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Os entre-lugares da arte e pensamento do Poeta da Crueldade, Glauco Mattoso,
com o Teatro da Crueldade de Antonin Artaud

 

Esse trabalho pretende aproximar Glauco Mattoso de Antonin Artaud, apesar das grandes diferenças que os separam, inclusive pelo tipo de propostas que veiculam, um através da poesia, o outro do teatro. Partimos do pressuposto de que ambos sejam poetas/vates (produtores de algum tipo de vaticínio) e dramaturgos, mesmo se Artaud não tivesse escrito um único verso ou que Mattoso não tenha (ainda) nenhum texto para teatro. No caso do último, lembremos Musset, quando em 1832 criou a alcunha do “teatro de poltrona”, um teatro cujo texto não se destinava à representação, mas à leitura, que já cria um palco imaginário. Contemporaneamente, também Ringaert nos lembra que o potencial de um texto de teatro existe independente da representação e, inclusive, muito antes dela. O palco não a completa, pois ela já existe inteira; o palco imaginário construído pela leitura, “ativa processos mentais que apreendem o texto já a caminho do palco”. A encenação é, pois, possibilidade a mais (1). Registremos, ainda, que, à época de Musset, o modelo clássico teatral ainda imperava, e textos que não se enquadrassem a esse modo de representação poderiam ter potencial dramático, mas pouca possibilidade de serem encenados; hoje, com a multiplicidade de tendências relacionadas ao espetáculo, há muito maiores e amplas possibilidades desse “teatro de poltrona” ser transcriado/transformado em linguagem cênica.

 

Para promovermos um maior contato entre os Artaud e Mattoso, seja através do palco imaginário ou real, precisamos porém extrapolar, a todo momento, a poesia e o teatro, ou seja, as searas das linguagens literárias e teatrais, sem o quê não entenderemos, em dimensão maior, o elo que une duas propostas aparentemente bastante diversas. Relacionar apenas a temática crueldade para aproximá-los, como sugere o título de nosso trabalho, é pouco, quase nada. Serve, talvez, como um dos muitos pontos de partida que poderíamos escolher. Só ampliamos o entendimento dessa identidade temática, quando nos propomos a pensar nos entre-lugares localizados para além da própria expressividade literária e artística da ambos, o que significa, repita-se, penetrar na área que extrapola o que vemos e lemos dos dois autores – seja através dos espaços do livro ou do palco.

 

Nessa ampliação de leituras, tomaremos muitas vezes por base o teatro de Artaud (1896 – 1948), no sentido pretendido anos antes por seu quase contemporâneo Mallarmé (1865-1898), ou seja, no entendimento do teatro poético como um “livre a venir”, como “uma obra inacabada, que nunca ficará pronta, pois está em constante fazer-se e refazer-se: algo sem começo nem fim (...), um texto com forma móvel, algo que aponta continuamente para novas possibilidades de relações, e horizontes de sugestões ainda não experimentados: as "páginas" não obedeceriam a uma ordem fixa, seriam intercambiáveis e se "deixariam" permutar em todas as direções e sentidos”  (2).

 

Segundo Derrida, o "teatro da crueldade" do escritor francês não seria uma representação, mas sim a vida, num nível em que esta seria irrepresentável  (3). É nesse aspecto que falamos do teatro poético de Artaud: da poesia que se constitui em teatro, ela própria, agente subvertedora da palavra, a avançar pela “performance visual, que consiste em levar a escritura a encenar-se a si mesma, enquanto linguagem quer em cena quer no branco da página, metáfora de um palco em movimento” (4). Para realizar essa “performance visual” mallarmeliana, o poeta e dramaturgo francês avança pelo movimento através da dança (e não da palavra) – como  muito bem observa José Carlos de Araújo Júnior, através de idéias que dançam. Araújo Júnior, teatrólogo paranaense, responsável inclusive pela montagem da peça radiofônica “Para acabar de vez com o juízo de Deus”, de Antonin Artaud, veiculada pela Rádio Universidade FM (UEL de Londrina), analisa, com muita propriedade e síntese, a predileção de Artaud pela dança:

