Amor, filosofia, fundamento
Carla Francalanci
Antes de dar início à investigação de nosso tema de estudo, antes mesmo de apresentar o teor ou conteúdo de nosso trabalho, devemos nos colocar diante da pretensão que sustenta toda esta nossa atividade: nosso intuito primeiro é realizar um trabalho de filosofia. É preciso aclarar tal intuito: não pretendemos tomar a filosofia como objeto de estudo, a fim de discorrer, de maneira mais ou menos douta, sobre sua metodologia própria, sobre seus aportes específicos ou sobre suas conclusões abalizadas. A pretensão, apesar de mais simples, é contudo bem maior: trata de que procuremos nos mover dentro daquilo que é próprio à filosofia, a fim de que ela se perfaça neste estudo, que ele nela penetre, de modo que o escrito venha tornar a filosofia manifesta, como sendo, deste, em realidade, o elemento. Tal pretensão deixa entrever uma determinada compreensão, embora vaga, do que seja a filosofia: antes de um objeto, matéria ou assunto determinado, um elemento ou meio, pelo qual o pensamento, se a ventura lhe for propícia, navega. Assim, para que esta compreensão se torne mais precisa e possa – ou não – ser corroborada, faz-se imperioso, de antemão, perguntar: o que vem a ser filosofia?
Vários são os caminhos através dos quais esta questão pode nos conduzir. Um dentre eles consiste em torná-la compreensível desta maneira: "o que é filosofia?", isto é, desde onde, a partir de quê a filosofia se realiza, se consuma como isso que ela, efetivamente, vem a ser? Ao ser assim pensada, a questão surge como uma pergunta pela sua origem. Seguindo os passos de tal encaminhamento, nossa pergunta se redireciona: como se deve então apreender a origem da filosofia? Origem: isto a partir de quê algo recebe direcionamento, ganhando assim sua delimitação. A origem da filosofia constitui o fundo, o solo de um enraizamento constitutivo. Ao ser considerada deste modo, a origem deve ser pensada como isto que permanece vigente, como solo vivificante e nutriz, enquanto a filosofia se dá, realizando-se a cada vez em um presente.
Contudo, ao nos perguntarmos pela origem da filosofia, nosso estudo nos conduz ao seu princípio. Apesar de não se confundir com o que buscamos através do termo origem, o princípio, o momento primeiro de eclosão, de manifestação de origem, aparece como o lugar em que esta se apresenta resguardada em seu brilho inaugural, surgindo, assim, como o que já é maximamente e, desde então, contínua e reiteradamente será. Tal princípio, buscado em razão de sua origem norteadora, situa-se na Grécia, em torno ao século VI a.C. Aí se encontra, pela primeira vez, um modo de investigação que se reconhece distinto de todos os demais, e que, em o sendo, procura nomear-se. Desta nomeação primeira, o fragmento 35 de Heráclito nos apresenta um registro. Nele lemos: khrè eu mala pollõn hístoras philosóphous ándras einai (É bem necessário serem os homens amantes da sabedoria para investigar muitas coisas)[1]. Aparece cunhado, na fala do pensador, o termo sobre o qual se desenrola esta indagação. Não se trata ainda de he philosophía, a forma substantivada pela qual posteriormente passamos a conhecê-la, e que, pelo seu próprio caráter substantivo, se apresenta circunscrita de antemão, como constituindo algo, assunto ou matéria, delimitado. Na fala de Heráclito, o termo surge com função adjetiva, na forma philosóphous ándras. O qualificativo philósophos, antes de apontar para a delimitação ou determinação necessária de uma ação, faz menção a um modo possível de ser, dentre tantos aqueles que o homem pode, a cada vez, assumir. Desta maneira, se encontra nomeado, nesta passagem, um homem hòs philei to sophón. Assim, é pela conjugação de philei e sophón que surge, então, o termo philósophos, permitindo, a partir daí, criar-se a designação philosophía, onde esta poderá ser encarada como atividade determinada.
Contudo, o termo philosophía, pensado a partir de seus termos formadores, não indica nada de definido ou delimitado; ao invés de circunscrever o campo de seu estudo -- como fazem os termos "biologia" ou "antropologia", por exemplo -- o que ele descreve é, antes, o modo de acesso a isso que, podemos talvez dizer, constitui seu "objeto": o sophón. Este modo de acesso, o movimento que conduz ao sophón, é o que se encontra indicado, precisamente, através do verbo philein. As traduções correntes deste termo o compreendem como amar, ser caro a, devotar amizade a algo ou a alguém. Aparentemente, não poderíamos estar mais distantes de uma pista que nos conduza a pensar a origem da filosofia. Pois como pode algo que pertence à esfera dos sentimentos, logo, ao âmbito do puramente subjetivo, dizer algo acerca da investigação filosófica? Seremos obrigados a dizer que uma ligação qualquer entre philía e philosophía deverá conduzir forçosamente esta última à ordem do subjetivo? Ou, ao contrário, teremos que nos esforçar por "objetivar" a philía, para fazê-la adequar-se ao que, hoje, presumimos que seja a filosofia, uma investigação de cunho exclusivamente racional, que alija, por definição, tudo que pertence ao plano dos assim chamados "estados de alma"?
