Traduzindo romance com a bela infiel
Ana Maria de Alencar
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Começo também saudando os organizadores desse evento, agradecendo-lhes pela oportunidade do intercâmbio, a satisfação em poder ouvir colegas, compartilhar, refletir, nesse emaranhado de impressões, a partir de interrogações e convicções nascidas de um ofício comum, o de traduzir literatura. São raros, portanto preciosos, encontros assim que ajudam a compreender a importância do que fazemos, possuídos que somos (e esquecidos da longa noite) pelo bem dizer, pela fala (e atormentados pelo ruído) de tantos outros. A alegria reside não só em estar presente , mas também em colocar finalmente rostos por trás (ou por cima) de nomes que há tanto já conhecíamos – et pour cause, conhecimento prévio, conhecimento de causa - lidos ao acaso ao lado do de tantos outros autores. Nesse turbilhão, pois, de intervenções, como em todo colóquio, tencionado pelo horário, minha contribuição será rápida e modesta.
Não sou especialista em teoria da tradução, pouco teria a dizer sobre as polêmicas que opõem, de um lado, os partidários da língua e do signo a elaborar complexas gramáticas contrastivas, e do outro, os defensores de uma poética da tradução ou de uma crítica do ritmo [1]. Não saberia o que dizer em matéria de teoria da tradução, atividade que vejo tomada pelo sempre já da experiência. Traduzir é uma prática, e as inquietações teóricas decorrem de casos particulares precisos. Aliás, levei algum tempo a me desfazer da impressão de que a prática da tradução era uma atividade menor ou meramente financeira em minha vida. Afinal já havia traduzido alguns autores difíceis, após tanto esforço, por que, estrategicamente, alguma falsa modéstia? Essa adesão tardia à figura do tradutor, esse Nachträglich de nossa profissão - o efeito ou a consciência de ser tradutor vindo após o ato – poderia ecoar uma afirmação ouvida aqui, ontem e hoje, por inúmeros colegas, a de que se tornara "tradutor por acaso". Como se esse tradutor – que, diga-se, nem sempre é um escritor - só se autorizasse após longos anos de experiência, ou como se não tivesse escolhido ser tradutor. Esse "por acaso" talvez seja equivalente ao que, no contexto de uma teoria lacaniana do significante e no trabalho analítico, chamamos de "tempo para compreender". E de fato, ninguém se torna tradutor literário sem compreender ou se interrogar seriamente sobre o que seja escrever e ler.
Uma das formulações mais radicais de quantas já se fizeram a respeito do ato de traduzir encontra-se em Paul Valéry, em suas "Variations sur les Bucoliques" [2], espécie de testamento poético, escrito em 1944, ano anterior a sua morte. Desse divertido prefácio à tradução em versos (sugerida por um amigo que queria que "o latim e o francês correspondessem linha por linha"), tradução que Valéry acabou aceitando fazer da obra de Virgílio que, aliás, o entediava, tiraremos excertos à guisa de matéria para nossa reflexão.
Diz Valéry:
" Écrire quoi que ce soit , aussitôt que l'acte d'écrire exige de la réflexion, et n'est pas l'inscription machinale et sans arrêts d'une parole intérieure toute spontanée, est un travail de traduction exactement comparable à celui qui opère la transmutation d'un texte d'une langue dans une autre" (p. 211 - grifado por Valéry)
E de fato, escrever opõe-se à fala da vida cotidiana, em sua continuidade, nesse automatismo com o qual o discurso mundano faz crer no valor intermediário da língua. Escrever, analisar, pensar, isso implica em traduzir, ou seja, dizer uma coisa em função do que ela não é. Toda análise é tradução, desenvolvimento em símbolos, representação de pontos de vista sucessivos que tentam saturar o contato entre o objeto novo (que se tenta estudar, analisar) e outros objetos conhecidos, ou que se pretendia conhecer. No desejo eternamente insatisfeito de querer abraçar o objeto, a análise multiplica os pontos de vista. Como a tradução, ela é sempre imperfeita, incompleta, não tem fim.
