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Barbara Kruger: [entre] arte e publicidade

Por Fernanda Pequeno

Mestranda em História e Crítica de Arte

Pelo Programa de Pós-Graduação em Artes

Da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

 

  

Barbara Kruger nasceu em Newark, estado norte-americano de Nova Jersey, em 1945. Começou trabalhando como diretora de arte de revistas e como designer para capas de livros, entre outros trabalhos. Entrou para o “mundo da arte” em 1969, escrevendo poemas e pintando. Cursou Escola de Design e atualmente reside e trabalha em Nova York, aonde vem atuando como artista / curadora / professora / escritora / designer para grupos políticos individuais e institucionais / colaboradora com arquitetos e paisagistas para parques inovativos, entre outros.

Desde 1979 Barbara Kruger utiliza a linguagem dos veículos da mídia com um estilo característico de assinatura: fotos em branco e preto e aforismos em fontes específicas, imitando o vocabulário da propaganda e subvertendo-o, para focalizar temas de relevância social como a violência, a saúde pública e a discriminação. Utilizando-se de outdoors, a artista intervém na paisagem urbana, através de imagens impessoais, já amplamente difundidas, muitas delas reticuladas que, combinadas a frases de efeito, ganham ainda mais força.

A combinação de slogans ambíguos com imagens em preto e branco lembra uma página de design gráfico da revista Mademoiselle, onde Kruger trabalhou por onze anos aprendendo e aperfeiçoando seu design. A artista também acabou se rendendo a mensagens em camisetas, sacolas, posters e fotomontagens, aqui com uma voz ainda mais raivosa e inquiridora.

Segundo Hal Foster, esse tipo de trabalho não propõe uma experiência formal ou perceptiva, pelo contrário, busca filiação com outras práticas, indo buscar material na indústria de massas, por exemplo. Nesse sentido, a artista nega a posição modernista de autonomia da arte, fazendo empréstimo de conceitos de outras esferas. Com a mesma ironia de Andy Warhol, Kruger também se apropria de imagens veiculadas pela mídia, com a diferença básica de que suas técnicas de transporte e impressão das mesmas já não possuem qualquer resquício de manufatura / artesania. Seu interesse não se dá na pintura que, em Warhol, ainda possuía um ranço de “subjetividade” (vide os “erros” propositais de impressão); Barbara Kruger, por outro lado, opera conceitualmente e seu interesse se dá sobre o imaginário social e a recepção das obras e sobre o simbolismo e o poder dessas imagens. Além do mais, enquanto Andy Warhol se apropriava de celebridades, Barbara Kruger usa a imagem de anônimos ou de personagens fictícios.

Segundo Michel Foucault[1] o discurso necessariamente envolve uma relação de poder e, assim, quando se analisa, ensina, pinta ou reproduz uma visão qualquer de mundo, conseqüentemente se estaria dominando, reestruturando e tendo autoridade sobre aquele / aquilo a respeito do qual / do que se fala. O mesmo se pode dizer dos signos de propaganda: tentativas de dominação e pontos de vista ideologicamente demarcados estão diluídos em tais procedimentos. Segundo Hal Foster, “um sinal é uma diretiva social; uma placa é um marcador da verdade oficial que exalta um lugar ou um nome próprio como a própria presença da história”[2]. Por ter consciência do poder da mídia, a artista não nega a sua existência, pelo contrário, ela se apodera desse meio, para poder subvertê-lo.

A artista trata o espaço público, a representação social e a linguagem na qual intervém tanto como um alvo quanto como uma arma. Nesse caso, ainda segundo Hal Foster, “o artista se torna um manipulador de signos mais do que um produtor de objetos de arte; e o espectador, um leitor ativo de mensagens mais do que um contemplador passivo da estética ou o consumidor do espetacular”[3]. Barbara trabalha com mensagens ambíguas / irônicas e frases de duplo sentido de maneira a subverter os meios utilizados. Para tal, utiliza meios não convencionalmente vinculados à arte: no lugar dos objetos, normalmente estão diferentes meios normalmente vinculados à propaganda e ao consumo. Sendo assim, suas sacolas de compras e camisetas funcionam como espécies de múltiplos.

Kruger trabalha não somente com a criação de imagens (em muitos casos ela fotografa, grava, imprime), como também com a sua manipulação através da apropriação, da montagem /colagem e de sua re-semantização. Para enfatizar tal procedimento, a artista atribui-lhes sentidos (outros) através do uso de frases de efeito, muitas delas imperativas, assertivas, agressivas e, principalmente, argumentativas.