“O equilíbrio de uma linguagem verbal e sua significação é incapaz de transmitir aos sentidos a vertigem obscura e vigorosa de um corpo que dança. A fixidez, a impotência e o peso da palavra paralisam os movimentos e silenciam os gestos. Já o dançarino salta os limites do verbo, e se lança no fluxo vital de constante mudança. Ele tem os ouvidos nos pés em contato com a terra, que contagia e faz vibrar o corpo todo. A dança vai abalar a inércia imposta pelas palavras e romper com a linguagem do verbo. É o gesto que foge ao alcance das sílabas da razão”.
“A arte e a literatura moderna vão buscar esse rompimento com o império da palavra. Antonin Artaud (1896-1948), numa tentativa radical e dilacerante experimentou uma linguagem para além da fala articulada. No seu horizonte estava a idéia que dança. Esse pensamento que vibra em seu teatro alquímico terá ressonância no oriente. A dança japonesa Butoh, na década de 60, vai ser afetada pelos ensinamentos e inquietações do criador do Teatro da Crueldade. Num dos textos do livro O Teatro e seu Duplo, Artaud faz uma reflexão comparativa entre o teatro ocidental e o teatro oriental. Enquanto naquele o texto e o diálogo predominam, neste há uma expansão experimental física e corpórea, onde a precisão da palavra é prescindível, dando lugar a uma idéia sísmica que desloca-se com o corpo”
(5).

Quanto à Glauco Mattoso, ele é essencialmente um poeta da palavra. Nunca pensou em desistir dela. O autor, poeta, ficcionista, contista, letrista de música popular, tradutor (inclusive um dos tradutores da obra de Jorge Luis Borges, no Brasil) é paulista, de 1951. Pedro José Ferreira da Silva é seu nome real, e  o pseudônimo (Glauco Mattoso) foi adotado devido ao glaucoma, doença responsável por sua cegueira definitiva em 1995. Mesmo sendo artífice da palavra, no entanto, Glauco não é um poeta tradicional. Se podemos defini-lo de alguma maneira (para além do epíteto “Poeta da Crueldade”, como é atualmente conhecido), poderíamos dizer que Glauco é o poeta ametafórico, um poeta sem metáforas, o que, se levarmos essa linha de raciocínio às últimas conseqüências, o coloca em lugar único na poesia brasileira. Não se deve classificá-lo, porém, como um autor realista. O elemento realista, em sua obra ele, é apenas conseqüência de sua concepção teóricA – de que não existe arte pela arte. “Toda arte é autobiografia, mesmo em sua objetividade” – para ele.


À primeira vista, essa grande diferença do verbal e do não-verbal, já seria praticamente suficiente para afastar Artaud de Glauco, uma vez que um tem ojeriza à palavra articulada e o outro a ela se prende, enraizadamente. No entanto, de um modo ou de outro, ambos os vates – procriadores de vaticínios -, falam em suas obras do corpo vilipendiado, do corpo como a grande vítima da tragédia política (lembremos da força da “política do corpo”, nos anos 80/90). Ambos extraem de suas próprias vivências e dores corporais (curras e choques elétricos – uma outra espécie de curras) o leitmotiv que os celebrizou.

 

Fama polêmica, é verdade, reconhecida mais internacionalmente, por autores igualmente polêmicos. Por exemplo: uma grande admiradora do poeta brasileiro é a teóloga argentina, naturalizada escocesa,  Prof. Drª Marcella Althaus-Reid, e essa afinidade dá-se por ela propor uma teologia “sem roupas íntimas”, através dos livros Teologia Indecente (2000)  e “O Deus ‘esquisito’ ”  (2003) - The Queer God (a palavra inglesa "queer" é habitualmente traduzida como "gay", mas Marcella a usa no sentido original da Cultura Queer, um movimento que surgiu em Londres e Nova York no fim do século XX e ganhou importância na política e no comportamento. Nele, Queer é compreendido como aquilo que está fora da possibilidade de formatação ou definição, para além da ordem. É transgressor, mas também indefinível). Outro estudioso de Glauco Mattoso é Steven F. Butterman, que trouxemos inclusive no semestre passado aqui, na UFRJ, Prof. Dr. da Universidade de Miami, que escreveu uma tese sobre a obra mattosiana, transformada em livro: “Perversões em Parada – Literatura Brasileira de Transgressão e Anti-Estética Pós-Moderna em Glauco Mattoso” (publicação da Universidade de San Diego, em 2005, obra que, inclusive, nos cita).

