UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Faculdade de Letras Elenice Groetaers de Moraes Mestranda em Ciência da Literatura (Poética) RESSONÂNCIAS DA ARTE, ÉTICA E POÉTICA A arte para os gregos era designada de "technè". Este termo não era considerado uma técnica em particular como a pintura ou uma habilidade artesanal, mas correspondia ao saber mais amplo com relação à natureza ou as coisas em sua totalidade. Aristóteles designava a technè como um modo de saber, uma forma de discernimento, prudência que orienta, como exemplo, a "arte política". A reflexão filosófica considerou a obra de arte como portadora de um verdadeiro saber. Foi decifrada como a força de enfatizar o conteúdo de verdade. Em Kant situava-se na reflexão sobre o belo e o sublime. A reflexão hegeliana baseava no sentido de uma expressão cada vez mais clara, menos simbólica. Assim, direcionava para uma verdade mais profunda, isto é, mais interior ao sujeito humano. Após as reflexões de Heidegger e Merleau-Ponty deixa-se a pretensão de legislar sobre a arte, de decidir quanto à sua classificação. A arte não é mais tratada como objeto de especulação metafísica. A arte é vista como uma imagem da verdade de nossa existência ou de nossa relação com o mundo. A arte é uma criação e não o domínio de determinadas situações instrumentais que se exige do criador. Institui-se como um saber desocultante da verdade essencial que transcende tanto o nível da constatação quanto o da contestação. A linguagem interpretativa situa-se em nível capaz de revelar uma experiência ontológica que é a relação do homem com aquilo que o constitui homem. Podemos dizer que o foco de sentido vai além dos acontecimentos e das experiências das coisas. Interpretar é um eclodir, surgir e vir à luz naquilo que pertence a cada um. Na hermenêutica, uma maneira de tornar explícito o solo ontológico sobre o qual as ciências do espírito podem se construir. No sistema capitalista moderno, a velha questão do bem-viver, da compreensão do ser, fica eliminada em proveito do funcionamento de um sistema manipulado. Atitudes de caráter ideológico mascaram seu sentido ou mesmo sua realidade contribuem para surgirem conflitos em nossa sociedade. As instituições aparecem como um bloco indivisível de poder e de repressão. A sociedade vê apenas a exterioridade colorida: a veste, o costume, a anticultura, em suma, uma imagem alternadamente terna e agressiva. O desafio que se disfarça sob o conflito da sociedade repressiva e da liberdade selvagem, da ideologia do conflito a todo preço está contido na questão: como poderemos conjugar os progressos da liberdade do ser humano? As instituições tornaram-se estranhas e alienantes, pesadas e insuportáveis. A sociedade está fascinada pelo fantasma de uma liberdade sem instituições. A liberdade selvagem conduz necessariamente à fúria da destruição. A intolerância selvagem deve ser combatida em suas raízes, através de uma educação constante que tenha início na mais tenra infância com a prevalência das artes, da poesia, das virtudes, valores e suas interpretações, antes que se torne uma casca comportamental espessa e dura demais. Num processo amplo de mudança deslocam-se as estruturas e processos centrais das sociedades modernas. Logo, podemos mencionar: a crise de identidade. As identidades modernas estão descentradas e fragmentadas. Esta fragmentação das culturas de raça, etnia, gênero, classe, sexualidade e nacionalidade no passado forneciam sólidas bases como indivíduos na sociedade. Algumas vezes chamada de descentração ou deslocamento do sujeito, pois existe perda de um sentido de si mesmo, o que no passado era mais estável. O indivíduo está se tornando fragmentado. Antes vivia com uma identidade unificada e estável. À medida que os sistemas multiplicam de significação e representação culturais, surgem desconcertantes e múltiplas identidades. Nos tempos modernos, com o predomínio da tecnologia, a angústia reina, porque o sagrado, condição de toda presença intacta, inclusive a um deus, se retira, se apaga. A poesia pode ajudar-nos a agüentar esta insuportável indigência e a atravessar esta "noite do mundo", que é o dia tecnológico. A técnica dessacraliza, porque ela detesta o que não pode ser dominado e finalmente o nega. Esta impossibilidade de domínio, de uma manipulação que ela não consegue realizar, quer se trate de sofrimento, quer de alegria, do amor ou da morte, só o canto poético consegue expressar e talvez preservar. O sentido da obra vige no instituir mundo. O mundo é o sentido da physis manifestado no poema. No poema, a physis se revela em seu sentido. A eclosão de mundo na obra dos poetas é o real se manifestando como linguagem. É o ethos do real. Ethos significa morada, maneira de ser habitualmente, caráter. Considerado como disposição natural de uma pessoa segundo seu corpo e sua alma, os costumes de alguém conforme a sua natureza. Nossa inclinação natural busca o prazer e foge da dor segundo o modo como somos afetados pela sensação. O apetite-desejo é uma paixão, um páthos. A paixão é um movimento natural e violento. Natural, porque fomos feitos de uma matéria carente, desejante e passiva que busca vencer a carência e a passividade. Violento, porque a paixão suscita movimentos contrários ao bem de nossa natureza, ao fim que, como humanos, estamos destinados, isto é, a vida de ação. A verdade da obra poética é o aspecto manifesto do que se oculta. A interpretação se constitui como diálogo, especulação e ethos. Estas dimensões só são passíveis de concretização a partir da obra poética como manifestação de mundo. Interpretar é abrir-se para a escuta da verdade e sentido do Ser como ethos. Interpretar