O que é o fait divers ?
Considerações a partir de Roland Barthes
Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.
Guimarães Rosa
Sob essa rubrica, os jornais agrupam com certa arte e publicam regularmente todo tipo de notícias que correm pelo mundo: pequenos escândalos, acidentes de carros, crimes horrendos, suicídios por amor, pedreiro caído do quinto andar, assaltos, chuvas de gafanhotos ou de sapos, naufrágios, incêndios, inundações, aventuras burlescas, seqüestros misteriosos, execuções fatais, casos de hidrofobia, de antropofagia, de sonambulismo, de letargia [...] ( Grand Dictionnaire Universel , citado por GROJNOWSKI, 1993, p.45)
Na definição proposta no século XIX por Pierre Larousse, dentre os faits divers , ainda constam certos “ fenômenos da natureza ” como o nascimento de “ bezerros de duas cabeças , [...] gêmeos grudados pelo ventre , criança com três olhos, anões extraordinários ”. Se hoje os avanços da tecno-ciência permitem prever malformações e evitar o nascimento de seres monstruosos, cresce o número e a gravidade de acidentes e catástrofes por toda parte. Hoje, já não se nasce monstro, torna-se monstro. Mais recente, o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa traz no verbete fait divers : “ IMP, RÁD, TV assuntos variados ; [...] notícias de pouca importância num jornal ”. O contraste entre o laconismo do nosso Houaiss e a profusão borgiana do Grand Larousse vem confirmar o que a própria denominação já sugere: do francês fait ‘fato' – do latim factum , particípio passado de facere ‘fazer' – e divers ‘diverso' – do latim diversus , ‘que se separa', ‘que diverte', o fait divers é da ordem do inclassificável. Relegado à lista desorganizada do que acontece por acaso, à lista do inominável para onde relega o horror à ambigüidade, o fato – que é “diverso” – provoca um incômodo taxonômico; monstruoso, incompreensível, só começa a existir
[…] là où le monde cesse d'être nommé, soumis à un catalogue connu (politique, économique, guerres, spectacles, sciences, etc. ( BARTHES, 1964, p. 188) [1]
Entre um suicídio, um naufrágio, o nascimento de uma criança deformada ou um caso de canibalismo, o que haveria em comum, além de terem ocorrido de fato e de marcarem o limite do humano? O que diferencia um fait divers de outros tipos de notícia? Assim como todo acidente, o fait divers interroga a visibilidade das coisas. Diante do incompreensível, os preconceitos e a tentação jornalística de tudo explicar – tudo e imediatamente – recuam, perdem terreno. Ao capturar o acontecimento em meio ao turbilhão ainda confuso de seu desenrolar, o fait divers deixa entrever o que se esconde. Mas o que se esconde? Por que, cada vez mais, essa exposição do/ao acidente? De onde vem o gosto pelo fait divers ? À luz da reflexão de Roland Barthes, e também da contribuição de Paul Virilio, tentarei trazer alguns elementos de resposta a tais questões.
Em primeiro, observamos uma diferença estrutural entre o fait divers e outros tipos de notícia. Um crime político – por exemplo, a falência fraudulenta de uma multinacional – é uma informação parcial, cuja explicação depende de um contexto anterior e exterior ao fato noticiado. O fait divers , ao contrário, é uma narrativa total, auto-suficiente, pois o acontecimento, surgido ex nihilo , não precisa do mundo para ser “consumido”, na expressão de Barthes. Estrutura fechada, pura imanência, o fait divers contém em si todo o seu saber. Daí, talvez, o gosto popular pelos “casos sem importância num jornal”, que opõem dois paradigmas, o da vida pública e o da esfera privada.