 

No Brasil, ainda temos pouco espaço para o estudo de poetas transgressores, de grande impacto. No entanto, sua obra começa a ser estudada por alguns professores universitários, sendo um dos mais significativos o Prof. Pedro Ulysses Campos, da UERJ. Escreve ele:

 

“Embora não corresponda à totalidade da sua obra, o apelido de "poeta da crueldade" foi assumido pelo próprio GM no soneto abaixo e justificado na seleção subseqüente. Muitos outros temas povoam a cabeça do autor, desde a culinária até a escatologia, passando pelo fetichismo e pela cegueira de que se tornou vítima, mas a violência humana e suas conseqüências têm sido pesquisadas por GM em prosa e verso: além dos poemas autobiográficos, nos quais recapitula os abusos sofridos na infância, publicou suas memórias masturbatórias no Manual do Podólatra Amador: Aventuras E Leituras De Um Tarado Por Pés e os ensaios O que é tortura e O Calvário dos Carecas: História Do Trote Estudantil, analisando as mais impiedosas facetas do ser humano. O humor negro e o sadomasoquismo com que GM descreve suplícios e tormentos intencionais é o que dá motivo para autodenominar tal gênero de abordagem como "desumanismo". Fica patente, contudo, a indignação do poeta, por trás desse sarcasmo, contra toda espécie de injustiça, seja divina ou terrena” (6).

 

A seqüência mencionada por Campos, é composta de quarenta sonetos, modalidade a que Glauco Mattoso na poesia após ficar totalmente cego. Percebemos que, pela ordem dos sonetos dessa série, Mattoso só “assumiu” essa condição de “Poeta da Crueldade” no Soneto nº 509, que é o primeiro na ordem cronológica, no qual ele se refere trauma em pelo qual passou na vida real: a curra em criança, em que foi obrigado a lamber pés sujos e sapatos, além de ser sodomizado. Eis o ponto de partida do seu prazer pela crueldade. Logo após esse soneto, Glauco passa a narrar suas predileções e motivações sadomasoquistas (“Soneto estapiado”, de nº 36), terminando a série com o “Soneto Molhado” (de nº 999), no qual ele trata de dois temas que envolvem a boca para realizarem suas funções orais (sexuais e literárias): bocas domadas/curradas pela violência e/ou coação das palavras ou gestuais - linguagem não-verbal (7).

 

Tanto em Glauco como em Artaud observamos como elos de ligação, a humilhação, a impotência, a sujeição coercitiva, presentes para além da ficção literária. Diz Artaud:

 

“O eletrochoque me desespera, tira minha memória, entorpece meu pensamento, e meu coração, torna-me num ausente que se percebe ausente e vê durante semanas perdido em busca do seu ser como um morto ao lado de um vivo. Na última série eu fiquei todo o mês de agosto e setembro impossibilitado de trabalhar, de pensar e de me sentir ser. Peço que me poupe de uma nova dor, Dr. Ferdière e preciso muito de repouso” (8).

 

A crueldade para Artaud e para Glauco tem origens e finalidades diversas, mas se encontram no massacre corporal, que atinge todo indivíduo e a sociedade como um todo. É no espaço corporal que ambos descodificam as emoções massacradas por um sistema sócio-político que as manipula castrativamente. Em seu livro, Teatro e seu Duplo, Artaud acusa o ator ocidental de ter perdido “a faculdade do grito (potência vocal), após três séculos de tradição literária” (no teatro).  Para ele, portanto, o teatro visa despertar no público uma emoção catártica, através do ator, que é como um “supliciado que está sendo queimado e que faz sinais numa fogueira”.  O teatro funciona “como uma peste, por intoxicação, por infecção”. Rejeitando a lógica concatenada, Artaud pretende conseguir perturbar o público a ponto do grito libertar as pessoas da tutela do significado discursivo que a fala textual carrega, redespertando nelas as manifestações vitais, libertadoras. Artaud quer que o ser humano volte-se para as suas forças primitivas, a fim de reencontrar a emoção perdida; no fundo, trata-se de um teatro sagrado, como observa Peter Brook (9) – até  porque a catarse sempre envolve um ritual –, místico ou teórico; e, sendo um teatro sagrado, está voltado para a magia e para os ritos primordiais imemoriais adormecidos em cada um de nós.

 

Foi  a comparação do teatro com a peste que fundamentou teoricamente o Teatro da Crueldade artaudiano, pois ambos são contagiosos, afetam grandes grupos humanos, produzem transformações e despertam imagens adormecidas, perturbações latentes, para levá-las a limites extremos (10). Para Artaud, “o teatro, igual à peste, é a manifestação, a exteriorização de um fundo de crueldade latente, pelo qual se localizam, num indivíduo ou numa população, todas as maldosas possibilidades da alma” (11).  O Teatro da Crueldade teve com grande influência do teatro oriental, de Bali,  do Japão (a dança butô),  e, ainda, do México (da tribo indígena dos Tarahumara, onde Artaud viveu por algum tempo). No primeiro manifesto do Teatro da Crueldade, o autor francês reivindica o uso do corpo, do grito e do encantamento para despertar as "forças subterrâneas" do homem, portanto um teatro ritualístico, com perspectivas metafísicas.

