moins grand de louer l'apologiste du crime , que , directement, le crime ? L'inconséquence est même accrue dans le plus haut la victime, qu'il fait passer du monde de l'horreur sensible à un ordre d'idées folles, irréelles et purement brillantes.

Georges Bataille

 

O sexo é uma selva de epiléticos. O sexo nunca fez um santo . O sexo só faz canalhas .

Nelson Rodrigues

No cadinho fumegante da Revolução Francesa, sob as hostes seguras do Iluminismo , a obra de Donatien Alphonse de Sade marca não somente a simples transgressão , mas o prazer advindo da prática e da disseminação da submissão – apresentada de forma exaustiva , quase um manual -, onde as perversões ocorrem em microcosmos , palcos seletos nos quais sentimentos e atos como a virtude , a decência e a contenção sexual são metódico e implacavelmente violados, constrangidos por um poder que se delicia em realizar suas vontades mais secretas.

Urdindo a partir de seu método , que chega a parecer , de acordo com uma vertente bastante presente na literatura iluminista, enciclopédico , Sade teceu a sua obra com tanta pertinência e acuidade que chega a convencer o leitor de que a lógica da destruição é tão palpável , verossímil e – por que não ? – praticável quanto a da manutenção dos critérios e valores de preservação da sociedade .

Tais bizarrices não aconteceriam ou não seriam, pelo menos , possíveis se não estivessem enraizadas numa estrutura que conferisse aos seus protagonistas uma total liberdade para exercerem o que verdadeiramente lhes causa prazer : a imposição de um poder que se realiza através da submissão do outro até o seu esgotamento.

Esse exercício é realizado através de um modus faciendi que não encontra barreiras , que é soberano e que se realiza inexoravelmente através do ato de subjugar sexualmente aqueles que lhes são subordinados. As vítimas são reduzidas a corpos , títeres que estão dispostos ao prazer e que são valorados apenas de acordo com a possibilidade de sujeição e com a antevisão do gozo advindo da conspurcação de suas eventuais purezas ou pudores , como podemos ver em Les cent vingt journées de Sodome.

 

La première se nommait Augustine: elle avait quinze ans, elle était fille d' um Baron de Languedoc et avait été enlevée dans um couvent de Montpellier.

La seconde se nommait Fanny: elle était fille d'un conseiller au parlement de Bretagne et enlevée dans le château même de son père.

La troisième se nommait Zelmire: elle avait quinze ans, elle était fille du comte de Terville que l'idolâtrait.[...]

 

Um outro grupo seleto de ricos celerados que se divertem, sob os auspícios do tédio e da obtenção do prazer através da sujeição sexual e destruição moral , podemos encontrar na peça Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária , de Nelson Rodrigues. Moças virgens são violadas por seus namorados , em plena sala de estar , como atração para ricos entediados que , por não mais estarem sob os parâmetros cerceadores de manutenção e contenção sociais que restringem o resto da sociedade , extraem prazer da conspurcação e da degradação daqueles que caem sob o seu jugo.

 

Werneck – Vocês vão ver um show . É um crime sexual .

Primeiro Grã-fino – O quê ? O quê ?

Werneck – Eu mandei apanhar três meninas. Uns anjos , mocinhas, de família . Garotas que não sabem nada . Purinhas. Vêm com os namorados . Estão estourando aí . E os namorados vão fazer tudo , aqui , tudo .

Terceiro Grã-fino – Eu quero uma!

Werneck – Não te mete, Bingo !

Primeiro Grã-fino – Mas é curra de verdade ?

Werneck – O negócio é assim . Vamos preparar os namorados . Vamos entupir os namorados de maconha . E, aqui , dentro desta sala , eles vão caçar as pequenas .

Segundo Grã-fino – Mas isso é crime !

Werneck – Sua besta ! Ou vocês não acreditam no Poder Econômico ? Vou indenizar , compreendeu, pai , mãe , as pequenas . Tapo a boca da família , rapaz . O negócio dá em nada .

 

No conto provençal “O padre amante ”, Sade realiza uma inteligente inversão de posicionamento de poder: um padre , que deseja sexualmente a mulher de um burguês notadamente imbecil e ambicioso , lhe cede a possibilidade de celebrar uma missa . O burguês , sem saber que , enquanto reza a missa , é traído pelo insuspeito religioso em seu próprio lar , aceita a missão que lhe é oferecida, posto que esse ato lhe dá o prazer de exercer uma atividade proibida , reservada a uma classe à qual ele não pertence . Esses são os ingredientes que , somados, criam a ambiência de uma narrativa onde o gosto pela transgressão ultrapassa os limites das classes e perversamente alcança espaços tradicionalmente sagrados .

Da mesma forma que em Les cent vingt journées de Sodome , temos, na caracterização isolada do local onde acontecerão os eventos da trama , um microcosmo onde atos nefandos são realizados e os desejos não se rendem às barreiras do sagrado.