Pontuais, precisos, circunscritos dentro de limites observáveis, os fatos se apresentam, mas nem sempre se explicam. Quando o anônimo se torna digno de notação, algo parece suspeito. O efêmero deixa de ser banal, quando algo vem confundir a ordem aparente das coisas. O fait divers , crônica do efêmero, é uma “revanche pública da banalidade” [2]. Prodígios e crimes geram bons faits divers , à condição que contrariem o estereótipo, que a relação que liga os fatos entre si possa supreender: a fatalidade do acidente, uma coincidência milagrosa, o ato gratuito por trás do monstruoso. O encadeamento (um crime e seu móvel, um acidente e suas circunstâncias) é o que surpreende, no fait divers , mostrando que um fato é sempre já narratividade. O vivenciado se configura, tornando-se processo, traduzindo-se em temporalidade, ou seja, a vida busca inteligibilidade através da narrativa. O que leva Barthes a afirmar:
le fait divers ne commence que là où l'information se dédouble et comporte par là même la certitude d'un rapport [...] c'est la problématique de ce rapport qui va constituer le fait divers (BARTHES, 1964, p. 190). [3]
É preciso uma articulação entre dois termos, o simples não é notável. Um atropelamento, uma bala perdida, uma criança abandonada, são ocorrências que não justificam em si o fait divers ; mas se o atropelado era um mecânico (adorava carros), a bala perdida atinge uma turista israelense no carnaval de Olinda (viera se distrair, fugindo da violência em seu país...), o bebê é encontrado pela enfermeira da maternidade (a sorte lhe promete uma segunda mãe de ouro...). Suspenso entre o racional e o desconhecido, o explicável e o ininteligível, o fait divers introduz sempre a um espanto, pois toda causalidade é minada por forças que lhe escapam. O surpreendente beira o monstruoso. No caso quotidiano, toda causalidade é suspeita de acaso (BARTHES, 1964, p. 194). É interessante notar que o cúmulo pode ser bom ou ruim, e os faits divers tanto divertem, quanto alarmam. Estão no rumor da época, povoando a memória e o imaginário coletivos, convocando, às vezes, decisões e providências mais oficiais.
Desde sempre os casos que vão pelo mundo fascinaram toda gente. Na Idade Média, os faits divers eram cantados pelos trovadores que não raro os dotavam de uma coloração sobrenatural. Histórias de assassínios, adultérios, incestos, eram disseminadas através das complaintes e das lais , satisfazendo a curiosidade e essa compulsão gregária a repetir, que caracterizam o senso comum. O vocábulo francês nouvelle (o mesmo para, em português, “notícia” e “novela”) designava a aventura que alguém narra. É a partir do século XVII que aparecem nas gazetas, ao lado de avisos, informações de utilidade pública, as “ nouvelles à la main ”, anedotas que se destacavam da vida prática, pelo lado insólito e divertido, se aproximando dos atuais faits divers (GROJNOVSKI, 1991, p.96), em função de seu forte poder evocador.
Como a novela e o conto, o fait divers tem as qualidades das formas breves da literatura: fragmentação, rapidez, intensidade, concisão. A própria leitura de sua crônica mostra que há todo um modo de dizer, para além do sentido referencial, que captura a atenção do leitor. Este é seduzido pelo princípio de uma desorganização generalizada, como se algo viesse dizer que a vida é assim mesmo, irrisória, vertiginosa, confusa. Os outros tipos de notícia se aproximam do romance, expressão da totalidade e da longa duração, que supõe uma serialidade que o fait divers desconhece. [4]Na seriedade do mundo estabelecido dos negócios (política, economia, esportes, cultura ...), tudo que acontece vem confirmar um grande projeto de visão de mundo. Assim, o fait divers está no sentido oposto do que Barthes escreve, em Mythologies , quando compara o torneio anual de ciclismo na França (o famoso e brega Tour de France), a um “fato nacional” que vem compor uma epopéia; o fait divers é o oposto da epopéia,
dans la mesure où l'épopée exprime ce moment fragile de l'Histoire où l'homme, même maladroit, dupé, à travers des fables impures, prévoit tout de même à sa façon une adéquation parfaite entre lui, la communauté et l'univers (BARTHES, 1957, p.119) [5].
O fait divers parece nos condenar a uma espécie de inadequação essencial. As características narrativas acima expostas talvez expliquem em parte a facilidade com que, nas sociedades atuais, superpõem o mundo da política e o do espetáculo. O tom jocoso que certos jornalistas adotam (em particular na televisão francesa) para comentar a vida política confirma a idéia que Barthes já tinha dos discursos oficiais a entoar uma eterna “aula ideológica global”, para usar a expressão de outro semiólogo, Umberto Eco. Longe dos grandes discursos à nação, concentradas, impactantes, heterogêneas, as notícias breves são como o refugo do quotidiano. Sob a aparência de um enunciado funcional, encenam uma estética da concisão. O registro sistemático do insignificante pode adquirir valor alegórico. O monstruoso ronda por trás do fait divers .