 

Glauco Mattoso inclui-se no Teatrum Mundi, através de outro contexto. Diz ele:

 

 “Acho que sou autor e personagem ao mesmo tempo quando se trata de crueldade: sofro a injustiça, divina e humana, da cegueira e da discriminação, mas devolvo agredindo o bom gosto com minha opção antiestética pelo fetichismo do pé feio, sujo e homo. Sem falar na poetização da tortura e de outras cruezas. Enfim, uma atitude existencial e não meramente "poser" ou "fake" como no teatro do SM (sadomasoquismo) dito consensual” (12).  

 

Nesse sentido, a literatura de Glauco, em prosa e verso, visa ao que Grotowsky se propunha em sua busca por um “Teatro Pobre”: o “ato total”, o ator como personagem de si mesmo, desnudando-se e propiciando o encontro e a auto-revelação. Esse “encontro” entre ator e público se daria no palco, sendo que o primeiro, despojado, desnudado de qualquer máscara, propiciaria o mesmo processo no público, uma trajetória portanto mútua, simultânea e recíproca. Grotowsky menciona muito Artaud, vejamos apenas uma passagem:

 

Artaud fala do “transe cósmico”. Isso traz de volta um eco da época em que os céus foram esvaziados dos seus tradicionais habitantes, tornando-se, em si, objetos de culto. (...)  Artaud opôs-se ao princípio discursivo do teatro, a toda tradição francesa do teatro (...) recusou-se a um teatro que se satisfazia em ilustrar textos dramáticos, exigindo um teatro que deveria ser uma arte criativa em si mesma, que não servisse apenas para duplicar o que a literatura fazia (13)

 

O corpo único comungado pelo ator-público  – tão importante para Grotowsky e Artaud e que  também Glauco carrega em seu texto –, é igualmente o de um supliciado. Mattoso utiliza-se da palavra para fazer explodir toda a carga de dinamite nelas contida. Um choque de alta voltagem, como nos eletrochoques. Palavras como eletrodos de corrente elétrica, desmantelando discursos ideológicos, descontruindo-os. De algum modo, o grito precisa ser extraído, e, embora pareça estranho, ele é um elemento dionisíaco, presença desmesurada, extremada, desgovernada, porque Dionísio é um deus cruel. Ele foi retalhado, despedaçado pelo Titãs, e renasceu. E, a partir daí, só quer ser feliz, só quer dar vazão aos seus impulsos, sem pensar. Todo deus cornífero (Dionísio, Baco, Pã, Quíron) representa a fertilidade, a criação, a criatividade, portanto. Mesmo que se tente silenciá-la, ela renasce, revive, volta a brotar. Dionísio é cruel, porque não mede conseqüências ao extravasar e satisfazer seus desejos.

 

Artaud e Glauco compartilham da crueldade dionisíaca: um para esperar as pessoas acomodadas e massacradas pela fala articulada; outro, de forma literária não-convencional,  para devolver-lhes o produto de suas violências, através de um gozo tão brutal quanto à brutalidade cotidianamente praticada. Nas palavras do próprio Glauco,

 

(...) “Assim canibalizo o que sofri e vomito, ou dejeto, o subproduto do sofrimento em forma de prazer sadomasoquista” (14).

 

À canibalização literária logo associamos a antrofogia oswaldiana. E, novamente, nos remontamos ao prof. Pedro Ulysses Campos, quando aduz: “em Glauco Mattoso, encontramos uma releitura escatológica da "antropofagia" de Oswald de Andrade”. Essa afirmação tem por base a explicação do próprio Glauco Mattoso para a utilização da coprofagia que perpassa toda a primeira fase de sua produção, basicamente iniciada no Jornal Dobrabil. Explica Glauco:
 
“Já que a nossa cultura (individual & coletiva) seria uma devoração da cultura alheia, bem que podia haver uma nova devoração dos detritos ou dejetos dessa digestão. Uma reciclagem ou recuperação daquilo que já foi consumido e assimilado, ou seja, uma sátira, uma paródia, um plágio descarado ou uma citação apócrifa. Essa postura 'intertextual' agradou a crítica, e cheguei a ser qualificado como um 'enfant terrible' de Oswald de Andrade” (quem assim o qualificou foi o Professor e editor Jorge Schwartz,  em um ensaio sobre o Jornal Dobrabil). 
 