Uma vez colocadas estas perguntas, é preciso que a investigação volte sobre si mesma, e peça contas de sua própria maneira de investigar. Pois faz-se necessário, aqui, indagar: será que tais questões nascem de uma real compreensão do que se encontra exposto? Ou não estaremos, talvez, pressupondo demais e investigando "de menos"? De nossas indagações surgem logo, por tarefa de fidelidade, outras questões, incidindo sobre aquelas: é correta a tradução usual de philein por amar, ter amizade? Sabemos, realmente, o que entendemos por amor, ao identificá-lo como um "sentimento"? É cabível assumir por princípio que os "sentimentos" pertencem ao campo do "subjetivo"? Aparentemente, havíamos pensado poder passar ao largo de tais perguntas, sem ao menos suspeitar do lugar onde ancoramos para, em sua segurança, poder formular nossas indagações iniciais. Assim, para que o espanto causado pelo pertencimento do philein ao que compreendemos de antemão ser a filosofia possa ser esclarecido, será necessário encarar o problema sem esquivas ou saberes prévios, iniciando mais uma vez: o que podemos compreender por philein?
Émile Benveniste[2] efetua um resgate deste termo desde suas raízes filológicas, de maneira a mostrar que, de acordo com os registros mais antigos deste termo, como por exemplo em Homero, o adjetivo phílos era empregado para denotar, primeiramente, compromissos estabelecidos em um plano interpessoal: seja os de um guerreiro para com seus companheiros ou superiores, os de um estrangeiro para com seu hóspede ou vice-versa, os do marido com relação à esposa, ou mesmo aqueles que podiam circunstancialmente ocorrer entre inimigos, como no momento em que, durante uma batalha, os combatentes fixavam um pacto restrito. A philótes homérica pode ser, então, descrita como este acordo preciso firmado entre diferentes membros de uma comunidade. Este acordo, entretanto, dada a proximidade e o vínculo que termina por estabelecer, passa a converter-se em algo de ordem pessoal, ou seja, em um "sentimento". Tomada desde esta acepção é que a noção se alarga, e passa a designar todos aqueles, e mesmo determinados objetos ou partes do corpo, que se encontram investidos de uma carga afetiva, ou que ingressam no trato pessoal ou familiar de alguém. Desta maneira, o verbo philein pode efetivamente ser traduzido, dependendo do seu contexto, por amar, devotar amizade, ser caro a, estes tendo, posteriormente, pelo uso, se tornado seus sentidos mais usuais.
É preciso que nossa questão, assim, se redirecione: se philein pode efetivamente significar amar, que compreendemos nós por amor? Nossa primeira inclinação é responder -- se é que isto pode ser tomado por uma resposta: seja o que mais for, o amor é, antes de tudo, um sentimento. Vejamos, pois, se, pela investigação deste último, poderemos finalmente chegar a uma compreensão do amor que, apresentando-o como um sentimento, traga consigo um esclarecimento para a questão.
O que é isso que denominamos, corriqueiramente, um sentimento? É algo que nos toca, nos afeta e nos move; um estado no qual, quando dele nos damos conta, já nos encontramos de saída, como que "mergulhados". Não é nada que exista de per si, como algo, mas antes um modo como ou através do qual nossa vida e a dos outros se desenrola. O sentimento é, propriamente falando, um como. Assim, podemos qualificá-lo, por princípio, conforme seu caráter modal, tomando tal termo de empréstimo ao vocabulário da música. O modo na música corresponde a uma determinada ambiência ou clima, formada pelas diferentes disposições de intervalos, tons e semitons, dentro da qual abrem-se incontáveis possibilidades para o acontecer musical. Da mesma maneira como ocorre na música, os acontecimentos que sobrevém em nossa vida somente atuam em nós, nos alcançam e abordam, através deste filtro, do modo que perfaz o sentimento; eles são experienciados sempre e necessariamente segundo o nosso como circunstancial e momentâneo, de maneira que um mesmo sucedido pode, conforme o modo, acarretar as reações mais diversas e, no mais das vezes, contraditórias.
O termo modo, pensado a partir de sua origem latina, traz ainda para nossa investigação uma ampliação de sua gama de sentidos, nos constrangendo a conjugar a compreensão exposta com outras de suas conotações fundamentais, as de medida, cadência e limite. O modo que perfaz o sentimento nos confere a cada vez sua medida própria, ele é mesmo a medida para tudo o que nos ocorre. Sendo assim, se é sob sua regulamentação que cada situação da vida se nos apresenta, faz-se necessário compreendê-lo como aquilo que lhe impõe sua cadência. A vida, desta maneira, pode ser pensada como isso que transcorre de acordo com o ritmo particular de cada um de nossos modos, na métrica própria de cada como instaurado. O modo deve, ainda, ser pensado em sua correlação com a noção de limite, uma vez que ele constitui a barreira inultrapassável de nossa existência, pois esta jamais pode ser encontrada fora da determinação de um modo, sem estar de antemão perpassada por isso que denominamos, de saída, um sentimento, um como.
Costumamos também dizer de um sentimento, que por ele nos encontramos comovidos. Um sentimento é algo que nos comove. A designação comoção, comover também parece descrevê-lo perfeitamente, se retirarmos dela o caráter subjetivo e intimista que costuma cotidianamente receber. Comover é pôr em movimento, ordenando e dispondo aquilo que assim se move. O presente termo fala, desta forma, de um tornar-se princípio de ação, de atividade. O que comove, em o fazendo, comanda ação, dá movimento. E será possível pensar a vida fora de atividade e movimento? Se não o for, devemos concluir: será o comover, o sentimento, o modo, isso que buscamos através de suas manifestações na linguagem, algo da ordem de um princípio vital?
Ainda se denomina o mesmo fenômeno, que pretendemos circunscrever, um afeto. A significação latina do termo affectum, em função de particípio, aponta como seu sentido primeiro: cheio, tomado de, disposto. O afeto, ao nos afetar, isto é, ao provocar em nós uma modificação, nos reordena e transforma, o que corresponde a dizer: o afeto é isto que, a cada vez que se instaura, provoca um re-direcionamento de nosso modo de inserção no mundo.