 

Entre la ville de Menerbe au comtat d'Avignon et celle d'Apt en Provence, est un petit couvent de carmes, isolé, qu'on appelle Saint-Hilaire, assis sur la croupe d'une montagne où les chèvres mêmes ont de la peine à brouter; ce petit local est à peu près comme l' égout de toutes les communautés voisines de carmes, chacune y relègue ce qui la déshonore, d'où il est aisé de juger combien doit se trouver pure la société d'une telle maison: ivrognes, coureur de filles, sodomites, joueurs, telle est à peu près la noble composition, des reclus qui dans ce scandaleux asile, offrent à Dieu comme ils le peuvent des coeurs dont le monde ne veut plus.

 

 

Um gosto claro pela transgressão vai semeando todo conto , que não se limita à destruição da fidelidade matrimonial, mas se estende à prática religiosa , conspurcada em suas peculiaridades mais básicas pelo “ padre ” e pelo “ burguês ”, o que nos mostra uma especial predileção de Sade pela degradação de atos sagrados .

A profanação geral dos tabus sociais faz com que , no fim das contas , não haja ofensor e ofendido, traidor ou traído, posto que ambos estão totalmente imersos nas sombras luxuriantes da experimentação do proibido. Se o “ burguês ” é traído em sua confiança pelo “ padre ”, ele mesmo viola as regras da religião : ambiência que norteia tanto a fidelidade conjugal, como a inalienação dos atos sacerdotais. Na verdade , o “ padre ”, personagem mentor da inteligente inversão de poderes , soube criar uma armadilha através da qual qualquer possibilidade de interdição aos desejos pela esposa do “ burguês ” é desfeita .

O que lhes dá prazer , certamente , é a experimentação de algo que lhes é tido como interdito . Ao toque irresistível do desejo , as barreiras são acintosamente transpassadas. O padre experimenta a conspurcação de seu próprio celibato , faz com que seus votos e obrigações sacerdotais sejam apenas artifícios para atrair a curiosidade do “ burguês ” e, por fim , rompe os laços de fidelidade matrimonial, quando o seu dever seria o de aconselhar o casal a mantê-los firmemente .

O “ burguês ”, por seu turno , ávido por experimentar qualquer possibilidade de fruir de privilégios de outras classes – não é à toa que o nobre Donatien Alphonse de Sade o retrata como inescrupulosamente ambicioso e imbecil – não perde a oportunidade que lhe é oferecida: seu desejo é gozar do prestígio , ainda que fugaz , da classe sacerdotal. Sua ânsia por mobilidade social é inteligentemente ridicularizada.

 

- Eh bien morbleu, eh oui, mignonne, répond le carme, en culbutant Mme Rodin sur son lit, oui, chère âme, j'ai fait un prêtre de votre mari et pendant que le coquin célèbre un mystère divin, hâtons-nous d'en consommer un profane.

 

 

No fim do conto , Sade põe em xeque magistralmente o mistério da concepção do próprio Cristo , através da comparação subliminar que a mulher do burguês fez entre ela e a Virgem Maria. Ele trabalha magistralmente com o texto religioso, no qual Maria recebeu a visita do Anjo Gabriel (“coincidentemente” é o nome do padre fornicador) que lhe informou sobre a sua gravidez. Uma curiosa relativização do dogma de que a Virgem Maria engravidou por obra do Espírito Santo é insinuada e faz com que um espaço sobre o qual a teologia cristã vem, há muito , lutando para permanecer no âmbito do espírito , contamine-se com o gosto pelo desejo carnal. As “boas ações ” que , aparentemente , são alardeadas expressam máscaras de atos inconfessáveis .

-Ah, mon ami, répond la viguère, il semblait que le ciel nous inspirât, regarde comme les choses célestes nous remplissaient l'un et l'autre sans nous en douter: pendant que tu disais la messe, moi je récitais cette belle prière que la Vierge répond à Gabriel quand celui-ci vient lui annoncer qu'elle sera grosse par l'intervention du Saint-Esprit. Va, mon ami, nous serons sauvés à coup sûr, tant que d'aussi bonnes actions nous occuperont à la fois tous les deux.

Na obra de Nelson Rodrigues, encontramos a possibilidade de dessacralização e de conspurcação do ambiente religioso . Em Álbum de família , a imagem do patriarca “Jonas” é confundida com a de Jesus, onde alucinação , autoridade e desejo se misturam nesse caldo de relativização de ícones sociais , como no caso da figura paterna e de Jesus.

 

[...]Ilumina-se uma nova cena : interior da igrejinha local . Altar todo enfeitado. Retrato imenso de Nosso Senhor , inteiramente desproporcionado – que vai do teto ao chão . NOTA IMPORTANTE : em vez do rosto do Senhor , o que se vê é o rosto cruel e bestial de Jonas. É evidente que o quadro , assim grande , corresponde às condições psicológicas de Glória , que vem entrando com Guilherme. Primeira providência de Glória : olhar para a falsa fisionomia de Jesus. Caiu uma tempestade . Glória está ensopada e Guilherme também .) ( Glória é uma adolescente linda .)