é um abrir para a vigência do real, pela qual se dá na interpretação, uma experiência poética. O termo ética deriva de ethos. Existe a importância ética para nós hoje, numa época de capitalismo avançado ou mesmo selvagem, onde a grande maioria se sustenta ou empobrece graças ao seu trabalho pessoal e à tecnologia. Questionamos: qual seria a relação entre ética e poesia? Esta questão intriga e faz pensar. A poesia exige que nos deparemos a um só tempo, com a ânsia de alcançar o divino. O desamparo e distanciamento do homem acentuam-se na modernidade e é uma das razões da demanda ética tornar-se cada vez mais intensa. Numa reflexão dando voz à arte, à poesia, à interpretação e à ética, entendemos como modos de celebração da vida. Celebração que nos oferece a possibilidade firme e a manifestação vigorosa de dar sentido à existência com libertação. A reflexão ético-social do nosso século trouxe uma observação na massificação atual: talvez a maioria não se comporte mais eticamente, pois não vive imoral, mas amoralmente. Os meios de comunicação de massa, as ideologias e os aparatos econômicos já não permitem mais a existência de sujeitos livres, de cidadãos conscientes e participantes, de consciências com capacidade julgadora. Falar da ética significa falar de liberdade. Falar de liberdade é falar de poesia. Falar de poesia é lembrar de Vinicius de Moraes. Deixou-nos o poema intitulado O Velho e a flor: Por céus e mares eu andei Vi um poeta e vi um rei Na esperança de saber o que é o amor Ninguém sabia me dizer E eu já queria até morrer Quando um velhinho com uma flor assim falou. O amor é o carinho É o espinho que não se vê em cada flor É a vida quando Chega sangrando Aberta em pétalas de amor. O amor tem a mesma extensão que a justiça. Ele é sua alma, seu impulso, sua motivação profunda. Assim é a justiça, a realização institucional e social do amor. Para enfrentar vertigens da ordem e da liberdade selvagem, torna-se necessário refazer todo um trabalho de pensamento. Quando uma objetividade total domina o sujeito, não há mais espaço para a liberdade e conseqüentemente nem para a ética. O homem sábio é livre sempre, mesmo que esteja acorrentado ou aprisionado. A ética se preocupa com as formas humanas de resolver as contradições entre: necessidade e possibilidade, tempo e eternidade, individual e social, econômico e moral, o corporal e psíquico, o natural e cultural e entre a inteligência e a vontade. O problema da massificação se refere a formas de relações sociais onde o indivíduo se perde e se desvaloriza. A vida de maneira mais ética é neste sentido mais livre e mais humana. Numa época onde há o consumismo desenfreado, a massificação, a crise de identidade, a sobrevalorização do trabalho industrializado, da rentabilidade e da capitalização, do pensamento calculador e da técnica, a crise que pode levar ao abismo. Entre as máscaras, as noites e os simulacros do horizonte pós-moderno, estamos cada vez mais fragmentados, cada vez mais distante da verdade, cada vez mais desprendidos de pensar. Como poderia a poesia apresentar alguma relevância? A poética constitui uma força vitalizadora e valorizadora que recupera o reduto do inexplicável, enquanto a tecnociência repressora se apodera dos indivíduos distanciando da apreciação e fundamentação da arte, da interpretação e da ética. É preciso parar e pensar nesta engrenagem cega de toda uma articulação do poder. Pensamos em falar da poesia como a morada do homem, enquanto ser existente no mundo e não propriamente do problema enfocado pela análise sócio- política-econômica. O poeta experencia a linguagem como mundo, como manifestação da diferença, da alteridade do mundo e da coisa. O corresponder em que o homem escuta propriamente o apelo da linguagem é a saga que fala no elemento da poesia. Quanto mais poético um poeta, mais livre, ou seja, mais aberto e preparado para acolher o inesperado e seu dizer. Com maior pureza ele entrega o que diz ao parecer daquele que o escuta com dedicação. Ditar poeticamente é medir. Na poesia acontece com propriedade o que todo medir é no fundo de sua essência. O homem precisa de uma medida que vá ao encontro de toda a dimensão. Finalmente, a poesia é a tomada de medida e, na verdade, em favor do habitar humano. A medida para a poesia é o divino. O poeta na palavra cantante faz apelo a todas as claridades que instauram a fisionomia do céu e todas as sonâncias de seus cursos e ares, trazendo à luz e ao som o que assim se faz apelo... Por isso a poesia é a capacidade fundamental do modo humano de habitar. O homem consegue ditar poeticamente segundo a medida pela qual a essência é apropriada àquilo que o homem é capaz, assim fazendo uso de sua essência, de sua morada, deixa ressonâncias na arte, na ética e na poética... BIBLIOGRAFIA ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos .Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. __________. Poética. Trad. Eudoro de Sousa. Lisboa, Casa da Moeda, 1986. CASTRO, Manuel Antônio de. A questão da hermenêutica. In:----- --. Tempos de Metamorfose. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994. __________. O acontecer poético. Rio de Janeiro: Antares, 1982. __________. Poética e poiesis: a questão da interpretação. Faculdade de Letras UFRJ, Série Conferências, v.5, Rio de Janeiro, 2000. __________. Revista de estudos de literatura. Belo Horizonte: v.5, p.253- 280, 1997. . DOLEZEL, Lubomir. A poética ocidental. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1990. ECO, Humberto. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 1976. __________. Interpretação e superinterpretação. 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