Correspondendo a esta função de dispôr, reiteradamente encontrada nos termos precedentes, remetemos, ainda, a outra denominação comum: tomados de determinado sentimento, modo, comoção ou afeto, nos encontramos dispostos de tal ou tal maneira, da mesma forma que nos compreendemos bem ou mal dispostos para com determinada tarefa ou assunto. Podemos, assim, denominá-lo igualmente uma disposição. Esta noção abrange um ordenar, um pôr em ordem, um compor. Ao nos compor em um como determinado, o sentimento nos governa e dirige, nos ordenando segundo a dinâmica por ele próprio instaurada.
Em todas estas designações, percebemos um núcleo que lhes é comum; partilham eles da mesma maneira de ser: um tomar, preencher, dispondo, e, assim, ordenando, que ocorrem em nós como que por princípio, previamente a qualquer atividade. Mas o que significa este "por princípio"? Se o que tentamos descrever se manifesta como o que jamais deixa de ocorrer a cada situação da vida, aparecendo como isto sem o que nossa vida jamais se apresenta, é forçoso que ele seja pensado como sendo, para o modo de existência que pertence ao homem, o fundamento, a origem. E, reencontrando nossas afirmações primeiras acerca da origem, vemos que, pela descrição de seu modo de ser, ao manifestar-se como fundamento, a descrição do sentimento em sua dinâmica própria faz co-presente a maneira mesma de seu dar-se, como um dispor que ordena, pela configuração e delimitação disso que é por ele abarcado e, neste movimento, circunscrito. O sentimento constitui a origem, em seu movimento de criar, este, por sua vez, aparecendo como um formar conformando, isto é, conferindo pulso, cadência e limite. O sentimento é, assim, o solo desde o qual se formam e ao qual se conformam todas as nossas perspectivas, tudo que nos acontece e perpassa, toda situação e ação, pensamento ou tarefa, todo encontro ou desencontro que pode a cada vez sobrevir.
Esta compreensão do sentimento a partir da noção de origem, como sendo isso que dá à vida consistência e possibilidade, entra em choque frontal com a maneira como se aborda e estuda tradicionalmente a dinâmica dos sentimentos. Pois, como pode isso que constitui nossa porção mais mutável e fugidia figurar como fundamento, solo sobre o qual se edifica a existência? Quanto a esta tentativa de invalidação da afirmação, de que o sentimento comunga do modo de ser de origem, através da insistência em apontar sua inconstância, o pressuposto de que esta não pode convir àquilo que se busca através da pergunta por fundamentação não se verifica como algo imposto pela própria noção buscada; ele, antes, se deve a uma suposição não investigada, a de que a origem deve consistir em um solo seguro, sendo algo de fixo, abarcável e plenamente delimitável por um pensamento esquematizante. Desta maneira, a pergunta pela origem se tem convertido, facilmente, em uma tentativa de determinação do princípio, do momento inicial, factual e determinável. Contudo, afirmamos ainda uma vez, estas duas noções não se confundem. O início é um momento marcado, abarcável; sua estrutura é a do algo, do alguma coisa, isto é, do que aceita receber uma determinação. Ao contrário, origem se apresenta, pensada desde sua maneira própria, como o inabarcável por definição; é forçoso que a ela não pertença o modo de ser do algo, pois como pode aquilo que se inscreve em um ponto preciso do tempo vigir, manifestando-se concomitante e conjuntamente a todos os momentos que são por ela originados? Podemos, mesmo, dizer: o início, como um ponto datado no tempo, é algo que passa. A origem, por sua vez, não passa: ela antes perpassa os eventos que origina, isto é, que norteia e circunscreve. Se não se dá como algo, o fenômeno da origem deve ser pensado como o que se furta, de saída, a qualquer delimitação. Desta forma, é ele o fugidio, o arredio por excelência, pois não se manifesta jamais de per si, mas somente como o junto, o conjunto, como isso que acompanha, regendo, cada evento fundado. Assim, se o início, em seu caráter factual, existe, dando-se a conhecer como algo, origem, ao contrário, insiste; pois ela é o que subjaz, em seu modo próprio de co-pertencimento, a todo momento existente[3].