No dia 4 de dezembro de 2003, na página “Mundo” do jornal O Globo , o desdobramento de um crime cometido em 1999 chama atenção: Julgamento de canibal choca alemães. Não só a Alemanha, mas o mundo inteiro ficou chocado com um dos assassinatos mais bizarros dos últimos tempos: um sádico e um masoquista encontram-se graças à internet e promovem, em Rotemburgo, um banquete orgíaco que gravam em vídeo de quatro horas. Um técnico de informática de 42 anos, procura alguém que consinta em ser comido, e após ter relações com um engenheiro berlinense de 43 anos, emascula-o em vida, comendo partes do corpo da vítima, antes e depois de sua morte. A mediatização do julgamento dá direito a detalhes e ao sorriso aterrorizante do criminoso, que se disse fascinado por contos de fadas, sobretudo “João e Maria”. A indignação diante da pena de oito anos e meio (a sentença menciona crime “ não premeditado ”, técnico “ matou sem ser assassino ” e este acaba sendo julgado por “ distúrbios sexuais ”, já que a lei alemã não prevê casos de canibalismo) só não é maior do que a perplexidade diante do que as novas tecnologias causam em matéria de perversão – ou diversão? – sexual. O canibal, aliás, não irá para um hospital psiquiátrico, tendo sido declarado, ao cabo de duas perícias feitas a pedido do tribunal, “são de corpo e de espírito”, “plenamente responsável” pelos seus atos. Se o burguês do século XIX precisava do fetiche e da imagem licenciosa para satisfazer as fantasias de uma sexualidade culpada, a internet, a transmissão instantânea das imagens e das sensações, a tele-presença dos sujeitos, nos dias de hoje, prenunciam uma patologização do sexo sob formas impensáveis, da pedofilia ao canibalismo, e remetem ao coração dos grandes problemas do nosso tempo. Tristes épocas.
Dois outros casos marcaram o noticiário brasileiro em 2003: o primeiro ainda traz a internet como um dos principais actantes. A história é de um adolescente que, aos quinze anos, graças à sua semelhança com o pai biológico que nunca conhecera (mas que foi reconhecido num site de crianças desaparecidas), descobre que não é filho daquela que ele tinha por mãe. Esta é acusada e julgada por uma série de golpes, entre os quais o de ter seqüestrado seus dois filhos adotivos ainda na maternidade. O passado dessa mãe indigna é amplamente investigado pela imprensa que se deleita com a saga de Pedrinho, dilacerado entre o ser e o parecer, entre o Bem e o Mal, entre a falsa e a verdadeira mãe. Isso mostra como o fait divers , presa fácil de todos os estereótipos, reatualiza o que Barthes chamaria o “romance” da Família, caindo ideologicamente como uma luva na habitual cruzada que a mídia lança, em defesa de valores como verdade, destino, esperança, fé.... Nesse caso que ocorreu em Goiânia, o luto aberto de uma família tocou a nação, e algo veio mostrar, nesse fait divers que se estendeu por vários meses, que a internet nem sempre é a vilã da história.
O segundo caso – o assassinato de um casal de psiquiatras numa mansão paulista – surpreende, mais uma vez, pelo ato gratuito por trás do gesto monstruoso. A frieza com a qual a jovem de 18 anos reconhece e narra os fatos surpreende os psicólogos: depois de anotar detalhadamente em seu diário o plano do duplo parricídio, abre a porta da mansão para que seu namorado, com a ajuda de um irmão, mate a pauladas sua mãe e seu pai. Este, psiquiatra alemão, radicado em São Paulo , aparece em vídeo filmado semanas antes do crime, durante um evento profissional, declarando seu desejo de retornar à Alemanha para fugir da violência do Brasil. Durante os interrogatórios, a adolescente não chora, não demonstra arrependimento algum e tranqüilamente relata o ocorrido, como se tratasse de outra pessoa e de uma ficção. O tédio do quotidiano, a vontade de aparecer na televisão, e a visão romântica do bandido como herói transgressor conjugam-se para tentar explicar o que, mais uma vez, parece um ato gratuito cuja monstruosidade ultrapassa nossa capacidade de compreensão. Talvez aqui estejamos diante de mais um caso que retrata essa “ volonté de faire fait divers ” (MAFFESOLI, 1988 p.94), ou seja de aparecer na mídia para ter a sensação de existir. Essa vontade de aparecer na mídia, que a psicanálise poderia explicar como demanda de reconhecimento, e que sociologicamente também é interessante, no contexto brasileiro, talvez estejam na origem das ligações amorosas entre jovens da classe média alta (em geral mulheres) e representantes da figura do fora da lei (presos políticos, traficantes, marginais...).