No entanto, segundo outro Prof., Steven F. Butterman, “as preocupações de Mattoso começam onde terminam as de Oswald: se o antropofagismo comeu alguém, nosso canibal experimentará, indubitavelmente uma evacuação intestinal” (15). 
 

Em Artaud o “teatro devorador”, por sua crueldade, é capaz de liberar os impulsos agressivos, inclusive de canibalismo. Não havendo divisão ator-público, simultaneamente todos os “sentidos e carnes estão em jogo”, semelhante ao oferecimento público do corpo do ator, no  “ato total” de Grotowsky, reproduzindo a redenção. O Teatro da Crueldade baseou-se muito mais nessa redenção libertadora pela dor do que pela alegria do renascimento: pressupõe Artaud que todos sofrem de uma grande enfermidade – quer  atores, quer espectadores. Vivenciando-a, juntos, o espectador também experimenta um “tratamento de choque”, que o liberta de seu pensamento discursivo e lógico, experimentando uma nova experiência, essencialmente catártica.

Em um dos seus “Manifestos do Teatro do Crime”, Artaud afirma categoricamente que deseja

 

“(...) propiciar ao espectador, como uma precipitação veraz de sonhos, o seu quase gosto pelo crime, suas obsessões eróticas, sua selvageria, suas fantasias, seu senso utopista da vida e das coisas, e mesmo o canibalismo, jorrando num nível que não é falso nem ilusório, mas interno” (16).

 

Lembremos de que o canibalismo liga-se às experiências dolorosas da época oral, de um corpo ainda com desenvolvimento sensório parcial e bastante precário, impossibilitado (ou por imaturidade, em criança ou por castração cultural, em adulto) de desenvolver sua potencialidade plena. Nessa direção, Mattoso, em Soneto Molhado,mencionado anteriormente, último da série na qual ele desenvolve poeticamente seus temas favoritos (coprofagia, podorastria, desumanismo), frisa o duplo sentido da boca através da língua (literária e sexual), como meio de comunicação/interação entre as pessoas.

 

Aqui, a conexão de Glauco com Artaud é flagrante: o escritor francês também tem como proposta despertar as forças inconscientes do espectador, para libertá-lo do condicionamento imposto pela civilização; e, nessa trajetória de re-ingresso em outra ordem, fatalmente emerge o mito dionisíaco, simbolizado pelo querer viver o impulso uno primordial, após dilacerado pela individuação, pela figuração, pelo conhecimento lógico do saber. No entanto, enquanto Antonin visa uma reação catártica (expurgatória), Glauco objetiva devolver a violência que a sociedade incute em cada um de nós, de maneira muito sui generis: gozando/gozando-a, autoflagelatoriamente (como exemplo, citamos o “xibunguismo” das glosas mattosinas, feitas em cima de motes alheios).

 

Em Artaud, termos freqüentes como “teatro” e “ação”,  adquirem em sua obra um significado bem mais amplo. 
 
“Deixam de se referir pura e simplesmente ao campo dos espetáculos ou mesmo ao das artes, para designar processos de recriação da vida humana, que guardam importantes relações com o universo dos ritos, instigando-nos a repensar sobre o lugar da arte no mundo contemporâneo. Mesmo a leitura intensiva de seus textos é capaz de mobilizar afetos, desestruturar esquemas rígidos de compreensão, abrir horizontes de percepção. Sua linguagem, forjada a partir da investigação de seus próprios estados físicos e mentais, possui um alto poder de contaminação, colocando em xeque nossas atitudes e formas de ver o mundo” (17).
 
Do mesmo modo, Glauco Mattoso direciona a palavra ao mesma alvo, principalmente, através do barrockismo e do pornosianismo. Sobre o Barrockismo (misto de barroco com rock), observa o Prof. Pedro Ulysses Campos:
 

"Independentemente dos reflexos neo-barrocos entre as literaturas latino-americanas, Glauco Mattoso tem sua própria interpretação do que seja uma estética barroca na poesia: conciliando o esmero formal (com seus malabarismos léxicos, semânticos e fonéticos) e as transgressões temáticas da contracultura, o poeta rotula de 'barrockismo' a transgênese de linguagens entre o underground e o construtivismo estilístico. Não apenas no livro Geléia de Rococó: Sonetos Barrocos (1999), mas em toda sua safra de sonetos, ele parafraseia ou relê procedimentos preciosistas que, ao contrastarem com a vulgaridade da matéria trabalhada, desempenham uma das características mais intrínsecas ao barroco: o paradoxo” (18).