É preciso levantar ainda uma segunda objeção, de caráter igualmente usual: como pode a dinâmica dos sentimentos ser pensada como fundamento, se estes são da ordem do subjetivo, isto é, do incomunicável, e pertence à vida humana, intrinsecamente, a dinâmica do ser com? A vida somente acontece no convívio, uma vez que, desde sempre, os outros já se encontram, para nossa existência, manifestos. Não é possível, assim, encontrar a vida sem ter encontrado, conjuntamente, esta sua dimensão outros. Como algo de "íntimo", "subjetivo" ou "interior" pode fundar a "objetividade" da presença, ou antes, da co-presença alheia? Contudo, será realmente necessário associar os sentimentos a isto que se convencionou encarar como "subjetivo", isto é, o campo do "íntimo", do "interior", em oposição à "exterioridade" que os outros e os demais entes representam, ao nos alcançar "de fora"? É forçoso pensar um sentimento como algo que acontece em mim, ou em cada um isolada e individualmente, para ser posteriormente constatado, de maneira objetiva e desinteressada, pelos outros, como aqueles que permanecem, necessariamente, alheios a isto que em nós ocorre? Ou o que se passa com os sentimentos, pela relação que estabelece entre nós e os outros, não se dá, antes, como uma espécie particular de contágio? Tomemos um exemplo: uma alegria subitamente toma conta do amigo que se encontra ao nosso lado. Mesmo sem que o constatemos objetivamente, modifica-se imediata e drasticamente a maneira de estarmos juntos. Meu amigo me aparece como que investido de uma leveza inaudita: sua conversa se anima, tornando-se fluente; seus movimentos ganham uma agilidade que antes não se fazia notar; tudo nele dá a impressão de um transbordamento, de que ele não mais "cabe" em si. Ainda que tal alegria não me contagie, ainda que, em meu embotamento ou indiferença, eu sequer dela me dê conta, é impossível impedir a transformação, pois o que se alterou foi, precisamente, o modo como acontece, neste momento, nosso ser em comum. A alegria de meu amigo se dá a mim, mesmo sem palavras, como um convite impossível de ignorar: ou nela já penetrei, sem sequer saber como e sem nenhuma necessidade de apreendê-la de maneira racional ou consciente, de forma que, a partir deste novo clima, deste novo como, nosso encontro passa a acontecer como um daqueles raros e preciosos instantes de leveza e alegria compartilhada, momentos especiais que ocorrem por vezes em uma convivência; ou me coloco como aquele que recusa o convite e não se deixa permear, passando a ser para meu amigo como uma barreira para sua alegria, e esta, imediatamente, como que empalidece, se ofusca ou "azeda" momentaneamente em minha presença. Ainda que o sentimento experimentado por meu amigo não provoque em mim nenhuma modificação, isto em nada altera o fato de que, por essa mudança brusca de modo, transformou-se, igualmente, nosso como comum. O sentimento aparece, pois, como uma atmosfera que banha os que se encontram ligados por uma mesma experiência, ou que compartilham, ainda que momentaneamente, de um determinado modo de ser em conjunto.
A partir do que se encontra exposto, faz-se necessário concluir: a atribuição do papel de origem dado aos sentimentos deve, forçosamente, conduzir a uma re-interpretação da maneira de experienciá-los, visto que as dicotomias clássicas "interior"-"exterior", ou "subjetivo"-objetivo", não se mostram capazes de abarcar o que, nesta dimensão, ocorre. Sendo assim, qual deverá ser o modo de abordá-los? Se eles se furtam a toda tentativa de coisificação, se não podem ser circunscritos nem a "algo" objetivamente constatável nem a "processos psíquicos" de ordem meramente subjetiva, como é possível compreendê-los? Como nos aproximar de um sentimento de forma a poder captar o que, por meio dele, nos ocorre, sem alterações ou falsificações, deixando que ele se desenvolva e nos afete como, de ordinário, o faz? Como uma resposta a esta questão, que serve, simultaneamente, de indicação para um método ou caminho possível de abordagem, Martin Heidegger afirma: alcançamos propriamente a dinâmica de um sentimento quando, ao invés de procurar constatá-lo como algo determinado, tratamos antes de "fazê-lo despertar"[4]. O que se encontra implicado nesta afirmação? Os sentimentos são, por esta expressão, equiparados ao modo de ser do sono. Este se dá para a investigação como algo de híbrido, ao partilhar de uma dupla condição: quando dormimos, nos encontramos presentes e, simultaneamente, ausentes, alheios ao que à nossa volta ocorre. Este alheamento não pode ser confundido com a simples perda de consciência, o que nos conduziria à assimilação da relação entre sono e vigília pela polarização dicotômica consciente-inconsciente. Como acentua Heidegger, esta polarização é bem mais ampla que a distinção vigília-sono, já que verifica-se perda de consciência no desmaio, por exemplo, no coma e na morte; por outro lado, ao sono pertence um modo de consciência extremamente vivo e particular, o sonho. Trata-se, mesmo, no fenômeno do sono, de um estar de modo ausente, ou de um "estar não estando". O que esta comparação aclara é que o sentimento, que nos dispõe e ordena completamente, permanece, contudo, na maior parte das vezes, e na medida mesma em que nos governa e orienta, inaparente. Torná-lo aparente, no sentido requerido de despertá-lo, não equivale a "constatar" a presença e alcance de um sentimento qualquer, já que toda constatação implica em um movimento de trazer à consciência, esta apreendendo o que assim se constata como um "algo", um objeto de percepção ou análise. O modo de proceder da consciência malogra, necessariamente, face à dinâmica própria do sentimento; sendo impossível de apreensão como "coisa" ou "objeto", uma tomada de consciência consiste, em última instância, em sua modificação e enfraquecimento. Trata-se, ao contrário, de deixá-lo ser na maneira como ele originalmente se dá, como isso que desde sempre se apresenta em sua maneira de nos ordenar e dispor. Despertar um sentimento significa, assim, permitir que ele nos fale desde si mesmo; que não o compreendamos como um "processo" que por ventura nos ocorre, mas, ao contrário, que possamos nos compreender a partir deste como ininterruptamente presente.
Sendo assim, a tarefa, indicada por Heidegger e que este estudo se propõe, será a de tornar manifesto, fazendo despertar, um sentimento, pressupondo que este já se encontra em nós. Contudo, como os sentimentos constituem-se em uma vasta pluralidade, faz-se preciso indagar: qual deverá ser o sentimento tomado como condutor de nossa investigação? A resposta a esta questão já foi dada, pois vejamos: se nossa questão inicial e condutora é a pergunta pela filosofia; se esta, ao ser investigada, tornou patente a philía como um de seus componentes primordiais; se afirmamos ser possível compreendê-la como isso que experienciamos através do termo amor, conclui-se: o amor deverá ser o sentimento buscado, ele se desentranha, assim, para esta investigação, como origem, fundamento possível para o pensar filosófico.