Filiada ao legado de artistas conceituais que mantiveram uma postura crítica frente às instituições, Kruger herdou a atenção especial ao lugar, à comunicação e ao público e a crítica aos parâmetros estabelecidos de produção e recepção da arte. Seu foco, porém, é mais específico. Seu interesse é intervir nas linguagens e nas ideologias da vida cotidiana e no poder vigente nas representações sociais. Isso não quer dizer que seus trabalhos não toquem a questão da manipulação econômica do objeto de arte, no que diz respeito a sua circulação e consumo como signo-mercadoria: não é a toa que Barbara se apropria de outdoors e outros veículos da mídia. E também não é à toa que, em alguns trabalhos, o que não é o caso de nenhum aqui apresentado, o pronome em primeira pessoa “I” significa o próprio trabalho de arte falando ao público. Os conceitos de originalidde e identidade também são referentes às obras: o pronome “I” representaria o próprio trabalho anunciando a sua competência e autenticidade, a sua própria singularidade, pondo em questão a sua autoridade e seu status como fotografia.

A conexão entre texto imagem não seria possível se não fosse os conceitualistas anteriores mas, para melhor entender a prática de Kruger, é salutar que recorramos a Vilém Flusser. Para este autor, nós estaríamos hoje na Pós-História, época na qual haveria uma retomada do texto, não mais como tentativa de explicação / tradução de imagens, mas sim no sentido de atribuir-lhes sentido. Flusser nos fala de tecnoimagens, que seriam diferentes das imagens tradicionais, idolatradas na Pré-História: as primeiras funcionariam como instrumentos para tornar imaginável a mensagem dos textos. A contemporaneidade não se caracterizaria mais pela prevalência de uma “modalidade” (texto ou imagem) sobre a outra, pelo contrário, ela se distinguiria pela presença de ambas em concomitância. Dessa maneira, as imagens atuais não excluiriam os conceitos, pelo contrário, elas se “mesclariam” / conviveriam em harmonia com os textos. Segundo Flusser: “O pensamento conceitual, o qual na sua origem era iconoclástico, passa a ser atualmente preparador para o pensamento imaginativo novo. Serve, não mais para explicar o mundo, mas para dar-lhes sentido”[4].

Andy Grundberg no capítulo So Much To Tell” do livro Crisis of The Real, fala de poesia, mas localiza a artista como negadora da construção da página do livro, para colocá-la como optativa pela estrutura do comercial de televisão, pelas luzes neon da Times Square e pelos outdoors. No entanto, a artista não nos faz esquecer que essa sintaxe pode ser, por suas próprias mãos, também poética. O mesmo autor focaliza que os textos de Kruger existem fora das esferas poéticas tradicionais, mais facilmente lidos e identificados como “arte”. Por outro lado, embora extrapolem os versos e as páginas do livro, a repetição de unidades independentes de “igual duração” (tamanho padrão, diagramação semelhante, fotos em preto e branco, frases curtas e diretas no imperativo sempre na mesma fonte, tamanho e cor, etc) fornece um ritmo e uma espécie de métrica.

Os trabalhos de Barbara Kruger subvertem os gestos de poder, não só pelo viés feminista e pelas polêmicas anticapitalistas, mas sobretudo, pela sua estratégia de combate dentro do espaço da arte. Suas palavras reverberam não somente contra outras palavras, mas igualmente também contra imagens. Ainda mais porque tornam a relação espectador-obra como uma experiência pública: diferente de uma fruição contemplativa, a artista coloca os trabalhos na rua, para todos verem, e sua recepção também é imediata, instantânea, visto que os trabalhos são realizados com imagens que já são de ampla circulação, facilmente reconhecíveis e acessíveis a todos. Por outro lado também, a relação proposta não é a experiência presente do Modernismo, mas sim uma relação processual, fragmentada e cheia de interferências.

Seu trabalho segue uma agenda política e, consciente da eficácia das imagens e da capacidade dos signos de afetar estruturas de crença, ela se utiliza e opera nos diferentes lugares em que esses signos circulam: livros, camisetas, cartazes, etc, semelhante à atuação de Keith Haring em relação à indústria cultural e ao mercado, só que com uma postura menos entusiasta. A combinação de slogans ambíguos com imagens em preto e branco gera trabalhos que são explícitos, declarativos, impertinentes e funcionam como intervenções em representações e estereótipos.

 

 

A Atuação Feminista           

 

Barbara Kruger e sua orientação feminista colocam em xeque os limites de exposições da arte como socialmente indiscriminadas e sexualmente indiferentes. Para tal, a artista usa diversas imagens e textos, de maneira a desfazer a natureza especular das representações que submetem a mulher ao olhar de um sujeito masculino unívoco, desorientando a norma e levando a linguagem a uma crise.