Nunca é demais recordarmos que o paradoxo e a inadequação estilística e/ou vocabular era um dos instrumentos mais utilizados por Bretch em seu teatro didático, épico.
 
Quanto ao pornosianismo, “Glauco designa, na poesia, o apuro formal como suporte do impuro conteúdo”, utilizando o “transficcionismo” numa parcela de sua produção sonetística, parafraseando de contos alheios ou relendo, em verso, os consagrados "plots" ficcionísticos. A maior parte dos contos "sonetizados" por Mattoso está reunida no livro Contos Familiares: Sonetos Requentados. Ainda segundo a apurada análise crítica de Pedro Ulysses,
 
 "Ao embarcar, com armas e bagagens, na aventura de dar forma de soneto a contos, GM toma por 'mote' argumentos já tematizados por grandes nomes internacionais, de Mishima a Maupassant, e alguns nacionais, de Machado de Assis a Lima Barreto. Naturalmente é apenas a sugestão da trama o que serve de estopim para os versos mattosianos, pois aquilo que o autor batiza de 'transficcionismo' pressupõe, a par da 'transcriação' poética, um desvio — senão total redirecionamento — do percurso narrativo. Resta sempre, como de resto na própria prosa tomada por fonte, a imprecisa impressão de que aquela história já foi lida algures” (19).

 

Para além da poesia, Glauco Mattoso acaba de publicar, pela Ed. Lamparina, o livro “A planta da donzela”, romance no qual reescreve A Pata da Gazela, de José de Alencar, e transporta para o Brasil todo o sadomasoquismo dos bordéis ingleses na era vitoriana. Nessa obra, escreve ele na quarta capa:

 

(...) minha crítica ao moralismo de Alencar sugeria a necessidade duma refutação mais prática e exemplar, que questionasse o argumento ético (de que o fetichismo não passaria de mero capricho ou fogo de palha) e sustentasse o argumento estético (de que tamanho não é documento, se a atração erótica for mais forte que as aparências), mas sobretudo contestasse o argumento machista (de que somente o pé feminino seria digno de atenção) – refutação que ora se materializa sob a forma deste romance intertextual e metalingüístico” (20).

 

Por fim, Mattoso e Artaud se enlaçam na transgressão daquilo que o pensador e sociólogo Michel Maffesoli chamou de “a rebelião do bem”, ou seja da revolta da consagração do bem como valor absoluto. Em “A parte do diabo”, Maffesoli mergulha no aspecto antropológico estrutural da violência, observando em certo trecho:

 

“O próprio do trágico, que bem traduz a presença de um mal incontornável, refere-se essencialmente à força de alteridade, ou seja, ao fato de quem cada coisa, em cada situação, existe o contrário. Contrário que não se pode negar ou denegar. Pode-se, é verdade, estigmatizá-lo, tratar de marginalizá-lo e revitalizá-lo, mas ainda que em forma de sombra, ele está presente. (...) Eros perturbador e inquieto, ou o Diabo, deixa clara, para sempre, a imperfeição da criação. (...) Nesse sentido, ilustra o descontentamento de Deus em relação a si mesmo. Podemos considerá-lo a projeção de sua própria dúvida” (21).


Ao mostrar o avesso de um mundo confortável, ao “exprimir um mundo diferente daquele que a ordem estabelecida pretende impor”, Glauco e Antonin direcionam-se a uma língua secreta,

 

“(...) remetem a uma espécie de sabedoria demoníaca que enfatiza a inteireza do ser, ainda que em seus aspectos menos atraentes. Afinal, os humores, em suas diversas secreções, também são necessários ao equilíbrio corporal, garantindo seu bom funcionamento. (...) E quando “o selvagem, o bárbaro, o demoníaco e outras fantasias animais, quando a pele, a epiderme e os humores se exibem, tudo é feito numa certa inocência benigna e com uma inegável vitalidade. A teatralização do daimon (o que nos é dado, mas não de forma absoluta) é uma boa maneira de domesticá-lo, de proteger-se dele. Velha sabedoria popular que afirma que mais vale compor com a sombra do que negá-la. Não fugir dela, mas passar através dela (C. G. Jung). Posição pouco confortável, é verdade, mas ainda assim sabedoria que, no dia-a-dia, homeopatiza o mal até fazer com que ele proporcione o bem de que também é portador” (22).