Agora podemos retomar a pergunta anteriormente esboçada: que é o amor, compreendido desde o que o estudo dos sentimentos tornou manifesto? Em que medida uma compreensão do amor pode aclarar nossa questão condutora, acerca do fazer filosófico?
Em primeiro lugar, é preciso visualizar o fenômeno do amor em seu campo real de abrangência: pois nossa tendência costumeira nos leva a encontrá-lo somente no plano das relações interpessoais. Contudo, o amor é algo que, de muito, as ultrapassa; podemos, sem estar recorrendo ao plano da metáfora, afirmar com acerto ser possível amar, tanto uma pessoa, quanto um cão, um time de futebol, uma bandeira, uma música, uma atividade ou idéia. E o que ocorre quando se ama, ou ainda, por quê se ama? A princípio, tal pergunta parece descabida: pois o amor é algo que ocorre em nós, e, como acabamos de afirmar, podemos amar virtualmente qualquer coisa. Logo, devemos mesmo concluir que o amor independe daquele -- ou daquilo -- que é amado, sendo algo que se dá em sentido unilateral, sempre e somente a partir do capricho ou vontade do amante em direção à passividade ou impassibilidade do amado? Vistas as coisas "de fora", assim parece ser. No entanto, não é isso, de modo algum, o que experimenta aquele que ama. Ao amar, a sensação é, mesmo, o contrário preciso do que a observação superficial nos fez pensar: quem ama o faz como uma resposta a algo que foi percebido, antevisto no amado. O amante não sente que escolhe; ele aparece para si, antes como escolhido, ou colhido pelo amor, simplesmente por haver visto algo no amado que o comum das pessoas sequer adivinha. Este algo é, em última instância, uma modalidade, ou antes, um aceno de perfeição. É a perfeição vista ou pressentida no outro, seja este de que espécie for, que desencadeia ou provoca o sentimento amoroso.
Do que estamos dizendo, pode facilmente depreender-se o que todos já sabem: amar é "idealizar" o amado; todos os amantes são idealistas, enchendo o amado do que pode haver de mais perfeito, quando este, em realidade, é apenas algo ou alguém ordinário, comum; sendo assim, todo amante se apresenta risível, quixotesco, e todo amado, por correspondência, é um tanto "Dulcinéia". O que justifica a máxima popular e cínica, de que "o amor é cego". No entanto, se sairmos de nossa postura corriqueira de cinismo, e pedirmos a um amante contas, inquirindo-lhe sobre o porquê de seu amor, poderemos perceber que este não é de maneira alguma cego, nem delira: o que aquele que ama vê no objeto amado se encontra, efetivamente, lá. Para que possamos vê-lo, é preciso, muitas vezes, apenas um determinado exercício óptico: encontrar aquela dimensão, a face plena que o amante, espontaneamente, já surpreendeu. Uma vez realizado, podemos, ainda que não compartilhar do mesmo amor, ao menos compreender as razões do amante: o amado passa a se dar a nós, a partir desta experiência, como o amável. Será que devemos dizer que nos tornamos, igualmente, cegos, ou antes desenvolvemos, em conjunto e auxiliados pelo amante, um tipo particular de vidência?
Ao contrário do que nosso cotidiano, que é apenas outra palavra para dizer embotamento e miopia, "vê", todas as coisas têm, ainda que em germe, uma parcela de extraordinário. Tudo que há fala, ou aponta, para uma possível plenitude. Daí a associação indissolúvel, que vários autores, tanto do pensamento antigo quanto do medieval, acentuam, entre beleza e ser. Para aparecer, manifestar-se, adentrar na realidade, faz-se preciso diferir, singularizar-se. A singularidade disso que cada coisa é, sua maior propriedade, é o que chama para si, colhendo, nosso olhar desavisado. Este colher e chamar perfazem, por sua vez, a violência própria do extraordinário, que subitamente nos retira da indiferença apática, da uniformidade das coisas, pessoas e ações que compõem nosso mundo corriqueiro. Neste sentido, podemos compreender a afirmação de Ortega y Gasset: "Cada coisa é uma fada revestindo de miséria e vulgaridade seus tesouros interiores, uma virgem que há de ser amada para fazer-se fecunda"[5]. O amor é, pois, esta visão inesperada e súbita, que age retirando a "capa de miséria" que encobre o real comum; ele é uma adivinhação, enfática e confiante, da plenitude presente naquilo que, devido a esta pré-visão ou visão, precisamente, se ama.
Encontramos, através desta primeira descrição, uma ambigüidade fundamental pertencente ao fenômeno amoroso. Por um lado, ele é provocado pelo amado, emana dele, à medida que é qualidade presente naquilo que se dá, desde si mesmo, como amável; por outro, ele pertence a quem ama, já que o amor somente pode realizar-se encarnado, adotado por um eu circunstancial e contingente. Nem "propriedade do objeto", nem "afecção do sujeito"; ele é a relação que compreende, perpassando, os pólos que através dele se instauram. Deste modo, sua "causa" não pode ser localizada em algum destes pólos; não é possível circunscrevê-lo através de um pensamento unilateralizante. Tampouco podemos buscar apreendê-lo como a "soma" ou a "síntese" das dimensões "sujeito" e "objeto". Tal modo de proceder não foge do equívoco anterior, uma vez que comunga com aquele de uma visão unilateral, igualmente cindida do fenômeno, pois toda síntese se apresenta como a junção posterior disso que se compreende de antemão como separado, fendido. Para uma apreensão correta do amor, é preciso que o compreendamos desde uma unidade originária: ele é a junção que cria reunindo, em um só e mesmo movimento, o que correntemente denominamos como constituindo sua dupla polaridade: amante e amado.