Então, o texto nos faz ver o que não existe? Expulsa o que nos faz ver? Longe da compreensão de que a linguagem desrealiza o mundo, o senso comum fixa e unifica o real, impressão necessária, sem dúvida, para que funcionemos nos atos mais cotidianos. Mas a literatura não se cansa de mostrar que a linguagem é marca e morte do mundo.
A linguagem introduz a descontinuidade radical, ela, sim, verdadeira queda adâmica: um castigo, ao que parece.
Então, forçados, desde sempre (e sem saber) a traduzir?
Assim, poderíamos ter substituído a pergunta "o que é traduzir?" pela pergunta "o que não é traduzir?", condenados que fomos, que somos, desde sempre, a traduzir. São muitas as perguntas. Deixemos algumas respostas, a respeito do que é traduzir, com Michel Serres:
Nous ne connaissons les choses que par les systèmes de transformation des ensembles qui les comprennent. Au minimum, ces systèmes sont quatre. La déduction, dans l'aire logico-mathématique. L'induction, dans le champ expérimental. La production, dans les domaines de pratique. La traduction dans l'espace des textes. Il n'est pas complètement obscur qu'ils répètent le même mot. Qu'il n'y est de philosophie que de la Duction - au préfixe variable et nécessaire près - on peut passer sa vie à éclairer cet état de choses. Au feu de la réjouissance, aux lumières de la séduction. De fait nos aïeux avaient un meilleur mot : déduit. Et le cycle entier recommence. [3]
Aqui gostaria de saudar e agradecer a presença e o trabalho de Barbara Cassin, por perceber a preciosidade que é um Dicionário dos Intraduzíveis para o deleite e o enriquecimento de qualquer tradutor.
Mas voltemos ao texto de Valéry, de sua leitura deduzindo poéticas entradas em nossa questão principal, esse título que não escolhi o foca, a da oposição entre prosa e poesia, eterna questão que põe em cena o par forma e o conteúdo:
Un homme qui fait des vers, suspendu entre son beau idéal et son rien, est dans cet état d'attente active et interrogative qui le rend uniquement et extrêmement sensible aux formes et aux mots que l'idée de son désir, reprise comme retracée indéfiniment, demande à inconnu , aux ressources latentes de son organisation de parleur, - cependant que je ne sais quelle force chantante exige de lui ce que la pensée toute nue ne peut obtenir que par la foule de combinaisons successivement essayées. Le poète choisit parmi celle-ci, non point celle qui exprimerait le plus fidèlement sa "pensée" (c'est l'affaire de la prose) et qui lui répèterait donc ce qu'il sait déjà; mais bien celle qu'une pensée à soi seule ne peut produire et qui lui paraît à la fois étrange et étrangère, précieuse, et solution unique d'un problème qui ne s'énonce qu'une fois résolu. (p. 212 - grifado por Valéry).
Assim, o escritor negocia com o "fundo latente" de seus recursos de falante, e chega a uma forma que produz quase a despeito de si. E como o leitor de poesia terá que ouvir a "força cantante" nesse autor, senão apenas como traduzir? Já o tradutor de prosa, tranqüilizado pelo ronronar do que se pode dizer de várias maneiras, repetirá o que já sabe. E o "estado de espera ativa e interrogativa" que acomete o poeta não é diferente do que nos faz continuar traduzindo.
Com as imagens fascinantes que lhe são próprias, Valéry parece anunciar o que Jakobson entenderia por "função poética" ou "paranomásia" generalizada: o estabelecimento de relações combinatórias em poesia a partir do princípio de similaridade e contraste dos constituintes formais do código verbal; é essa paranomásia ou "força cantante" que faz com que a semelhança fonológica seja sentida como um parentesco semântico, e que o texto apareça como uma partitura de paralelismos e contrastes. O poeta ("espécie singular de tradutor" como afirma Valéry no mesmo ensaio) encontra as formas e as palavras suscitadas afinal pela "idéia de seu desejo" que se deixa retracer numa espécie de diagrama cinético, um ícone de relações, poderíamos dizer, semioticamente.