É interessante notar o efeito de exemplaridade que os faits divers adquirem, tornando-se uma das múltiplas formas de “agregação tribal”, para usar outra expressão do sociólogo Michel Maffesoli. Do acontecido ao narrado, do narrado ao comentado, o caso vai se espalhando e vira assunto de discussões acirradas, através das quais se opina, se toma partido, se julga.
Comme le conte, le carnaval, le jeu enfantin, le commentaire du fait divers permet de parler, sans en parler, de la mort, de la violence, du sexe, des lois et de leur transgression. (MAFFESOLI, 1988, p.91) [6]
E de fato, o fait divers é inseparável de seu comentário. A procissão de depoimentos emocionados, confissões, interrogatórios, conversas telefônicas, faz prevalecer o falatório sobre a realidade, o rumor sobre o fato. Tudo se passa como se a realidade fosse demasiadamente pobre, banal, repetitiva e não pudesse prescindir da tagarelice habitual. A mídia não suporta o silêncio do fait divers . Ora, a realidade é justamente o que, sendo imediato , se furta à mediação , ao intermediário . O que acontece, aqui e de imediato, não autoriza nem prazo nem distanciamento. Não há mais tempo , é o que parece dizer a realidade, nem mesmo o tempo desse recuo que separa a percepção da urgência do que é preciso fazer para evitar, em situação crítica, o que se apresenta. Diante do inelutável, o pensamento é pris de court , diz-se em francês, e inelutável, não é o que é necessário e deve acontecer, mas aquilo de que não se pode escapar naquele exato momento. A imprensa e o senso comum, em geral pouco filosóficos, apelam para a “fatalidade”, como se isso – o que acontece sem aviso prévio – estivesse escrito de antemão em algum lugar. É difícil aceitar o acaso e o ateísmo que implica. A impotência humana diante das incertezas e da desordem talvez explique, por denegação, a tagarelice da mídia em torno do que acontece por acidente. Denega-se, assim também, o que poderíamos chamar de a unilateralidade do real, que advém sem pedir licença, à distância do que vem lhe dar sentido [7].
A crônica dos faits divers nos transporta diretamente para a questão do acidente e da catástrofe. As grandes escolhas técnicas e industriais das últimas décadas têm gerado conseqüências que parecem fugir ao controle dos engenheiros, dirigentes, empresários... responsáveis, enfim, por essas escolhas. Os sistemas industriais – inventados, construídos e supostamente vigiados pelo homem – produzem acidentes cada vez mais freqüentes, e aparentemente incontroláveis. São acidentes artificiais, na medida em que decorrem de algum excesso de concentração ou de velocidade da matéria engajada no artefato. Mas a razão soberana e o domínio sobre a natureza não admitem falhas. O acidente, como a morte, é absurdo. Para compensar a ferida narcísica, diante do surgimento de ocorrências inesperadas e catastróficas, diante da impotência frente AO QUE NOS EXPÕE AO ACIDENTE, observa-se uma nova tendência, muito bem descrita por Paul Virilio, que consiste em EXPOR O ACIDENTE. Do mais banal ao mais trágico, sem evitar, é claro, o acidente feliz (loteria, amor à primeira vista, salvamentos...), inaugura-se uma nova museologia, ou museografia. (VIRILIO, 2003, p.4-26). O menor incidente, a menor irregularidade, a menor catástrofe, tremor de terra, desabamento, mau tempo, tudo é exposto e nivelado, apagam-se as diferenças. A banalização dos acidentes industriais (terrestres, náuticos, aéreos) prepara ao hábito dos acidentes pós-industriais, por exemplo, nos campos da informática ou da genética. A catástrofe se torna banal, por que o Acidente, afinal de contas, não é senão um acidente, que graças aos recursos de tele-visão e de percepção instantânea das imagens, será conservado e repetido para além do instante de seu acontecimento. A pergunta feita por minha neta de dois anos, diante da televisão ligada o dia todo, em 11 de setembro de 2001 – “ Por que só tem essa fumacinha?” – ficou sem resposta, tamanha a perplexidade dos adultos diante do desequilíbrio inaugurado em Nova York pelos kamikazes do World Trade Center. A repetição da imagem daquela “fumacinha” nos prevenia quanto ao caráter suicida de muitas ações contemporâneas, de Auschwitz, até o conceito militar de “destruição mútua assegurada” (M.A.D.), que as ideologias totalitárias, laicas ou religiosas, são capazes de produzir. Essa produção em massa da catástrofe, e o lugar cada vez maior que