Mas retornemos à descrição iniciada, a fim de que possamos ver com maior clareza o que, pelo amor, nos ocorre. Conforme afirmamos, a plenitude presente naquilo que é amado chama o amante para si, convidando-o, ou invocando-o a amá-la. Dando-se no modo do ser chamado, invocado, tomado e colhido, pertence intrinsecamente a quem ama a sensação de um "estar fora", correspondente ao estado "fora de si" que constantemente se lhe atribui. O que significa o "fora" pertencente ao amor? A visão de plenitude, constitutiva do amor, conduz à sensação de imposição, e por conseguinte de necessidade daquilo que assim se experimenta, de maneira que quem ama sente, forçosamente, que o amado se dá a ele em caráter imprescindível. Se o amado é imprescindível ao viver do amante, este se experimenta como sendo, propriamente, somente e apenas a partir do amado. Amar compreende assim um ser-com, um ser-junto-de, que não se confunde com a mera presença vizinha de uma coletividade indiferente, dos "outros" que costumeiramente aparecem no cotidiano. O estado de ser-junto próprio ao amor corresponde a um ser-em-função-de, ser-aberto-para, doado ao outro. O amante só sente poder dizer plenamente "eu", isto é, apenas se compreende pleno, realizado em sua individualidade, nesta abertura conjunta, neste modo de deixar-se dispor ao e pelo outro. O amor aporta este paradoxo: a individualidade do amante só se compreende plena quando se vê abolida, quando se perde para e no amado.
É devido a este modo de "estar fora" que o amor aparece, para o comum entendimento, como uma espécie de loucura, mania. Mas qual é a experiência corriqueira que pretende afirmar, escarnecendo, o "fora de si" do amante? Pergunta que conduz a outra: o que costumeiramente interpretamos como "si", ou ainda, como se dá a experiência habitual do "eu"? Nossa maneira mais familiar e imediata de estar no mundo age compreendendo, não apenas as coisas, mas igual e primeiramente o "eu", como realidades prontas, dotadas de substancialidade. Se o eu, os outros e as coisas se apresentam completas, independentes umas das outras, toda ligação será encarada como posterior e fortuita, possuindo caráter de não necessidade. Dizer "eu" já é compreender-se na estrutura do "algo", é colocar-se sob sua determinação; se esta compreensão se dá, este algo se apresenta forçosamente dotado de uma realidade própria, que antecede toda e qualquer relação que pode vir a travar. Assim, o eu se dá como garantia de permanência, como aquilo que sempre e necessariamente "fica", independente de qualquer modificação fortuita. Se o eu é experimentado como este reduto de permanência, suas relações serão encaradas como travando-se desde o eu, e para o eu; deste modo, o comportamento primeiro do eu para com os demais entes deverá ser de incorporação, apoderamento. As coisas se nos apresentam, nos servindo, interessando ou estorvando; os outros ou estão a nosso lado, ou nos são indiferentes, ou se nos ante e contrapõem. A experiência cotidiana só pode compreender aquilo que é trazido ao eu, e que se coloca, assim, diante e em função dele, dando-se como algo-para. Contrapondo-se a esta compreensão que toma o eu como referência primeira, a experiência de perda de si que o amor representa aparece, no mínimo, como ameaçadora, pois, uma vez que o eu se perde, o que mais pode restar? Ou, seria melhor perguntar: esta visão enxerga corretamente o que se "perde" no fenômeno do amor? Para além desta perda, ou precisamente devido a ela, será que algo, igualmente, se "ganha"?
Como é possível compreender o fenômeno do amor, que se apresenta como um plenificar-se, isto é, ser si mesmo em sentido máximo, exatamente pela perda de si? Dissemos que o amor consiste na abertura ao amado. Abrir-se à dimensão do outro pressupõe o movimento de ir ao encontro, que permanece junto de modo a deixar o amado manifestar-se plenamente como isto que ele, efetivamente, é. Uma vez que o amor nasce de um vislumbre de plenitude, seu movimento próprio consiste no acolhimento e desdobramento desta, na ação de consumar a plenificação do amado, permitindo que ela assim se leve a cabo. O amor constitui-se, desde esta dimensão, como acolhida e favorecimento, que propiciam ao amado ser de maneira plena e própria. Contudo, este "ser em sentido próprio" do outro, não podemos possuí-lo de antemão, como uma coisa que pode, ou não, ser-lhe conferida; este movimento somente pode realizar-se, se já se encontra criado um espaço de abertura, de escuta disso que, precisamente, não se possui: a singularidade que perfaz o amado. Isto equivale a dizer: pelo amor, o amante se experimenta na condição de aberto, doado, despossuído de saberes ou haveres prévios: o único bem que parece possuir não se dá como algo, mas antes como um movimento, um modo: a possibilidade de doar-se, pelo favorecimento acolhedor ao amado. Por quê, então, esta experiência de plenitude? Ao dispor-se aberto ao outro, pelo amor, o amante se torna aberto ao que não possui, ao que somente se dá a ele em conjunto com o agir, pensar e viver do amado; através do amor, o amante se experimenta doado ao outro, este manifesto como possibilidade de ser, como o que não se é nem se possui, como aquilo que é, de antemão, inapreensível e incalculável. Este estar fora de si, aberto para a pura possibilidade ofertada ao outro, trazido pelo amor, constitui a felicidade do amante, a dimensão de plenitude que lhe pertence, e que não se confunde com a modalidade plena antevista no amado. Trata-se de um outro modo de compreender e dizer "eu"; por esta experiência, "eu" é o movimento de postar-se aberto junto àquilo que, de si, se impõe, favorecendo o imposto, de maneira a deixá-lo desdobrar-se em seu próprio perfazer-se. Esta nova modalidade de "eu", ofertada pelo amor, é feita de aceitação e entrega, de docilidade àquilo que por si se manifesta, configurando-se assim o contrário preciso daquilo que denominamos, cotidianamente, "eu", que parte de uma apreensão substancialista, crispada e cristalizadora da realidade. A felicidade do amante vem, precisamente, da ausência de toda substancialidade, de estar sempre e a cada vez pronto, voltado para o puro possível; a plenitude consiste em não ser nada determinado, mas antes em manter retomado, renovado o movimento de doação ao amado, como aquilo que se faz, por si mesmo, manifesto. Ao contrário do que costumeiramente se pensa, a felicidade do amante não reside no fim do movimento de busca amorosa, como posse do objeto amado; sua maneira singular de ser pleno e feliz consiste, antes, na própria ação de amar, na atividade reiterada de consumar-se como abertura obediente. O amor é potência que re-descobre, assim, a dinâmica de ser na possibilidade; através de seu como peculiar, nos percebemos sendo prioritariamente doação, atividade de ofertar às coisas isso que de saída lhes pertence. Pelo amor se desentranha para o homem sua vida mais própria, sua modalidade primeira de estar junto às coisas e aos outros; através dele, retornamos ao sentido mais forte e imediato da vida.