E eis que estamos em plena problemática do estilo. Tradicionalmente associado à noção de personalidade, entendido como ornamental, como um esmalte, sem muita importância para o conteúdo ou a essência da obra, o estilo aparece freqüentemente como supérfluo, e por isso mesmo, o que pode ser mudado. Com o advento da lingüística, tal idéia passa a remeter à problemática da enunciação. As condições e as características de um ato de enunciação supõem uma escolha (consciente ou não) que determina o estilo de um sujeito. Benveniste foi um porto seguro na compreensão do que está em jogo aqui. Na escrita criativa, há estilo na medida em que se nota regularidade, série, conotação. O caráter repetitivo da forma imprime o estilo e faz do estilo o que estaria na base da construção e da unidade de uma obra, portanto de um sujeito.
Quanto à academia e à tradução em prosa do poema, Valéry afirma:
Que d'ouvrages de poésie réduits en prose, c'est à dire à leur substance significative, n'existent littéralement plus! Ce sont des préparations anatomiques, des oiseaux morts. Que sais-je ! Parfois l'absurde à l'état libre, pullule sur ces cadavres déplorables, que l'Enseignement multiplie, et dont il prétend nourrir ce qu'on nomme les "Études". Il met en prose comme on met en bière (p. 210)
Se o modo de ensinar literatura na escola, curiosamente, mata o texto literário, a tradução também é sempre um perigo virtual, e o tradutor, um terrorista cujo "atentado" pode a qualquer momento se fazer ouvir. "Nada mais deprimente", declara Barthes [4], "do que imaginar o Texto como um objeto intelectual (de reflexão, de análise, de comparação, de reflexo, etc.)":
" C'est que les plus beaux vers du monde sont insignifiants ou insensés, une fois rompu leur mouvement harmonique et altérée leur substance sonore, qui se développe dans leur temps propre de propagation mesurée, et qu'ils sont substitués par une expression sans nécessité musicale intrinsèque et sans résonance. J'irai même jusqu'à dire que plus une oeuvre d'apparence poétique survit à sa mise en prose et garde une valeur certaine après cet attentat, moins elle est d'un poète. (p. 210)
E, de fato, o decalque semantico-linguístico do texto é sempre uma má tradução. Longe da miopia literal, ler para um tradutor é se instalar na inteligência do funcionamento de uma rede de traços que se reiteram, no jogo da diferença, como o quis Derrida. Não à toa esse autor, cujo pensamento é indissociável de seu estilo, afirmava que se sentia escrevendo de fato quando se sabia intraduzível; mais radicalmente, dissera que nenhum texto é traduzível. Quando perguntado pela enésima vez sobre o que seria a "desconstrução": " la Déconstruction, c'est plus d'une langue ", como se pode ler em seu belo Monolinguisme de l'autre . Dizer que nenhum texto é traduzível é afirmar que em matéria de poesia, a reversibilidade é sempre ilusória. Enquanto a informação semântica ou referencial admite várias codificações, a informação estética é inseparável de sua realização. O fascínio da obra de arte residiria nessa fragilidade de que nos fala Valéry.
Terminaremos com mais um paradoxo a respeito da tradução literária. A atividade tradutória é uma escrita que busca se fazer esquecer enquanto escrita. Ouvimos freqüentemente dizer que uma tradução é boa quando não parece ser uma tradução, ou seja, quando o leitor não adivinha a formulação do original por trás do texto traduzido. E, de fato, uma boa tradução talvez seja silenciosa, e o tradutor, de fato, um sujeito invisível.