 

Glauco Mattoso e Antonin Artaud, a seus modos, fazem exatamente isso. Através da crueldade, ambos, destroem o bem enquanto valor hegemônico, e, abertos ao paradoxo, capazes de pensar o mundo e a arte de forma múltipla e polissêmica, transfiguram o político, pela experienciação da própria imperfeição, “expressão de um mal, mas de um mal dinâmico”. Eros não é mais o “cupido”, cúmplice e auxiliar dos apaixonados; mas o instigador de inquietação, “o arquétipo da imperfeição, do desequilíbrio conflituoso, de uma sede de alteridade que persegue tudo e todos. “(...) O monstro é a metáfora do completamente outro que existe à espreita em cada um”. Sobre essa inquietação questionadora, Artaud já a ela se referia, “núcleo irrequieto”, aquela essência “que as formas não tocam, e através da qual pode-se captar a vibração, o vivo das coisas” (23).


 A crueldade que Glauco e Artaud propõem e sofrem ao mesmo tempo, é um compartilhamento de paixões e emoções, um leitmotiv para invocar o que há de diabólico e perverso em nós, e que insiste em tocaiar-nos sub-repticiamente. Só fazendo com que esses gritos represados venham à luz, escapamos de ser subjugados por eles, dominados justamente por ignorá-los. Se, como observa Jung, “ninguém se mantém distante do negrume”, convém também não fugir ao confronto. Disse Brecht, outro contemporâneo de Artaud (Alemanha, 1898-1956) que “todas as artes contribuem para a maior de todas as artes: a arte de viver”. Essa talvez seja a maior qualidade para além do mérito artístico da obra de Glauco e Artaud: ver o mundo através da perspectiva da crueldade, como um modo de denunciar os massacres cotidianos, sobre os quais não devemos silenciar (24).

 

 

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS NO TEXTO

 

(1) RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro, tradução de  NEVES Paulo. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

(2) MACHADO, Arlindo. Máquina e Imaginário: O Desafio das Poéticas Tecnológicas. São Paulo: EDUSP, 1993 Edusp, 1993. [online]. Disponível na Internet via URL: http://www.eca.usp.br/alunos/posgrad/denise/sonho.htm#t4. Arquivo capturado em: 10 de outubro de 2005.

(3) DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença, tradução de SILVA, Maria Beatriz M. N. da. São Paulo: Perspectiva, 1967.

(4) MACIEL, Maria Esther. Teatro de Palavras: Mallarmé, Fernando Pessoa e Octávio Paz. Revista de cultura 18/19, Fortaleza/São Paulo, nov/dez de 2001. [online]. Disponível na Internet via URL:  http://www.secrel.com.br/jpoesia/ag18maciel.htm. Arquivo capturado em 20 de novembro de 2002.
(5) ARAÚJO JÚNIOR, José Carlos. As idéias que dançam: o teatro de Artaud e a dança Butoh. [online]. Agulha revista de cultura 18/19, Fortaleza/São Paulo, nov/dez de 2001. [online]. Disponível na Internet via URL: http://www.secrel.com.br/jpoesia/ag18araujo.htm. Arquivo capturado em 15 de outubro de 2005.
(6) CAMPOS, Pedro Ulysses. In: Site oficial de Glauco Mattoso. [online]. Disponível na Internet via URL: http://glaucomattoso.sites.uol.com.br/quem.htm. Arquivo capturado em 7 de setembro de 2005.

(7) MATTOSO, Glauco: depoimento, constante do arquivo pessoal de Leila Miccolis, enviado por e-mail em 8 de setembro de 2005.

(8) ARTAUD, Antonin. In: TEIXEIRA, Ana. O teatro da cura cruel. [online]. Disponível na Internet via URL: <http://www.interface.org.br/revista5/espaco1.pdf>. Arquivo capturado em 7 de outubro de 2005.

(9) BROOK, Peter.  O tempo e o espaço,  tradução ARARIPE, Oscar. Petrópolis: Ed. Vozes, 1970.

(10) ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu duplo, tradução COELHO, Teixeira. São Paulo: Ed. Max Limonad, 1987.

(11) Idem.

(12) MATTOSO, Glauco: depoimento constante do arquivo pessoal de Leila Miccolis, enviado por e-mail em 20 de setembro de 2005.