Faz-se preciso, ainda, explicar melhor um ponto. Ao apresentar o amante como aquele que é no movimento de doação, sendo somente em sentido próprio para o amado e em função dele, não pretendemos apontar ou mesmo sugerir nenhuma espécie de "fusão"; nenhum estado de "indistinção" ou "amálgama" aí se encontra representado. Mais uma vez, ao contrário do modo como a compreensão cotidiana apresenta o amor, como um desejo de fusão, de união indistinta que, assim, pretende "colar" o amante ao amado, a experiência do amor em sua radicalidade faz transparecer o caráter de singularização, ou ainda, de maturidade, que reside no ato de amar. A ação de manter a abertura ao outro como abertura para o puro possível conduz a uma experiência radical de si, que se compreende sendo e tendo que ser pelo esforço de reiteração deste aberto. Mais que um movimento, o amor se dá antes como uma tarefa: afirmando-se em sua autenticidade, toda tarefa se cunha na ordem de uma necessidade. Ao sentir o amado como imprescindível, como aquilo que é, mais que tudo, caro, e o amor, devido a seu movimento de favorecimento e propiciação do amado, como seu bem mais precioso, o amante igualmente percebe que seu amor é aquilo de que apenas ele pode e deve cuidar, aquilo que somente ele pode realizar, consumar. A tarefa necessária que perfaz o amor molda, assim, o amante, imprimindo-lhe seu emblema, a solidão.
Ao encontro disso que tentamos exprimir, citamos este trecho, retirado das Cartas a um jovem poeta, de Rainer Maria Rilke:
"O amor, antes de tudo, não é o que se chama entregar-se, confundir-se, unir-se a outra pessoa. Que sentido teria, com efeito, a união com algo não esclarecido, inacabado e dependente? O amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo em si mesmo, tornar-se um mundo para si, por causa de um outro ser; é uma grande e ilimitada exigência que se lhe faz, uma escolha e um chamado para longe".
Conforme podemos compreender a partir do dizer do poeta, a solidão própria ao amor não corresponde ao solipsismo de um eu pré-constituído, ao qual se encontraria vedado apreender verdadeiramente aquilo que dele se encontra excluído, o mundo em seu caráter de "não eu"; tampouco significa o isolamento factual e circunstanciado, que sobreviria pela falta da companhia efetiva dos outros. Solidão diz, no sentido aqui descrito, singularizar-se, encontrar-se de antemão lançado na necessidade de uma atividade, de uma tarefa que nos pertence, ou melhor, à qual intrinsecamente pertencemos, como esta "escolha" e "chamado para longe" -- este "longe" entendido, simultaneamente, como o "dentro" mais radical de si próprio. Solidão aparece aqui como a marca de nossa necessidade vital, que se dá em caráter intransferível, intransponível, e que nos conclama reiteradamente a realizá-la. Se o amor se compreende habitualmente como o sentimento que, mais que qualquer outro, une as criaturas, é preciso esclarecer tal compreensão: a união aportada pelo amor realiza-se somente como ação de criar pontes, acessos através dos quais podem comunicar-se as distintas modalidades de solidão que ele permite aflorar: a solidão de ser em singularidade inexprimível, do amado; a solidão de ter que ser e cuidar de ser escuta, doação retomada ao pleno que se vê e, assim, se ama, pertencente ao amante.