a cobertura mediática reserva para a visualização da violência, longe de nos anestesiar, deveriam provocar reflexão. Ao contrário, melancolicamente, nossos olhos se acostumam. Perde-se a noção da gravidade do acidente que pode até, através de imagens inusitamente “fortes”, alimentar uma relação de prazer perverso no espectador. Ora, a acumulação de sistemas, cada um sendo controlável mas cujo conjunto é capaz de gerar um “risco tecnológico maior”, paralelamente à capitalização do horror, nesse novo mercado das imagens, podem conduzir não somente à inconsciência mas à loucura. Depois da catástrofe, um especialista vem sempre afirmar seu alívio, diante do fato de que poderia ter sido muito pior. Há uma cegueira voluntária das conseqüências fatais de nossas ações e de nossas invenções tecno-científicas. O caráter insensato de nossos atos cessaria de nos preocupar, e o gosto pelo excesso e pelo monstruoso estaria passando a nos agradar, a nos seduzir. Aceita-se o inaceitável e a inversão é radical: da filosofia passamos a viver uma espécie de filofolia . (VIRILIO, 2003, p.7).
Não surpreenderia que, em breve, programas de televisão passassem a simular ações de destruição em massa (como nesses jogos eletrônicos em que a “consciência” tem o campo de visão de um motorista cujo alvo é atropelar os transeuntes, e os pontos ganhos são marcados em vermelho jorrado na tela) para que os espectadores, naquela ilusão narcótica de democracia interativa, escolhessem um desfecho para a história. Também é de se notar a avidez devoradora dessa escopofilia em voga com os reality shows . A super-exposição de atividades íntimas, o vazio espontâneo dos “atores”, ou seja, das pessoas que se relacionam diante das câmaras, vêm satisfazer o vazio do espectador televoyeur que sonha com a fama tanto mais quanto sua vida é a própria imagem do vazio. Não obstante o lado patético de tais programas, mal se alcança nesse leilão de valores participativos, uma espécie de incômodo ético que possa servir de ruído de fundo e fortalecer algum escrúpulo. Na etimologia, scrupulus quer dizer ‘pequena pedra': que algo possa vir, na aparência lisa da superfície, perturbar essa triste Ordem, turvar a água, para que, confundindo as coisas, possa ajudar a ver melhor.
Observamos uma coisa em função de uma de suas qualidades – a que nos interessa essencialmente – mas a coisa tem outras qualidades através das quais ela faz parte do mundo . O jarro é o utensílio onde arrumo meu buquê de flores, mas é também um vidro exposto aos movimentos e aos choques do mundo. [8] O acidente deveria obrigar o observador a mudar seu ponto de vista, fazer ver a própria precariedade que envolve a visibilidade das coisas. Aquele que vê julga-se invisível. Eu que vejo só posso ver de um único ponto, mas o que eu vejo, também olha para mim e me transforma em coisa visível. Sou visto por toda parte, eu que só vejo de um único lugar. Mas o que eu vejo se divide entre um patente e um latente. Talvez o próprio de nossa consciência, anestesiada pelo hábito, seja o de diminuir o escopo de compreensão das coisas. Enquanto sociólogos buscam, em regras e normas explícitas, o que determina a conformidade das práticas e sua constância através do tempo, teóricos como Michel de Certeau [9] questionam esse “fetiche do habitus ”: é por que os sujeitos não sabem, propriamente falando, o que fazem, que o que fazem tem mais sentido do que eles acreditam saber. Por essa e outras razões, como as que a psicanálise aporta em torno da idéia de pulsão escópica [10], é que os faits divers provocam fascínio, fazendo ver o que em geral se esconde. Para citar as belas palavras do filósofo:
ce qui est caché, c'est d'abord le sang, le corps, le linge, l'intérieur des maisons et des vies, la toile sous la peinture qui s'écaille, les matériaux sous ce qui avait forme, la contingence et finalement la mort (MERLEAU-PONTY,1960, p. 388) [11]
Ver é, antes de tudo, ver também o que não se vê. O olhar que Barthes nos ajuda a lançar sobre o mundo é um olhar operacional, que desconfia do caráter natural e mundano de que tende a se revestir todo olhar. Ao descrever e interrogar sua experiência a partir daquilo que vê, esse olhar se torna fenomenológico,
[...] p uisque le sens qu'il donne à la concomitance des faits échappe à l'artifice culturel en demeurant muet. (BARTHES, 1964, p.197) [12]
Relatar essa mudez dos fatos é a função máxima dos faits divers.