(13) GROTOWSKY, Jerzy. Em busca de um Teatro Pobre, tradução de CONRADO, Aldomar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 4ª ed., 1992.                                                         

(14) MATTOSO, Glauco: depoimento constante do arquivo pessoal de Leila Miccolis, enviado por e-mail em 20 de setembro de 2005.

(15) BUTTERMAN, Steven F. Perversions on parade – Brazilian Literature of Transgression and Postmodern Anti-Aesthetics in Glauco Mattoso. USA: Hyperbole Books (San Diego State University Press), 2005.

(16) ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu duplo, tradução COELHO, Teixeira. São Paulo: Ed. Max Limonad, 1987.

(17) QUILICI, Cassiano Sydow. Antonin Artaud -  Teatro e ritual. São Paulo: Annablume, 2005. Disponível na Internet via URL:  http://www.annablume.com.br/comercio/product_info.php?cPath=&products_id=595. Arquivo capturado em 20 de outubro de 2005.

(18) CAMPOS, Pedro Ulysses. In: Site oficial de Glauco Mattoso. [online]. Disponível na Internet via URL: http://glaucomattoso.sites.uol.com.br/quem.htm. Arquivo capturado em  7 de setembro de 2005.

(19) Idem.

(20) MATTOSO, Glauco. A planta da donzela. Rio de Janeiro: Lamparina, 2005, RJ.
(21) MAFFESOLI, Michel. A parte do diabo – resumo da subversão pós moderna, tradução: MARQUES, Clovis. Rio de Janeiro: Record, 2004.

(22) Idem.

(23) MACIEL, MARIA Esther. A poesia e seus pontos de fuga (entrevista conduzida por Floriano Martins). [online]. Disponível na Internet via URL: http://www.letras.ufmg.br/esthermaciel/entrevistafloriano.html. Arquivo capturado em 15 de novembro de 2003.

(24) BORNHEIM, Gerd. Brecht – A estética do teatto. São Paulo: Graal, 1992.

 

 

BIBLIOGRAFIA SECUNDÁRIA:

 

• MATTOSO, Glauco. Memórias de um Pueteiro: as melhores gozações de Glauco Mattoso. Editora Trote. Rio de Janeiro; 1982.
• MATTOSO, Glauco. Línguas na Papa. São Paulo: Editora Pindaíba, 1982.
• MATTOSO, Glauco.  Centopéia - sonetos nojentos & quejandos, Paulicéia ilhada: sonetos tópicos e Geléia de rococó: sonetos barrocos. São Paulo: Ciência do Acidente, 1999. Nota: a trilogia perfar-se-ia com o livro “As mil e uma línguas”, de 2003.

• MATTOSO, Glauco. Manual do Podólatra Amador. São Paulo: Expressão, 1985.
• ARISTÓTELES. Arte e Retórica e Arte Pética, trad. CARVALHO, Antonio Pinto, Estudo introdutório TELLES JÚNIOR Goffredo. Rio de Janeiro: Ed. Ediouro, 15ª ed., s/data.

• SCHEFFLER, Ismael. O teatro político de Antonin Artaud. Revista Espaço-acadêmico, nº 31, dezembro de 2003, ISSN: 1519.6186 [online]. Disponível na Internet via URL: http://www.espacoacademico.com.br/031/31cscheffler.htm. Arquivo capturado em 17 de outubro de 2005.
• MONTEIRO, Sueli Aparecida Itnamn. Tentando compreender Prometeu e Dionísio na mira da violência. [online]. Disponível na Internet via URL:

http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v19n47/v1947a06.pdf. Arquivo capturado na internet em 20 de outubro de 2005.

• ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral, tradução e apresentação: Michalski, Yan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2ª ed.,1998.
• ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.

• STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da Poética, tadução do alemão de GALEÃO, Celeste Aída e, da parte grega, LOURO, Rosa Carino. Col. dirigida por PORTELLA, Eduardo. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1969.

• MACIEL, Maria Esther. Vôo Transverso – Poesia, Modernidade e Fim do Século XX. Minas Gerais e Rio de Janeiro: Editoras Sete Letras e FALE/UFMG, 1999.

• MAFFESOLI, Michel. O instante eterno – o retorno trágico nas sociedades pós-modernas. São Paulo: Zouk, 2003.

HIRSCH, Linei. Transcriação teatral: da narrativa literária ao palco. Rio de Janeiro: O Percevejo nº 9 – Revista de Teatro, Crítica e Estética da Uni-Rio, 2000.
•  CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

• NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo, trad. GUINSBURG, Jacó. São Paulo: Ed. Cia. das Letras, 2002.

 

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