O amor é, pois, o modo, o como que, levado às últimas conseqüências, desentranha ao homem sua situação vital. Por seu intermédio nos descobrimos sendo junto às coisas prioritariamente na captação de sua plenitude, na tarefa de manter o pleno em sua concreção; para tal, nos apreendemos simultaneamente abertos, voltados para isso que não possuímos e que nos possui, tendo que ser simplesmente desde e para a possibilidade de seu desenrolar-se; assim fazendo, se nos desvenda que, neste olhar de plenitude que tem de efetivar-se como abertura, reside nossa maneira de ser primeira e mais própria, que cunha assim nosso ter que ser, nossa singularidade e solidão. Se o amor é isto que, levado a suas últimas conseqüências, reconduz o homem ao sentido pleno e consumado da humanidade, podemos agora buscar considerá-lo desde suas implicações com nossa questão inicial, acerca da filosofia e de sua origem. Como é preciso compreender a filosofia, para que uma comparação com o que descrevemos como pertencente ao fenômeno do amor seja possível? Ao longo de sua história, a filosofia se encontra reiteradamente caracterizada, a um só tempo, como olhar e distância[6]. Como compreendê-lo? Conforme afirmamos no início deste escrito, tomamos a filosofia como um elemento, ou antes, como uma óptica, um determinado foco direcionado à realidade. Abarcar o real pelo olhar pressupõe compreender-se necessariamente fora, apartado disso que, assim, se mira. Isso de que, mediante esta ação centrífuga, nos tornamos espectadores, é precisamente a vida de que até então participávamos internamente, como seus atores ou agentes. "Ir para fora", retirar-se da intensa atividade da vida não equivale a nenhuma oposição ou contraposição à vida, não podendo ser considerado "a vida em férias"; a filosofia é ato que clama por ganhar distância, precisamente, para retornar à vida, dela apoderando-se em sua integralidade. O que isto que dizer? "Integralidade", aqui, não diz respeito ao somatório enumerativo de gestos e acontecimentos que compõem nosso viver; antes, ela pressupõe a reunião prévia pela qual cada vida se encontra de antemão colhida, recolhida; o todo das ações que compreendem a vida corresponde a seu sentido e orientação, seu norteamento e gênese. O olhar próprio à filosofia tem em mira o sentido originário da realidade em seu todo, seu desde onde que inclui forçosamente seu como e assim, igualmente, seu para onde. A filosofia é, desta forma, um olhar de origem, que incide sobre cada parcela da realidade de modo a buscar conduzi-la a seu fundamento integrador.
Seria possível, talvez, tentar uma equiparação entre amor e filosofia? O que, pela investigação do amor, nos dá a parecer, é que este pouco se distingue da atividade filosófica, ou, poderíamos talvez afirmar, amor e filosofia se tornam manifestos como duas modalidades pertencentes a um só e mesmo movimento. O philein constitutivo da philosophía abarca o movimento de uma visão diferenciada, única da realidade, por assumir a tarefa de conduzir cada coisa a seu sentido primeiro e mais pleno de ser. "Às coisas em si mesmas!"[7], brada amorosamente o olhar filosófico em sua ação de radical retomada do real e, assim, igualmente de si próprio. E, devido a esta obediência ao dar-se da realidade, os filósofos atestam, o homem encontra seu lugar diferenciado, ele realiza a ação que somente ele pode levar a cabo, e que assim o destaca, o singulariza maximamente. Pois realizar esta distância é consumar aquilo que somente o homem pode e deve efetivar, é deixar o real manifestar-se ao modo como, apenas por seu intermédio, ele se pode concretizar. Se a filosofia pode ser encarada como o meio, o modo pelo qual o real vem a ser em si próprio, ou como o lugar mais autêntico de a realidade ser, e se, por ela, o homem se libera na singularidade de seu poder ser mais próprio, devemos dizer que a filosofia se efetiva como uma manifestação, como uma faceta possível disso que denominamos amor. Talvez possamos, mesmo, pensá-la como o amor em seu sentido máximo, pois se desprende de toda factualidade, na recusa em amar um objeto setorializado, para abarcar em seu movimento de conjugação o todo da realidade. O filósofo é o amante indiscriminado do real, pois o que ama, o que espreita e para o que se abre, em última instância, é sua gênese, o movimento inapreensível de fazer-se, de criar-se de tudo o que é. Amando esta unidade última, torna-se capaz de acolher a mais abrangente multiplicidade, tendo como tarefa a recondução desta àquela, revigorando assim cada ente, na condução deste à sua fonte primordial.
[1] Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Os pensadores originários. Vozes, etc.
[2] Émile Benveniste. O vocabulário das instituições indo-européias. Vol. 1. Tradução: Denise Bottmann. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1995.
[3] É preciso frisar que usamos, aqui, os termos "existir", "existência", em seu sentido comum, isto é, como o que "está aí", o que se faz presente e manifesto. Somente nesta acepção torna-se possível esta contraposição, "existência das coisas" - "insistência da origem".
[4] Martin Heidegger. Les concepts fondamentaux de la métaphysique, pp. 97-110.
[5] José Ortega y Gasset. Meditações do Quixote. Tradução de Gilberto de Mello Kujawski. São Paulo: Livro Ibero-Americano Ltda, 1967, p. 36.
[6] Esta imagem da filosofia como olhar se consolida historicamente na filosofia a partir do pensamento de Platão. Citamos uma passagem, extraída de um texto contemporâneo, onde se realiza tal comparação:
"Filosofia, sobretudo a filosofia, é a tematização da distância enquanto distância. Ela é e quer ser o e no, digamos, páthos da distância. É distância que insistentemente se faz no fazer-se da filosofia. É distância que a possibilita, a move e a promove. Filosofar é cumprir o destino, o envio, de ser sob o modo radical da distância, da separação, do corte. Distância (corte, separação) é o apelo, em cujo movimento ou dinâmica sempre já se está, quando nos damos conta ou nos surpreendemos filosofando, fazendo filosofia. Filosofia é a dinâmica, o fazer-se, a poética do olhar."
Gilvan Fogel. "Da filosofia e do seu método", in: Da solidão perfeita. Escritos de filosofia. Petrópolis: Editora Vozes, 1999, pp. 38-39.
[7] Martin Heidegger. Ser e Tempo. Parte I. Parte I. 2ª edição. Tradução de Márcia de Sá Cavalcanti. Petrópolis: Editora Vozes, 1988, p. 57.