Ana Maria de Alencar
Professora de Teoria Literária da UFRJ e tradutora
Bibliografia
BARTHES, Roland. « Structure du fait divers », in Essais Critiques . Paris : Seuil, 1964.
____________ Mythologies . Paris : Seuil, 1957.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Signes. Paris : PUF, 1960.
VIRILIO, Paul, Ce qui arrive . Paris : Actes Sud, Fondation Cartier, INA, AFP, 2003.
VALÉRY, Paul. Cahiers, volume II, Bibliothèque de la Pléiade. Paris : Gallimard, 1974.
GROJNOVSKI, Daniel. Lire la nouvelle. Paris : Dunod, 1993.
GIDE, André. Ne Jugez pas . Paris : Gallimard, 1957.
DE CERTEAU, Michel. L'Invention du quotidien 1a. arts de faire. Paris : Gallimard, 1990
ROSSET, Clément. Le réel et son double. Paris : Gallimard, 1976.
1. “onde o mundo deixa de ser nomeado, submetido a um catálogo conhecido (política, economia, guerras, espetáculos, ciências etc.)”.
2. Cf « La différence ordinaire » de Patrick Tacussel, in Revue Autrement nº 98Faits-divers, annales des passions excessives . Dir. Jean-Claude Baillon. Paris, 1988.
3. “o fait divers só começa onde a informação se desdobra e comporta por isso mesmo a certeza de uma relação. [...] é a problemática dessa relação que vai constituir o fait divers ”.
4. Certos faits divers se desenvolvem por vários dias ou até meses; isso não rompe sua imanência constitutiva, pois implicam sempre uma memória curta (BARTHES, 1964, p.189).
5. “na medida em que a epopéia expressa esse momento frágil da História onde o homem, mesmo desajeitado, logrado, através das fábulas impuras, prevê no entanto a seu modo uma adequação perfeita entre ele, a comunidade e o universo.”
6. “Como o conto, o carnaval, o jogo de criança, o comentário do fait divers permite falar, sem propriamente falar, da morte, da violência, do sexo, das leis e sua transgressão”.
7. O pensamento de Clément Rosset está particularmente presente nesta reflexão.
8. Cf “ O acidente é o aparecimento da qualidade de uma coisa que estava mascarada por uma outra de suas qualidades. Ora, só se previa – não se esperava senão – a série e o desenvolvimento da existência da coisa segundo essa qualidade mais observada – e cuja visibilidade dominadora provinha do observador” (VALÉRY, p. 229)
9. É i nteressante a oposição que existe entre Bourdieu e De Certeau, cf capítulo IV de L'Invention du quotidien .
10. Debruçando-se sobre as formas da sexualidade humana, é que Freud é levado a teorizar sobre a relação existente entre impressão visual e prazer. Observa que a dissimulação progressiva do corpo que acompanha o processo civilizatório vem justamente fortalecer a curiosidade sexual, que teria como origem a vontade de ver as partes veladas do corpo. Cf, Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade e Mal estar na Civilização.
11. “Aquilo que está escondido é inicialmente o sangue, a roupa, o interior das casas e das vidas, a tela sob a pintura que estala, os materiais sob o que possuía forma, a contingência e finalmente a morte.”
12. “...já que o sentido que ele dá à concomitância dos fatos escapa ao artifício cultural, permanecendo mudo”.