Como nos diz Hal Foster sobre a artista: “Embora sejam tão sedutores quanto qualquer anúncio de cultura de massa, seus fototextos se articulam para refletir o olhar masculino que sujeita as mulheres mediante um falso ideal feminino e para bloquear a identificação feminina que se submete a esse construto. As mulheres, nas imagens usadas por Kruger, estão em geral, posando ou sendo perseguidas, mas nem nenhum desses casos são passivas, nem colocadas ali para serem vistas, salvas, descobertas, usadas.”[5]

O pronome em 1ª pessoa “We” normalmente é associado às mulheres, entre as quais, obviamente, a artista se inclui; Já o pronome “You” (ou as designações “other” ou “another” dizem respeito aos homens).

Kruger opera interceptando estereótipos. Após a constatação de sua existência, ela passa a questioná-los, através do remanejamento de imagens. Porém, a artista tem noção do risco que essa operação envolve, uma vez que a realização desses trabalhos pode soar como confirmação ou mesmo corroboração de certas representações. Se os papéis sociais são construídos como representações, eles podem ser revisados e reconstruídos através do discurso. A teoria feminista contrasta com a multiplicidade de posições subjetivas dentro da linguagem e seus rígidos paradigmas de identidade gerados por e para a ordem social.       

 

 

A Relação de Apropriação do Consumo e a Crítica ao Consumismo

 

Kruger possui um posicionamento criticamente demarcado e politicamente localizado frente ao poder econômico e frente ao capital. Para a artista, está subentendido que a economia é, sobretudo, política. As imagens da artista não somente parecem poderosas, mas nos falam sobre poder. Acreditando que o consumo e o dinheiro também funcionam coercitivamente, como formas de controle, a artista vai pô-los em questão.

            O ritmo visual da sociedade do espetáculo (regulada pela rapidez e instantaneidade, pelo compasso da Televisão e pelo padrão dos dez segundos das mensagens comerciais) é entendido e digerido pela artista: posters, cartazes e outdoors são utilizados de modo a tornar a recepção dos trabalhos pública e a sua percepção imediata. A fruição não é contemplativa ou duradoura, mas sim instantânea e fragmentada. Talvez até por isso a artista use frases curtas e assertivas, utilizando slogans, tão comuns à linguagem familiar da publicidade. Seus trabalhos se confundem freqüentemente com anúncios publicitários, o que causa a subversão efetiva do meio (no caso, a mídia). Kruger apreende, compreende e aplica a sintaxe do espetáculo como estratégia de reversão e crítica. O “senso de presente” e o “senso de urgência”, mais literais em performances, são, de qualquer maneira ícones da sociedade do espetáculo e isso não passa despercebido pela artista. Barbara Kruger leva em consideração a agilidade, a imediaticidade e a exterioridade de seus trabalhos e de sua percepção e recepção. E faz disso uma arma. Endereça, assim, seus trabalhos ao “homem sem centro, sem interior”, do qual Rosalind Krauss nos fala em “O Duplo Negativo”[6].

            Dessa maneira, seus trabalhos seguem uma agenda política, seja pelo viés feminista, pela postura anticapitalista e de crítica ao consumismo, pelo questionamento das identidades e das relações de poder através de representações e estereótipos socialmente moldados ou ainda pela localização do lugar da arte e sua manipulação econômica enquanto objeto. E assim, Barbara Kruger endereça o mundo da arte ao público passante. Na tentativa de engajar os espectadores numa discussão maior, mais ampla que as suas inquietações privadas e pessoais, a artista aborda a arte como “ato de conversação”, como forma de diálogo com o público. 

 

 

Bibliografia:
 

FLUSSER, Vilém. “Nossas Imagens”. In Pós-História. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1983.

_______________. “Texto / Imagem Enquanto Dinâmica do Ocidente”. In Cadernos Rioarte, Rio de Janeiro, ano II, n.5, jan., 1996.

FOSTER, Hal. “Signos Subversivos”. In Recodificação. São Paulo: Casa Ed. Paulista, 1996.

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

GRUNDBERG, Andy. “So Much To Tell”. In Crisis of The Real. Nova York: Aperture Foundation, 1990.

KRAUSS, Rosalind. Caminhos da Escultura Moderna.São Paulo: Martins Fontes, 1998.

LINKER, Kate. Love For Sale. Nova York: Harry N. Abrams, Inc., Publishers, 1990.

Thinking Print: Books to Billboards, 1980-95. WYE, Deborah (curadora e organizadora). The Museum of Modern Art, New York, 19 de junho a 10 de setembro de 1996. 


 

[1] FOUCAULT, Michel. A Ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

[2] FOSTER, Hal. Recodificação. São Paulo: Casa Ed. Paulista, 1996. Pg 140.

[3] Op. Cit. Pg. 152

[4] FLUSSER, Vilém. “Texto / imagem enquanto dinâmica do Ocidente”. In Cadernos Rioarte, Rio de Janeiro, ano II, n.5, jan., 1996.

[5] FOSTER, Hal. Recodificação. São Paulo: Casa Ed. Paulista, 1996. Pg. 155

[6] KRAUSS, Rosalind. Caminhos da Escultura Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

 

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