A lista dos poetas tradutores é longa: Goethe, Hölderlin, Mallarmé, Baudelaire, Haroldo e Augusto de Campos, Aragon, Pound, Roubaud, Deguy, entre tantos outros. Ótimo. Mas como chegar, na outra língua, a um resultado poético, quando não se é poeta? O tradutor terá que tomar uma dupla decisão: compreender o que uma obra é, ou seja, decidir o que ela quer (fazer) por um lado, e do outro, decidir como fazê-lo na língua dita de chegada. Quando traduzimos um texto A, de fato, escrevemos um segundo texto, B, que negocia com o primeiro a medida possível de múltiplos e complexos efeitos de som e de sentido. Confrontada não a uma impossibilidade expressiva, mas à heterogeneidade linguageira, a tradução requer a precisão e o rigor de um cálculo dos signos e de sua combinação na página. O exercício da tradução faz tocar na resistência de um texto, ou seja, ensina a ver que um texto é exatamente o que se escreve através dessa resistência. Não se pode pensar em termos de origem e chegada de um único texto (a ser preservado na sua verdade original), mas como equilíbrio entre duas possibilidades, nascidas de um vai-e-vem entre o texto A (a leitura de uma escrita) e texto B (a escrita de uma leitura). Nesse contexto, as idéias de originialidade e de verdade perdem qualquer pertinência, como se ambos os textos, indiferentemente, tornassem-se apócrifos e originais.
Assim, será preciso negociar com o texto a ser traduzido uma medida possível entre a legibilidade e a fidelidade. Mas ser fiel, para um tradutor, não seria justamente trair, ousar se afastar? A fidelidade à mensagem, ao conteúdo cognitivo (um logro, em si) é uma espécie de ofensa contra o texto estético. Contrariamente à prosa cuja tradução pode até privilegiar o sentido, a poesia implica na busca de certa harmonia (uma "necessidade musical intrínseca") sem a qual, a fidelidade restrita ao sentido aparece como uma forma de traição. É conhecida a imagem da tradução como "bela infiel". Não no sentido conformista e purista dado por Georges Mounin à expressão aplicada a certa tendência que no século XVIII preocupou-se em adaptar os textos traduzidos às convenções clássicas. São tantas as formas de traição que fora do contexto, rapidamente não se sabe muito bem do que se está falando. Poderíamos sonhar com Barthes:
Si j'étais écrivain et mort, comme j'aimerais que ma vie se réduisît, par les soins d'un biographe amical et désinvolte, à quelques détails, à quelques goûts, à quelques inflexions, disons: des "biographèmes", dont la distinction et la mobilité pourraient voyager hors de tout destin et venir toucher, à la façon des atomes épicuriens, quelque corps futur, promis à la même dispersion (...) [5]
Obrigada pela atenção.
Indicações bibliográficas:
VALÉRY, Paul. "Variations sur les Bucoliques", Oeuvres, volume I, collection La Pléiade. Paris: Gallimard, 1957.
BARTHES, Roland. "Préface", Sade, Fourier, Loyola. Paris: Seuil, 1971.
ECO, Umberto. " L'expérience de la traduction", Le Plaisir des formes . Paris: Seuil, 2003.
SERRES, Michel. Hermes III - La Traduction. Paris: Minuit, 1974.
resumo do texto:
Para além da idéia da tradução propriamente dita, compreendida como trans mutação de um texto de uma língua natural para outra, escrever é já traduzir. O que fazemos quando traduzimos? Quais diferenças, entre prosa e poesia? Antecipando as formulações teóricas de toda uma corrente formalista européia, da semiologia estrutural e pós-estrutural, Paul Valéry desloca a idéia de originalidade em favor de uma intertextualidade generalizada.
palavras-chave: texto poético, originalidade, tradução.
1.Uma amostra significativa dessa polêmica entre tradutólogos e poeticistas está publicada na revista Langue française, La Traduction , Larousse 51 (1981).
2.Valéry, 1957, p. 207 -222. As referências ao texto de Valéry remetem para essa edição da Pléiade.
3.Serres, 1974, p. 9.
4.Barthes, 1971, p. 12
5.Barthes, 1971, p.14.