Glória ( com surpresa e certo medo – “ Que dê ” papai ? Você não disse que ele estava esperando – aqui ?

Guilherme – Vem já ! Não demora !

( Glória está diante do quadro , deslumbrada. Ajoelha-se e reza. Durante a reza, Guilherme, com a mão , esboça uma carícia sobre a cabeça da irmã, mas desiste em tempo .)

 

Certamente, ícones sociais submetidos à revelação de seus conteúdos de sexualidade imanentes demonstram a possibilidade de conspurcação de espaços ou figuras que , dentro dos parâmetros da cultura dominante , procuram se manter longe de quaisquer relativizações.

No entanto , se buscarmos as relações de longa duração entre a religiosidade e a sexualidade , veremos que , em nosso passado , essa linha não estava tão delimitada como poderíamos imaginar . O historiador Ronaldo Vainfas denuncia que o espaço da religiosidade brasileira tem estado subliminarmente permeado pela sexualização de imagens sagradas, elemento que reaparece nessa peça de Nelson Rodrigues sob a forma de uma verossimilhança profundamente enraizada em nosso imaginário cultural.

 

Erotização de Cristo ou de Maria, mistura do profano com o sagrado , dos sentidos e fluxos do corpo com as coisas do espírito , eis o terreno em que se moviam, por vezes , as defesas da fornicação no trópico .

Lidar com textos que fazem parte do que comumente chamamos de “ literatura maldita ” é confrontar , a todo tempo , a transgressão , o transpassar de barreiras morais ou de costumes e crenças arraigados nas mentalidades . São possibilidades de fruição de determinados conteúdos proibidos ou vistos com desconfiança pelos órgãos cerceadores dos comportamentos .

Esses textos nos apresentam a denúncia e a subversão de discursos que procuram se apresentar harmoniosos, necessários, sagrados, imperiosos, mas que igualmente guardam – como nesses textos de Sade e de Nelson Rodrigues – o prazer de submeter e o gozo por nossa submissão.

 

Bibliografia

BATAILLE, Geoges. OEuvres complètes . Paris: Gallimard, 1987.

RODRIGUES, Nelson. Flor de obsessão :. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

__________________. Teatro completo : volume único . Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 1993.

SADE, Donatien Alphonse de. Contos libertinos . São Paulo: Editora Imaginário , 1992.

________________________. Historiettes, contes et fabliaux . Paris: Union Générale D'Éditions,1968.

_________________________. OEuvres. Paris: Gallimard, 1990.

VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

 

Tradução nossa : A primeira se chamava Augustine: ela tinha quinze anos , era filha de um Barão de Languedoc e foi raptada num convento de Montpellier.

A segunda se chamava Fanny: ela era filha de um conselheiro do parlamento da Bretanha e foi raptada da casa de seu pai .

A terceira se chamava Zelmire: ela tinha quinze anos , era filha de um conde de Terville que a idolatrava.[...]

SADE, Donatien Alphonse de. OEuvres . Paris : Gallimard, 1990, p.46

É importante que notemos o extremo valor dado à virgindade da mulher em meados do século XX no Brasil.

RODRIGUES, Nelson. Teatro completo : volume único . Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 1993, p.577

Nelson, 1993, p.1039.

Entre a cidade de Menerbe, no condado de Avinhão, e a de Apt, em Provença, há um pequeno convento de carmelitas isolado, denominado Saint Hilaire, assentado no cimo de uma montanha onde até mesmo às cabras é difícil o pasto ; esse pequeno sítio é aproximadamente como a cloaca de todas as comunidades vizinhas aos carmelitas ; ali , cada uma delas relega o que a desonra , de onde não é difícil inferir quão puro deve ser o grupo de pessoas que freqüenta essa casa . Tradução de Plínio Augusto Coelho e Alípio Correia de França Neto in SADE, Donatien. Contos libertinos . São Paulo: Editora Imaginário , 1992, p. 7

Id . Historiettes, contes et fabliaux . Paris: Union Générale D'Éditions,1968, p.283

 

- Pelo sangue de Cristo , sim , mimosa – responde o carmelita , atirando a Sra. Rodin ao leito – sim , alma pura ! fiz de seu marido um padre , e, enquanto o farsante celebra um mistério divino , apressemo-nos em levar a cabo um profano ... SADE, 1992, p.15

Id ., 1968, p.291

- Ah! meu amigo – responde a mulher – parecia inspiração dos céus ! Observai de que modo nos ocupavam de todo , a um e a outro , as coisas do céu , sem que disso suspeitássemos! Enquanto celebráveis a missa , eu entoava essa bela oração que a Virgem dirige a Gabriel quando este fora anunciar-lhe que ela ficaria grávida pela intervenção do Espírito Santo . Assim seja, meu amigo ! Seremos salvos , com toda certeza , enquanto ações tão boas nos ocuparem a ambos ao mesmo tempo .SADE, 1992, p.16

SADE, 1968, p.293

RODRIGUES, 1993, p.545

VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.68

 

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